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Tutela penal na automutilação vem do progresso da saúde mental

No seio da sociedade contemporânea, ainda há um tímido debate responsável por expor a dificuldade de se enxergar o sofrimento psíquico humano como questão de saúde pública. Historicamente, o indivíduo foi educado a emudecer a angústia, a não demonstrar sinais de desequilíbrio, sob pena de ter seu convívio marginalizado. Qualquer desordem da psique enquanto for coberta pela cortina de um tabu não poderá ser tutelada, e sim destinada a uma clausura, seja subjetiva ou social, pois cria-se um processo de silenciamento do sintoma, no qual a consequência mais nefasta é a marginalização de seu portador.

A tutela tardia do Estado no âmbito da saúde mental também explica a recente interface entre o Direito e a Psiquiatria na união de esforços a fim de promovê-la. Entre tantas funções, à Medicina foi destinada a tarefa de definir a natureza da patologia e, ao Direito, a proteção de bens individuais e coletivos, bem como, a definição da consequência de determinada conduta quando essa viola um bem jurídico, com a finalidade de exercer controle correcional. Dessa maneira, ambos se amparam enquanto mecanismos de controle social e comportamental tanto do indivíduo, quanto da coletividade.

O controle correcional exercido pelo Direito quando da prática de um crime não substitui o preventivo, este último se manifesta na elaboração de leis que promovam maior atenção à saúde mental. O incentivo ao desenvolvimento de políticas públicas nos possibilita a proteção coletiva, visando o bem-estar físico, social e psíquico.

Nesse sentido, o Congresso Nacional já vinha atuando com olhos a questão, conforme se depreende do relatório final da CPI dos maus-tratos à criança e ao adolescente e do PL 6.389/19, substitutivo ao PL 8.833/17, oriundo do PLS 664/15, onde consta na sua justificação e resultou na redação do novo art. 122 do Código Penal, que a automutilação ou “cutting”, é caracterizado pela agressão deliberada ao próprio corpo, sem a intenção de cometer suicídio.”.

Neste clima de inovação, surge a Lei 13.968, publicada em 27 de dezembro de 2019, 6 meses depois de publicada a Lei 13.918 em 29 de abril, que institui a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio, a ser implementada pela União, em cooperação com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios e altera a Lei nº 9.656/98 para incluir na obrigatoriedade de cobertura nos planos de saúde “de atendimento à violência autoprovocada e às tentativas de suicídio.”

A Lei 13.918 foi regulamentada em 5 de fevereiro de 2020 pelo Decreto 20.225, bem como institui o Comitê Gestor da Política Nacional de Prevenção da Automutilação e estabeleceu normas relativas à notificação compulsória de violência autoprovocada. Uma das inclusões no compilado da legislação de saúde mental, tem como uma de suas inovações o artigo 6º que impõe o dever de notificação compulsória em casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, cuja omissão dolosa enseja a prática de contravenção penal prevista no art. 66 do DL 3.688/41.

Busca-se estabelecer por meio da lei de políticas públicas, a cobertura do problema de forma “permanente”, termo salientado no artigo 2º, adotado como atual estratégia de controle dos casos da violência autoprovocada. Já era tempo de se trazer mais mecanismos positivados a fim de garantir a promoção da saúde mental para além dos hospitais psiquiátricos. Após a Reforma Psiquiátrica, a prioridade é que o tratamento seja predominantemente realizado fora dessas instituições, até em casos de transtornos mentais diagnosticados como graves, estruturando o convívio social do paciente, ao ensiná-lo a viver além do sintoma.

O sistema de monitoramento – coleta e análise de dados sobre os casos de automutilação, tentativas de suicídios e suicídios consumados – proposto pelo artigo 3º, inciso VIII busca efetivar um maior número de políticas públicas e norteamento de soluções, atenção e atuação social por meio de um possível mapeamento, visto que no Brasil o tema é controverso, sabendo-se apenas que ocorre na adolescência e no início da idade adulta, bem como sua prevalência é mais alarmante no gênero feminino.

A legislação sobre política nacional acentua o foco na análise e delimitação dos problemas de saúde mental com o objetivo de aumentar a eficácia na mitigação das causas e consequências da violência autoprovocada, inclusive determina que a atenção psicossocial deverá ser prestada pelo poder público a fim de mitigar o problema da violência autoprovocada, buscando cobrir tanto de forma particular, ou seja, a família da vítima, quanto de forma geral, a sociedade civil como um todo, por meio de políticas públicas de conscientização.

Estereótipos que são atribuídos ao desequilíbrio mental ainda tem em sua raiz o preconceito, verdadeiro fantasma de nossa cultura ocidental. Foucault explica brilhantemente em sua obra A História da Loucura como a deficiência significou, por muitos séculos, um espaço moral de exclusão, sendo esse um relevante pretexto do surgimento atrasado de uma legislação de saúde mental em uma sociedade que sempre clamou por essa discussão, potencializada pelo surgimento da internet e a influência negativa, neste ponto, nos jovens, como foi o episódio amplamente divulgado do jogo “baleia azul”.

O verbo “sensibilizar” no inciso VI do artigo 3º elucida sutilmente o que deve ser enfrentado na essência, qual seja, a discriminação. A consciência social só se torna efetiva por meio do veicular de dados e informações, a fim de criar uma verdadeira mobilização da sociedade civil, motivada pelo sentimento de mudança do atual contexto que tem em sua origem um incômodo, um desconforto coletivo quando se deparar com a realidade de um país que está em oitavo lugar no ranking de suicídios, segundo o site Governo do Brasil, buscando-se descontruir o tabu, que de há tanto tempo velado, passou a ter consequências nefastas entre os jovens.

O fato de o §3º sinalizar a necessidade da elaboração de políticas públicas de conscientização, denota uma ação preventiva de proteção à saúde mental e sinaliza de forma contundente o bem jurídico tutelado, inclusive na tutela penal. Um exemplo de campanha publicitária é “Acolha a Vida”, de abril de 2019, que caminhou na busca do incentivo à compreensão do que seria a violência autoprovocada.

Além do artigo 4º, caput, a necessidade do sigilo é novamente salientada no artigo 6º, § 3º, visa-se resguardar a total intimidade daquele que busca alívio da angústia – a qual é definida segundo o conceito médico psiquiátrico como uma sensação subjetiva de que algo oprime o peito – por meio da autolesão, transpassando a dor emocional que até então era inexprimível.

O §2º demonstra a necessidade da qualificação do profissional de saúde mental. Ao longo da história, foram cometidas inúmeras violações de direitos humanos na área da saúde, sendo uma das copiosas razões o despreparo profissional. Fundamental salientar que o portador de sofrimento psíquico é vulnerável, necessitando de proteção especial, sendo, além da técnica e aptidão, identicamente indispensável a receptividade e a empatia daquele que lida diariamente com essas questões de fundo emocional.

O Estado demonstra cada vez mais urgência em tutelar temas referentes à saúde mental, nesse sentido, foi incluído no conjunto normativo sobre Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio a tutela penal, quando na mesma toada, o legislador entendeu por bem alterar o art. 122 do Código Penal para alterar as disposições relativas ao crime de participação em suicídio e incluir no tipo penal a proteção à pessoa vítima de participação à automutilação.

O Direito Penal é uma ciência que não raramente se utiliza de outras normas jurídicas para ter seu conteúdo penal compreendido, seja em se tratando de uma norma penal em branco ou para realização do juízo de valor de uma elementar ou circunstância normativa.

O elemento normativo depende de análise valorativa, ou seja, o significado semântico do termo no caso concreto, variando muitas das vezes o resultado, a depender de quem realiza a interpretação. Quando o tipo penal emprega a elementar “sem justo motivo”, por exemplo, seu significado pode variar de acordo com o caso concreto e o intérprete. Já a norma em branco depende de complementação de um conteúdo descritivo, ou seja, o conteúdo valorativo é realizado pelo ato normativo que o complementa, determinando seu significado. Por exemplo, todos sabem o que é arma de fogo, contudo, para atender ao princípio da taxatividade, impõem-se sua descrição através de um ato normativo, restringindo o papel do intérprete e atribuindo ao significado uma extensão mais segura.

A expressão “suicidar-se” é objetiva, pois seu significado e sua extensão advém do próprio termo, que significa “pôr termo a própria vida”, não dependendo de valoração, mas somente compreensão do seu significado, contudo quanto a elementar “automutilação”, incluída pela Lei 13.968/19, entendemos que a análise deve ser distinta.

No dicionário Michaelis, a automutilação significa “Mutilação que um indivíduo pratica em si próprio”. Nesses termos, mutilação deriva do latim mutilatĭo e significa “1. Ato ou efeito de mutilar(-se); corte, retalho; 2. Corte ou amputação de parte do corpo”

Para dizer que em nosso ordenamento nunca tenha se referido a tal nomenclatura, a mesma foi empregada como “mutilação” no art. 9º, §3º da Lei 9.437/97, que dispõe sobre a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento, para tratar de regra sobre a retirada de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo.

Na doutrina médico-legal podemos encontrar o emprego da terminologia para explicar a lesão corporal gravíssima de perda ou inutilização de membro, sentido ou função, previsto no art. 129, §2º, III do CP, ou a “automutilação” como identificação de sintoma de algumas doenças psiquiátricas, como a esquizofrenia na forma catatônica, que dentre os diagnósticos estão a tendência ao “homicídio e à automutilação”. Ainda nesta quadra, desde 1994, o DSM-IV deu ao transtorno de personalidade borderline algumas características, dentre elas a do “comportamento suicida recorrente, gestos, ameaças, ou comportamentos de automutilação”.

Contudo, é possível observar que na doutrina médico-legal os autores se referem à automutilação como sintoma, porém não o definem.

É na Medicina que encontraremos um estudo mais completo sobre o significado, em especial na psiquiatria, como sendo o ‘comportamento de autolesão voluntária’, empreendido pelo indivíduo cuja finalidade é produzir cortes no próprio corpo utilizando-se de instrumentos cortantes, pontiagudos ou mesmo incendiários, sem que esteja presente a intenção consciente de suicídio.”

É imperioso concluir que foi o conceito científico da Medicina que o legislador definiu a automutilação na Lei 13.918/19, regulamentada pelo Decreto 20.225/20, apesar da confusão lógica na redação, conceituando a “violência autoprovocada”, no art. 6º, §1º, I a III, com sendo “o suicídio” (“consumado e tentado”) e a “automutilação, com ou sem ideação suicida”.

Ora, quem se mutila com “ideação suicida” e morre é por definição “o suicídio consumado” e se não morre é “a tentativa de suicídio”, restando por óbvio, que o inciso III exclusivamente para “o ato de automutilação”, “sem ideação suicida”, que significa se auto lesionar, independentemente do grau da lesão.

Trata-se, portanto, a automutilação, uma espécie do gênero “violência autoprovocada”, identificada em pessoas que estejam suportando um sofrimento psíquico, o que significa dizer: para que alguém consiga o intento de instigar, induzir ou auxiliar alguém a automutilação, antes deve atingir a saúde mental, piorando-a, de modo que o bem jurídico que se tutela nesse tipo penal, não é a integridade física, mas a incolumidade da saúde psíquica.

O tipo, portanto, visa a proteção da saúde, como ocorre nos delitos de perigo dos dispositivos 130 a 132, todos do CP, tratado pela doutrina como crime de perigo e crimes especiais com relação ao delito de lesão corporal, consoante lição de Bittencourt ao afirmar que “vemos no conteúdo do art. 130 uma lex specialis em relação ao crime de lesões corporais.” Em outras palavras, esse delito tutela a incolumidade da integridade física e saúde, incluindo-se a mental.

Entendemos que, somente assim, poderíamos conciliar a indisponibilidade do bem jurídico atingido pela lesão leve disposto no art. 122 do CP, com a sua disponibilidade comparada à tutela do art. 129, caput, do CP. Afinal, por qual razão o legislador teria tornado indisponível a punibilidade da tentativa de participação em automutilação?

Podemos concluir que sistematicamente é a saúde mental o bem jurídico tutelado no art. 122 do CP, segunda parte, ainda que disposto equivocadamente no capítulo I do Título I. Deveria o legislador ter inserido a novatio legis no capítulo seguinte.

Por essa mesma razão, a competência para o julgamento do crime em comento é do juízo singular e não do Tribunal do Júri, restando salutar uma releitura do art. 74, §1º do CPP ‘à luz do art. 5º, XXXVIII, “d” da CR, por inexistir crime doloso contra a vida.

Seria prematuro dizer que o sujeito passivo seja somente quem tenha saúde mental enferma, contudo, é seguro afirmar que aquele que se automutila provocado por terceiro, antes teve sua saúde mental afetada. O dano autoprovocado é mero exaurimento da mente do sujeito passivo, antes atingida.


Relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito. Disponível: <https://legis.senado.leg.br/comissoes/mnas?codcol=2102&tp=4>, acesso em 08/05/2020.

Disponível: <https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=3629383&ts=1577445112115&disposition=inline>, acesso em 08/05/2020.

FOUCAULT, Michel. História da Loucura. 11ª ed. São Paulo: Editora Perspectiva. Ano 2017, pags. 8-9.

Disponível em: <https://vestibular.brasilescola.uol.com.br/blog/o-perigoso-jogo-baleia-azul.htm

Disponível em: <https://www.gov.br/pt-br/noticias/assistencia-social/2019/04/politica-nacional-de-prevencao-da-automutilacao-e-do-suicidio-e-publicada-no-dou>. Acessado em 26/04/2020

ALMEIDA, Wilson Castello de. Defesas do ego: leitura didática de seus mecanismos. 3ª ed. São Paulo: Ágora, 2009, p.19

Dicionário Michaelis on line. Disponível: <https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/suicidar>, acesso em 04/05/2020

Dicionário Michaelis on line. Disponível: <http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=mutila%C3%A7%C3%A3o>, acesso em 04/05/2020

CROCE, Delton e CROCE JR, Delton. Manual de medicina legal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 127.

FRANÇA. Genival veloso de. Medicina Legal. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2015, p. 1173

Ibidem, p. 1186

DALGALARRONDO, Paulo. Psicopatologia e semiologia dos transtornos mentais. Porto Alegre: Artmed 2008, p. 179

BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal – parte especial: dos crimes contra a pessoa, v. 2. 12ª. ed. rev. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 571.

 é delegado de polícia do RJ e professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers. Autor de livros e palestrante.

Lia Rodrigues Muniz é graduanda em Direito, membro da Associação Brasileira de Saúde Mental (Abrasme) e Citizens Commission on Human Rights (CCHR) e bolsista de iniciação científica da Universidade Estácio de Sá e Fundação de Apoio a Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ).

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Retomada da fluência dos prazos processuais no Judiciário

A gravíssima crise mundial gerada pela pandemia implicou a tomada de providências pelas mais diferentes experiências jurídicas, as quais, além de outras medidas de urgência, determinaram, de um modo geral, com maior ou menor abrangência, a suspensão da fluência dos prazos processuais.

Assim é que, a guisa de exemplo, o Poder Judiciário da Itália, da França, da Alemanha e da Áustria, em momento imediato ao recrudescimento do contágio, interveio para sobrestar o andamento da grande maioria dos processos, contribuindo para atender à exigência providencial de distanciamento social.

No Brasil, não foi diferente, a despeito de certa sobreposição inicial de regramentos emitidos pelos Judiciários estaduais e federal, logo, em 19 de março de 2020, o Conselho Nacional de Justiça baixou a Resolução n. 313, com o precípuo objetivo de minimizar o risco de contágio. Cumpre lembrar que o Conselho Nacional de Justiça tem a atribuição constitucional de fiscalizar e de efetivar o controle administrativo e financeiro do Poder Judiciário e do cumprimento dos deveres funcionais dos juízes, de conformidade com o parágrafo 4º do artigo 103-B da Constituição Federal. Para tanto, detém a prerrogativa de editar atos regulamentares (artigo 103-B, parágrafo 4º, inciso I).

Além de instituir o plantão extraordinário e alterar a rotina dos serviços judiciários, o ponto mais importante desse regramento encontra-se no artigo 5º, que determinou a suspensão dos prazos processuais até o último dia 30 de abril, sem qualquer distinção entre processos físicos e processos eletrônicos.

Mais recentemente, em 20 de abril de 2020, foi editada, pelo Conselho Nacional de Justiça, a Resolução n. 314, que, diante da evolução e análise dos fatos, estabeleceu nova regência atinente à fluência dos prazos processuais.

Com efeito, norteada pelo princípio constitucional da duração razoável do processo e, por via de consequência, na necessidade de assegurar condições mínimas para a continuidade da atividade jurisdicional, a aludida Resolução n. 314 determinou a retomada gradativa dos prazos processuais em busca de atender, tanto quanto possível, à demanda dos jurisdicionados.

Todavia, a fluência dos prazos, a partir do dia 4 de maio passado, restringe-se, por enquanto, aos processos que tramitam em plataforma eletrônica. Assim, a teor do artigo 2º, continuam suspensos os prazos processuais dos feitos que se desenvolvem em autos físicos (artigo 313, inciso VI, do Código de Processo Civil). Não obstante, mesmo nos processos físicos, que estarão sobrestados, continua assegurada a apreciação das matérias mínimas arroladas no artigo 4º da aludida Resolução n. 313, em especial, dos pedidos de medidas protetivas em decorrência de violência doméstica, das questões relacionadas a atos praticados contra crianças e adolescentes ou em razão do gênero.

Ademais, dúvida não há de que também nos incidentes que tramitam por meio eletrônico, ainda que o processo principal seja físico, o prazo começou a correr no dia 4 de maio passado. É o que ocorre, e. g., nos autos eletrônicos de cumprimento de sentença, originados de processo físico no qual se formou o título judicial exequendo.

Preceitua, pois, o subsequente artigo 3º, que: “Os processos judiciais e administrativos em todos os graus de jurisdição, exceto aqueles em trâmite no Supremo Tribunal Federal e no âmbito da Justiça Eleitoral, que tramitem em meio eletrônico, terão os prazos processuais retomados, sem qualquer tipo de escalonamento, a partir do dia 4 de maio de 2020, sendo vedada a designação de atos presenciais”.

É certo, portanto, que os prazos já iniciados, antes da edição da precedente Resolução n. 313, serão retomados no estado em que se encontravam no momento da suspensão, sendo restituídos por tempo igual ao que faltava para sua complementação (artigo 221 do Código de Processo Civil).

Tendo presente a realidade brasileira, merece destaque a prudência do Conselho Nacional de Justiça, ao ressalvar, em caráter excepcional, no mesmo artigo 3º, a eventual dificuldade da prática de ato processual por meio eletrônico ou virtual, por absoluta impossibilidade técnica (parágrafo 2º), que deverá ser comprovada pelo interessado.

Tal dispositivo veio complementado pela Resolução n. 318, de 7 de maio do corrente, ainda do Conselho Nacional de Justiça, que prorrogou a suspensão dos prazos de processos físicos até o dia 31 de maio.

Não obstante, essa diretriz contém duas importantes exceções. A primeira delas, contemplada no artigo 2º, dispõe que nos Estados, nos quais forem impostas medidas restritivas à circulação de pessoas – denominado lockdown -, ainda que durante a fluência dos prazos, serão eles automaticamente suspensos, nos processos “que tramitem em meios eletrônico e físico, pelo tempo que perdurarem as restrições, no âmbito da respectiva unidade federativa”. Atente-se para fato de que tal regra alude a processo físico, já pressupondo, à evidência, que o lockdown possa ocorrer, em futuro próximo, quando não mais se verificar a suspensão dos prazos em processos físicos.

Já a segunda regra de caráter excepcional, segundo o artigo 3º da Resolução n. 318, antes de ser genérica, prevê situação peculiar e, portanto, casuísta, quando, por alguma razão específica, sobrevier obstáculo que impossibilite o normal desenvolvimento das atividades judiciárias, igualmente, ficará suspenso o transcurso dos prazos processuais.

Desse modo, mesmo que não sejam efetivadas medidas restritivas ao livre exercício das atividades forenses regulares, o tribunal também pode requerer prévia e justificadamente ao Conselho Nacional de Justiça a suspensão dos prazos processuais.

O funcionamento, durante o período emergencial, segue em horário idêntico ao do expediente forense. E os tribunais devem garantir minimamente o acesso aos serviços judiciários. O atendimento presencial de partes, advogados e interessados continua interrompido e deve ser realizado remotamente pelas plataformas eletrônicas disponíveis.

Entendo, contudo, que não se deve afastar hipótese bem possível de ocorrer, no sentido de que o advogado da parte, por alguma razão específica, como, por exemplo, impossibilidade de acesso ao seu próprio escritório, ou a documentos imprescindíveis para elaborar uma contestação, ou, ainda, dificuldade operacional, de cunho pessoal, para implementar o cumprimento de determinado prazo. Diante de uma destas circunstâncias, o advogado pode muito bem se valer de preciosa regra legal, emoldurada no artigo 221 do Código de Processo Civil.

Não é preciso dizer que o juiz deverá avaliar estas situações pelo prisma da razoabilidade, mas sempre verificando se de fato a alegação procede, a evitar abuso processual por quem perdeu o prazo.

Assim procedendo, assegura-se, com efeito, igualdade de armas entre os litigantes, sobretudo quando um deles estiver sendo assistido por banca de advocacia aparelhada com todos os recursos tecnológicos possíveis, em detrimento daquele cujos interesses é patrocinado por um único advogado, que não dispõe de expertise e muitas vezes nem de meios adequados para exercer regularmente a sua atividade profissional nesta quadra de enormes dificuldades em que vivemos.

Fatores decorrentes da pandemia não podem, em quaisquer circunstâncias, constituir fonte de vantagem a ninguém!


. Lorenzo Balestra, Alcuni chiarimenti in merito alla sospensione dei termini processuali durante l’emergenza Coronavirus, http://ilprocessocivile.it/articoli/quesiti-operativi/; Fabio Cossignani, Il processo civile ai tempi del coronavirus, http://www.treccani.it/magazine/diritto/approfondimenti/; Alberto M. Di Alberto e Gabriella Tedeschi, Decreto “Cura Italia”: analisi delle misure disposte in materia di giustizia civile, http://ilprocessocivile.it/articoli/focus/.

. Guillaume Brajeux et alii, Covid-19: Adaptation du deroulement des procedures judiciaires, https://www.hfw.com/; Pauline Kubat, Covid-19: french rules of civil procedure have been adapted, https://www.soulier-avocats.com/.

. Finn Zeidler, Markus Rieder e Andreas Dürr, Covid-19: Civil Litigation in Germany, https://www.gibsondunn.com.

. Publicação da Dorda Rechtsanwalte GmbH, What are the effects of Covid-19 and the measures recently taken by the federal government on litigation proceedings?, https://iclg.com/briefing/11251.

 é sócio do Tucci Advogados Associados; ex-Presidente da AASP; professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP; e membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas.

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RS indenizará pais de aluna morta por colega na escola

O estado tem o dever de vigiar, cuidar e fiscalizar os alunos dentro das escolas públicas, já que sua responsabilidade é objetiva. Assim, a omissão ou inobservância destes deveres, se resultar em acidente ou morte, dá margem ao pagamento de indenização.

123RF

O fundamento levou a 5ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça a manter sentença que condenou o Estado do Rio Grande do Sul a indenizar os pais de Marta Avelhaneda Gonçalves.

A adolescente de 14 anos foi morta por um golpe de gravata aplicado por uma colega durante o intervalo de aula na Escola Estadual de Ensino Básico Luís de Camões, na cidade de Cachoeirinha, região metropolitana de Porto Alegre. O estrangulamento fatal, que chocou a sociedade gaúcha, ocorreu na tarde de 8 de março de 2017.

O relator das apelações no TJ-RS, desembargador Jorge André Pereira Gailhard, disse que o próprio fato já configura o dano. “Tenho que a hipótese dos autos reflete o dano in re ipsa ou dano moral puro, uma vez que o sofrimento, o transtorno e o abalo psicológico causado aos autores pela perda de sua filha são presumidos, conferindo o direito à reparação sem a necessidade de produção de prova quanto ao abalo psicológico”, registrou no acórdão, confirmando o valor de R$ 100 mil para reparação moral a cada um dos autores.

Gailhard, igualmente, referendou o pensionamento mensal arbitrado pelo juízo de origem, em favor dos pais, até a data em que a adolescente completaria 25 anos — marco em que, normalmente, os filhos deixam de ajudar financeiramente em casa. E deu parcial provimento à apelação para incluir o 13º salário no pensionamento mensal, “pois a gratificação natalina compõe os rendimentos de qualquer trabalhador regularmente contratado”. O acórdão, com decisão unânime, foi lavrado na sessão do dia 6 de abril.

Fatalidade, alega o Estado

Na defesa encaminhada à 7ª Vara da Fazenda Pública da Capital, o Estado alegou que o desentendimento entre as duas alunas ocorreu no intervalo entre o segundo e o terceiro turno de aula, estimado de 15 a 20 minutos, em função da ausência do professor que ministraria a aula seguinte.

Ao chegar à sala de aula, o professor presenciou a vítima no chão, sendo acometida de convulsões. Mesmo com massagem cardíaca e socorro médico, a adolescente não resistiu, vindo a falecer.

Para o Estado, não se pode falar em direito à indenização, já que não existe nexo de causalidade entre o fato que levou a estudante à morte e a deficiência dos serviços prestados pela escola. Assim, sem conduta ilícita, tudo não passou de uma ‘‘fatalidade’’.

Responsabilidade estatal

A juíza Marilei Lacerda Menna julgou parcialmente procedente a ação indenizatória. Ela determinou que o Estado pague, a cada um, a título de danos morais, o valor de R$ 100 mil. O Estado também foi condenado a pagar uma pensão equivalente a dois terços do salário-mínimo, vigente a partir da data do óbito, até a data em que a estudante completaria 25 anos de idade.

Na fundamentação, a juíza afirmou que o fato da adolescente ter sido morta por uma colega de aula — com 12 anos à época — não retira a responsabilidade do ente estatal pela conduta ilícita. “Tenho que é inadmissível a ocorrência de um crime — estrangulamento —, causa morte da aluna, dentro de uma sala de aula da escola pública estadual, durante o turno escolar. Por certo que o Estado detém a vigilância e a guarda dos alunos que frequentam a escola e, não o fazendo ou fazendo de forma negligente, deverá responder pelos danos ocasionados”, anotou na sentença.

Em fecho, a julgadora destacou que a escola deixou de adotar providências para evitar bullying contra a menina, que era nova no ambiente escolar. Logo, “evidente a culpa do réu e o nexo causal, eis que responsável pelos danos sofridos pelos autores que, diga-se, são irreparáveis, restando clara a responsabilidade pela indenização a fim de amenizar o ocorrido, eis que ausente qualquer causa excludente da de responsabilidade”, concluiu.

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Processo 9035809-06.2018.8.21.0001 (Comarca de Porto Alegre)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

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STF cancela as sessões desta terça-feira das duas Turmas

Rosa e Cármen

STF cancela as sessões desta terça-feira das duas Turmas

As ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia, presidentes da 1ª e da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, cancelaram as sessões desta terça-feira (12/5) e convocaram sessões ordinárias para o próximo dia 19, a partir das 14h.

As sessões das Turmas e do Pleno do STF estão sendo realizadas por meio de videoconferência, em razão das medidas adotadas pela Corte no combate à disseminação do novo coronavírus.

As sessões das Turmas, que ocorrem simultaneamente às terças-feiras, podem ser acompanhadas pelo canal do STF no YouTube. As sessões plenárias, às quartas e às quintas, são transmitidas pelo YouTube, pela TV Justiça e pela Rádio Justiça. Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

Revista Consultor Jurídico, 12 de maio de 2020, 7h08

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Alexandre Coelho: A transformação digital no Direito

A digitalização dos processos judiciais, o uso de técnicas de ciência de dados e de inteligência artificial, de plataformas de acordo e de automação de documentos jurídicos, entre muitas outras ferramentas, estão transformando a prestação de serviços jurídicos.

E a crise sem precedentes que estamos vivenciando está acelerando esse processo de transformação digital.

Em relação ao Direito, é preciso entender os dois aspectos importantes desse movimento, que estão interligados, mas são diferentes.

O primeiro é que a digitalização e o uso de novas ferramentas tecnológicas estão crescendo em todos os setores da economia e nas mais diversas tarefas e atividades cotidianas da sociedade. E isso, certamente, traz muitas necessidades e questões relacionadas a área do Direito, desde aspectos regulatórios, organização de novas empresas e modelos de negócios e muitos conflitos e controvérsias que estão seguindo esta curva exponencial da inovação.

Assim, serão muitos os reflexos no Direito material e grandes oportunidades para os profissionais que se especializarem nessas consequências do uso da tecnologia em sua própria área de atuação. Crimes cibernéticos, adequação às leis e diretrizes de proteção de dados, novos modelos de contrato de trabalho e home office, direitos de consumidor com a expansão do e-commerce, open banking e pagamentos instantâneos, entre milhares de outras possibilidades. E aquele direito digital, que há tempos muitos defendem que nunca seria uma área de Direito, deu lugar a constatação evidente de que essas questões estão acontecendo e sendo normatizadas de acordo com a dinâmica e os princípios de cada ramo do Direito a que estão relacionadas ou aos diferentes ramos em que se inserem, tendo em vista que muitos problemas jurídicos modernos são multidisciplinares.

E, dentro dessa perspectiva, a sociedade está em um momento histórico em que os profissionais da área jurídica são cada vez mais essenciais para pensar a prevenção, a legislação, os modelos de negócios e os novos serviços jurídicos correspondentes a essas demandas. Muito diferente do que as manchetes sensacionalistas supunham, de que a tecnologia era uma ameaça para o Direito, esse movimento na verdade nos trouxe muitos desafios e oportunidades. Mas, obviamente, para os que se prepararem, pois já vemos uma escassez e grande demanda por profissionais especializados em proteção de dados pessoais, por exemplo.

Então esse é um ponto muito importante. A tecnologia não vai mudar o Direito. Em sua essência essa ciência sempre se adapta às novas dinâmicas cotidianas, por mais radicais que sejam, aprimora seus conceitos e acompanha os sempre mutantes conflitos sociais. Mas continua sendo Direito, com a finalidade de consolidar as regras de conduta de acordo com esses valores e minimizar os conflitos entre as pessoas e as organizações. E os problemas jurídicos e conflitos relacionados ao uso de tecnologia só vão aumentar, assim como a importância de sua adaptação permanente e dos profissionais para esses novos conceitos e necessidades.

Por outro aspecto, o que realmente está mudando é a prestação de serviços jurídicos (e não o Direito). Essa mudança de cultura da sociedade, acostumada com informações em tempo real, de forma clara e inteligível, em ambientes digitalizados e de navegação intuitiva, está demandando uma adaptação obrigatória para um modelo de serviços jurídicos que pouco havia mudado nas últimas décadas.

O uso de dados para tomada de decisão tem sido o combustível de toda a revolução tecnológica. E no mercado jurídico não será diferente. Sistemas automatizados, que permitem a digitalização de documentos e de técnicas de ciência de dados, que começamos a estudar e implementar desde 2016, agora atingiram toda a área e o entendimento sobre sua relevância. A busca por jurisprudência, por provas e argumentos sempre fez parte da atuação advogados, mesmo quando milhares de processos eram físicos e raras as publicações que compilavam as decisões judiciais. Nesse aspecto, agora é o momento para entender essas novas técnicas e tecnologias, para tornar esse trabalho de organização de dados mais rápida e precisa.

Precisamos de informação em tempo real e com grande precisão para a tomada decisão com mais assertividade e com resultados mensuráveis. Com a digitalização de processos judiciais e contratos, aliada a técnicas de automação e inteligência artificial, ganhamos um ambiente adequado para organizar esses dados despadronizados para a criação de uma espécie de radiologia do Direito. Ainda há muito a fazer, pois são milhares de dados ainda desestruturados, mas a organização das informações e a criação de indicadores, assim como fez a medicina, trará um grande salto qualitativo para a resolução dos grandes problemas da sociedade.

Além disso, as novas ferramentas tecnológicas têm permitido a otimização de tarefas e atividades diárias, e o relacionamento entre os atores desse ambiente de forma integrada e permanente.

E essa mudança comportamental, da mesma forma, requer novas formas de resolução desses dilemas, com a inserção de técnicas de design para a solução de problemas cada vez mais complexos (legal design) e na forma de comunicação jurídica, com a complementação de elementos visuais e adequação da linguagem de acordo com cada público ou finalidade (visual law).

E é isso o que os cidadãos esperam da Justiça, essa integração de todas essas possibilidades e desse ferramental para aprimorar a prestação de serviços jurisdicionais, e o que os departamentos jurídicos e demais clientes dos escritórios de advocacia esperam para uma nova experiência de relacionamento e contato próximo com os juristas.

Diante desse cenário, verifica-se a aceleração da transformação digital em todas as áreas e setores, com impacto imediato também no ambiente jurídico, em um movimento sem volta.

Mas isso também não quer dizer que a tecnologia vai substituir e nem deve mudar tudo. Os problemas das últimas semanas, além de demonstrar que os ambientes digitalizados e as videoconferências podem permitir que tudo continue acontecendo, também demonstraram que são os juízes que estão dando as sentenças de suas casas, são os promotores que estão avaliando os eventuais abusos em contratações emergenciais, os advogados que estão auxiliando a repactuação de contratos e que estão ao lado de seus clientes nesse momento de dificuldade para pensar as possíveis soluções, ou seja, são os profissionais do Direito que estão analisando todas as informações para traçar e operacionalizar em conjunto o plano estratégico para navegar no caos e ultrapassar esse momento de grandes dificuldades.

Agora é hora de ultrapassar o modismo e as falas rasas sobre as relações entre a tecnologia e o Direito para formar nossos profissionais para esse ambiente em transformação, tanto para compreender esses reflexos no direito material e os novos problemas sociais, como para utilizar essas ferramentas com rapidez e para melhorar a qualidade e os resultados dos serviços jurídicos.

Sairemos vencedores e melhores, mas é preciso ter responsabilidade e coragem para mudar aquilo que é iminente e também para ter a clareza do que não é possível e nem desejável mudar.

Alexandre Zavaglia Coelho é advogado especializado em direito e tecnologia, coordenador do Curso de Ciência de dados aplicada ao Direito e VP de Educação da Future Law, um dos coordenadores da RDTEC – Revista Direito e as Novas Tecnologias da RT – Revista dos Tribunais.

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Opinião: Project finance é instrumento poderoso na crise

As medidas recomendadas pelas autoridades sanitárias para a contenção do novo coronavírus, vetor da Covid-19, tais como o isolamento social, trouxeram consigo um cenário de incertezas para os investidores nacionais e estrangeiros. No horizonte do mercado, um possível quadro de recessão econômica mostra que boa parte das expectativas para o ano de 2020 não serão cumpridas, o que faz com que soluções criativas e possíveis sejam buscadas pelos operadores do Direito e especialistas em finanças para atravessar esse momento de turbulências.

O crescimento de uma economia demanda iniciativas do poder público e da iniciativa privada, não podendo prescindir de mecanismos jurídico-financeiros de grande complexidade técnica, os quais demandam a atuação multidisciplinar de profissionais das mais diversas áreas. Assim, levando-se em conta a necessidade de vultuosos investimentos em projetos não só de implantação, como também de recuperação e ampliação de obras de interesse público, cresce em importância a utilização de instrumentos financeiros como o project finance no segmento da infraestrutura.

Em especial para projetos de alta complexidade, caracterizados por grandes investimentos, dilatados prazos de execução e retorno gradual dos recursos envolvidos, a opção por operações coligadas e estruturadas se mostra como uma opção a ser considerada no contexto da Covid-19.  

Inicialmente temos que os investimentos realizados em infraestrutura são essenciais para o exercício da atividade produtiva fundamental de uma sociedade, sem a qual o desenvolvimento econômico se mostra inviável. Portanto, quaisquer ações nos diversos segmentos que são naturalmente aceitos como integrantes de um conjunto de infraestruturas, sejam estas efetuadas de forma direta pelo poder público, ou incentivado e autorizado por este, devem ser encaradas como determinantes para a concretização de políticas públicas importantes para a sociedade.

Assim, como característica inata da infraestrutura na concretização de interesses econômicos de amplo espectro, tais realizações possuem elevada complexidade em seus projetos, implantação e execução, a demandar grandes somas de dinheiro. Os especialistas em finanças, desta forma, ao buscarem avaliar as mais adequadas maneiras de encarar a avaliação dos riscos envolvidos, as estimativas de custos e as formas de financiamento logo perceberam a insuficiência do tradicional corporate finance, ou seja, alocação de recursos por meio de aportes de capital diretos, mediante subscrição e integralização de participações, e/ou de dívida, mediante empréstimo, tendo como base o patrimônio dos sócios para estes fins. Um novo e mais eficaz método se fazia necessário.

Temos, então, na década de 1960 o início da disseminação do project finance para o financiamento de grandes obras de infraestrutura. O caso clássico na literatura estrangeira é a construção do Trans Alaska Pipeline, oleoduto de 1,3 mil quilômetros de extensão realizado por uma joint venture de oito empresas petrolíferas para viabilizar o transporte de petróleo entre o norte do Alasca e o porto de Valdez, a um custo de US$ 8 bilhões à época e o envolvimento de 28 mil técnicos.   

Temos no Brasil, também, casos emblemáticos de utilização do project finance para a realização de relevantes obras a partir da década de 1990, como por exemplo o aumento da capacidade de geração de energia de Serra da Mesa Energia, em 1993, com investimentos da ordem de US$ 800 milhões, a construção da Rodovia Via Lagos no estado do Rio de Janeiro, em 1997, e as melhorias da Ponte Rio-Niterói, com um financiamento de R$ 36 milhões pelo BNDES pelo prazo de dez anos, com garantia sobre os  créditos decorrentes da cobrança do pedágio.  

Ora, o project finance, como técnica financeira por meio da qual a satisfação dos créditos dos credores não depende dos ativos dos sócios, ou dos devedores, mas, sim, do  fluxo de caixa do próprio projeto, o qual fica comprometido com o pagamento das dívidas e com o retorno do pagamento dos sponsors, mostra-se como a solução adequada para os complexos projetos de  infraestrutura. Nesse sentido, o diferencial do project finance se encontra no valor econômico-financeiro do projeto financiado, que não se consubstancia nos ativos dos devedores, mas, sim, no fluxo de caixa do próprio empreendimento.    

O cenário econômico brasileiro atual é composto de diversos fatores inibidores de investimentos, tais como a baixa disponibilidade de recursos orçamentários públicos e a crise financeira, política e institucional que vem assolando o país há alguns anos. Estes elementos vêm afastando a alocação de recursos nas grandes obras necessárias à retomada do desenvolvimento econômico, trazendo consigo a reboque a estagnação do setor produtivo, a queda na arrecadação e a redução drásticas dos indicadores de bem estar na população. 

Considerando esse tenebroso quadro de pandemia global, o project finance — ou financiamento de projetos, estrutura econômica e financeira, que não se confunde com operações ordinárias de financiamento — apresenta-se como uma alternativa viável e eficiente, a fim de se executar projetos de grande cabedal e que possam gerar bons retornos, minimizando-se os fatores inibidores ao investimento mencionados.

O project finance, em apertada síntese, consiste em um instrumento de cunho financeiro e jurídico de características singulares.

Sob a ótica econômica, caracteriza-se por ser um projeto de provisão de fundos a obras de infraestrutura, industriais e de prestação de serviços públicos de vulto de longo prazo, mediante investimento pelos sócios do empreendimento, por meio de aporte de capital em contrapartida a uma participação societária, o que usualmente representa uma pequena parte da inversão, e empréstimo realizado em favor de uma empresa que, na relação jurídica e negocial emanada da coligação contratual, caracterizará uma unidade econômica individualizada. A capacidade de geração de caixa, bem assim os lucros auferidos pela empresa investida e tomadora do empréstimo, constituirão a principal fonte de pagamento do mútuo, ao passo que os ativos e direitos pertencentes à empresa constituirão garantia exclusiva (ou colateral) da operação. É um modelo atrativo à iniciativa privada, pois permite que ela tome parte em grandes projetos sem comprometer as suas métricas econômicas e o seu balanço patrimonial, na medida em que ocorre a afetação econômica e jurídica de um patrimônio ao empreendimento.       

Por seu turno, sob o prisma jurídico, consiste em uma relação societária e contratual estruturada para uma finalidade específica, razão pela qual constitui-se uma sociedade de propósito específico, veículo através do qual o projeto será executado e a partir do qual forma-se a coligação contratual entre sponsors (financiadores), empreendedores, fornecedores, prestadores de serviços, colaboradores, por vezes o Estado e, ao final, os usuários e consumidores do benefício oriundo da obra ou dos serviços públicos. No que tange às garantias, via de regra elas são concedidas como non-recourse collateral, isto é, elas limitar-se-ão aos recebíveis, aos ativos e direitos diretamente relacionados ao empreendimento, não sendo possível o alcance do patrimônio dos sócios para além do montante integralizado na sociedade de propósito específico, elementos que constituem a afetação jurídica do patrimônio do veículo do empreendimento. Finalmente, ainda na seara jurídica, a coligação contratual formada entre os diversos stakeholders tem o propósito de segregar riscos e, portanto, diminuí-los aos envolvidos.

Uma operação de project finance objetiva limitar a responsabilidade dos acionistas e empreendedores, tecnicamente denominados patrocinadores, bem como maximizar o seu eventual retorno, segregar o risco da empreitada entre os acionistas patrocinadores, os financiadores externos, eventuais provedores de serviços terceirizados e fornecedores e, eventualmente, o Estado.

Afim de atingir tais objetivos, o project finance tem como uma de suas características básicas a segregação do empreendimento, ou seja, patrimônio (ativo, passivo e patrimônio líquido) especificamente destinado ao projeto, o qual não será imiscuído ao das empresas acionistas patrocinadoras, o que é normalmente realizado por meio da constituição de uma sociedade de propósito específico — seja uma sociedade limitada ou por ações — de forma a limitar a responsabilidade dos patrocinadores. Geralmente, os patrocinadores integralizam capital correspondente de 20% a 30% do montante do investimento necessário à execução do empreendimento. Podemos citar ainda a alavancagem financeira, ou seja, contração de dívida por meio de mútuos ou outros instrumentos afins, provido por financiadores externos, o financiamento garantido pelo empreendimento, ou seja, as receitas, lucros e ativos do empreendimento e, eventualmente, outros instrumentos de garantia ou mesmo alguma garantia prestada pelos patrocinadores — esta última não permitirá que se satisfaça débitos ilimitadamente no patrimônio do patrocinador, e finalmente, uma rede de contratos coligados, os quais objetivam a alocação de riscos de uma forma muito precisa e definida.

Justamente por ser dotado dessas características, o project finance tem relacionamento estreito com as concessões de Parcerias Público-Privadas, as quais foram introduzidas no ordenamento jurídico pela Lei nº 11.079/2004 como uma reação ao esgotamento dos modelos tradicionais de delegação das atividades do Estado para o setor privado em seus modelos clássicos no regime de concessões, permissões e autorizações.  Em conjunto, são poderosos instrumentos viabilizadores de políticas públicas aptos a angariar os volumosos recursos necessários ao aprimoramento e desenvolvimento da infraestrutura no Brasil.

Assim, a PPP constitui uma forma viável de cooperação entre o Estado e a iniciativa privada quando embasada em uma sólida estrutura de financiamento alavancada em project finance, prestando-se a captar recursos econômicos de forma eficiente. Sua composição, com limitação de responsabilidade dos investidores e alocação adequada de riscos entre os envolvidos na relação negocial, é um grande incentivo a participação dos investidores nestes empreendimentos de forte interesse público.

Essa estratégia financeira, portanto, tem relação direta com a retomada do desenvolvimento econômico no país após a fase mais aguda da pandemia da Covid-19, pois, caso seja usada de maneira adequada para as contratações de grandes obras de infraestrutura, ela potencializará a entrada de capital no segmento, fomentando a concretização do interesse público.

Considerando, portanto, que o Brasil, em geral, carece de infraestrutura, tal como saneamento, rodovias, portos, aeroportos, energia, hospitais e meios de transporte, entre outros, o project finance, juntamente com as concessões de Parcerias Público-Privadas, cuida-se de um instrumento poderoso e eficiente à disposição do Estado e da iniciativa privada para tal fim, sendo imprescindível para o restabelecimento do curso do desenvolvimento e do crescimento econômico do país neste momento único e delicado de nossa história.

Marcos Roberto de Moraes Manoel é advogado coordenador da área de Direito Empresarial e dos Negócios da Nelson Wilians & Advogados Associados.

 é advogado, sócio coordenador do Núcleo de Direito Administrativo, Regulatório e Infraestrutura do Nelson Wilians & Advogados Associados.