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A aprovação do PL 1.179 e uma perspectiva do direito comparado

A crise sanitária mundial exigiu que os países adotassem medidas emergenciais para refrear a expansão do vírus enquanto não se lhe conhece a cura, mas também medidas político-econômico-sociais e jurídicas que se destinem a evitar consequências maiores ou  que se prorroguem no tempo e venham a comprometer implacavelmente os dias futuros.

Dada a excepcionalidade desta situação — sem precedentes em termos de contágio e alastramento internacional —, a lei aplicável durante a crise e seus efeitos também deve ser excepcional, pois nenhuma lei ordinária poderia antever a magnitude e os efeitos plúrimos de uma doença como esta que agora enfrentamos.

Antes de passarmos ao ordenamento brasileiro, notemos que, no contexto do direito dos demais países, a situação jurídica não é diferente. Dificuldades há aqui e ali. E destaco, de antemão, que é impossível fazer um escrutínio acerca dos diversos países, mas o fato de conhecermos os problemas e soluções experimentados por alguns deles amplia o nosso horizonte para a solução dos nossos próprios problemas. Embora a pandemia nivele a todos no temor de sua virulência e nos seus impactos psicológicos, é fato que cada país tem suas estruturas peculiares e deve agir a partir delas.

Em 19 de março deste, o corpo legislativo supremo do Reino Unido — o Parlamento — recebeu do Secretário de Estado para a Saúde e Assistência Social, o Coronavirus Bill, um projeto de lei que, em razão da célere tramitação legislativa, ganhou o consentimento da Rainha Elizabeth II em 25 de março último. Assim, o Reino Unido possui agora o Coronavirus Act 2020,[1] regime transitório com vigência inicial de dois anos, possibilitando revisão parlamentar semestral, mas comportando prorrogação ou abreviamento conforme a situação. O texto abrange várias áreas de atuação administrativa e alarga as atribuições governamentais e de agentes públicos, que vão do cadastramento dos profissionais das diversas áreas da saúde à permissão para que as cortes e tribunais utilizem vídeo e tecnologia de áudio para seus trabalhos e audiências.

No tocante à regulação dos contratos de direito privado, o Coronavirus Act trouxe grandes mudanças nas locações residenciais e comerciais. É sabido que o aluguel de imóveis residenciais, sobretudo na Inglaterra, corresponde à aproximadamente metade dos cerca de 30 milhões de domicílios do Reino Unido, um número bastante condizente com a situação atual dos grandes centros urbanos para os quais confluem mão de obra, turistas e estudantes, de maneira que o setor locatício será um dos mais afetados pela pandemia. O Coronavirus Act, visando a amparar o direito tanto dos proprietários de imóveis residenciais quanto dos locatários, estabeleceu o prazo de três meses para que o inquilino inadimplente desocupe o imóvel, contados da notificação de desocupação, independentemente de outra anterior previsão no contrato originário. Findo esse prazo e não havendo a desocupação, poderá o proprietário solicitar a ordem de despejo judicial para retomada da posse direta do bem imóvel, afastada a moratória para os aluguéis referentes ao período afetado pela pandemia.

Especificamente na Irlanda do Norte, no último 4 de maio, o emergencial Private Tenancies (Coronavirus Modifications), com tramitação parlamentar finalizada e já consentido por Sua Majestade, aumentou esse período de notificação de 4 a 8 semanas, como previsto na lei ordinária (Private Tenancies Order 2006), para 12 semanas, disposição esta com vigência até 30 de setembro de 2020.

A respeito dos aluguéis comerciais, o Reino Unido concede uma maior liberdade para as partes contratantes, tanto que, nos casos de retomada do imóvel por descumprimento de obrigação atribuída ao locatário, esses instrumentos não costumam ser regidos pela common law ou por uma  lei de locações, e sim por cláusulas contratuais específicas que dão ao locador maiores poderes de retomada da posse direta. Mesmo assim, o Coronavirus Act abarcou esses contratos de locação comercial, prevendo a suspensão por três meses, a contar da vigência da lei transitória, dessas cláusulas relacionadas à inadimplência dos aluguéis, mas não afetou o direito já existente de o locador se recusar à renovação contratual.

A França, tradicionalmente, possui um ordenamento não muito afeito à revisão contratual, embora nos tenha legado a teoria da imprevisão (que se forma a partir da Loi Failliot, de 1918), de modo que a revisão judicial dos contratos é um acontecimento bastante jovem no direito francês.

Essa resistência à revisão judicial dos contratos é juridicamente difícil de ser mantida nos tempos atuais, em especial neste momento de pandemia. Contudo, a Ordonnance de 10 de fevereiro de 2016, que reformou o Code Civil, é um dos sinais de que o ordenamento jurídico francês se abriu ao debate, haja vista a dicção do art. 1195,[2] que toca à possibilidade de renegociação quando uma mudança imprevisível das circunstâncias, por ocasião da conclusão do contrato, tornar a obrigação excessivamente onerosa para a parte que não consentiu em assumir o risco, a qual continuará a cumprir as obrigações ao longo dessa renegociação (se não realizado acordo direto entre as partes, poderá o juiz proceder à revisão ou rescisão contratual). O momento desta pandemia é uma grande oportunidade para o exercício da aplicação do referido dispositivo pelos magistrados franceses.

De outro lado, a América do Sul tem enfrentado sérios problema no âmbito do direito de família durante esta crise. No Seminário Internacional “Covid-19 y sus efectos en la Litigación de Familia”, promovido por meio eletrônico pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile no dia 23 de abril deste, a  professora Beatriz Ramos, da Universidade da República e da Universidade Católica do Uruguai, ponderou sobre questões como pensão alimentícia, direito de visitas, violência doméstica e alteração de regime de bens. Lembra ela que o Uruguai decretou o feriado nacional sanitário, dias em que os juízos de família têm recebido inúmeras consultas e vêm, por segurança, postergando algumas medidas cautelares e tendo de tomar várias decisões interlocutórias, como descontar dos seguros-desemprego as pensões alimentícias, a fim de garantir a sobrevivência dos alimentandos e vulneráveis.[3]

Na mesma ocasião, o professor peruano Enrique Varsi, da Universidade de Lima e da Universidade Nacional Maior de San Marcos, refletiu sobre a avalanche de situações que estão recaindo sobre o direito de família durante a pandemia, ponderando que os problemas existentes na esfera familiar se acutizaram e tendem a prosseguir (divórcios, separações, mudança de regime de casamento ou união), atraindo a necessidade de um novo marco para as famílias, com base numa solidariedade jurídica mais intensa entre seus integrantes.[4]

Mutatis mutandis, no Brasil, os Poderes estão sendo testados no limite durante esta inesperada pandemia da Covid-19. Com o Poder Judiciário, isso não é diferente: nossa experiência aponta que os momentos de crise trazem enorme aumento de judicialização de demandas (revisão contratual, aplicação da teoria da imprevisão, recuperação judicial, divórcio, alimentos, execuções, cobranças, ações penais e tributárias). Some-se a isso a necessidade de reconstrução ou de construção de bases jurídicas que amparem essas milhares ou milhões de demandas.

Há alguns dias, nesta mesma revista, tive a oportunidade de lembrar que, curiosamente, o Código Civil de 1916 não continha previsão de causas suspensivas, interruptivas ou impeditivas de prazos nos períodos de doenças com impactos gerais na sociedade, embora tal diploma seja contemporâneo a uma época marcada por surtos de dengue e febre amarela. Essa mesma ausência de previsão se repetiu no Código Civil de 2002, cujo legislador, com maiores razões, não supôs ter de enfrentar a esta altura da pós-modernidade, os efeitos jurídicos de uma nova pandemia de rápida expansão e alta virulência. O inimaginável, porém, aconteceu e o ordenamento jurídico nacional viu-se às voltas com a necessidade premente de reger as novas situações, de sorte a prevenir e evitar o colapso dos poderes e instituições, bem como proteger a saúde, as legítimas expectativas e as relações jurídicas dos cidadãos.

No Brasil, a situação exige uma regulação emergencial e transitória apta a fixar orientações para todos nós que lidamos com o direito. Há, também, a necessidade de fixação de balizas temporais para os prazos prescricionais e decadenciais das relações jurídicas especificamente influenciadas pela pandemia da Covid-19. E tudo isso, por óbvio, deve ser realizado sem deixar de observar direitos, sem prescindir da técnica jurídica e sem o intento de suplantar a legislação já existente.

No dia de ontem, 19 de maio de 2020, o plenário do Senado Federal aprovou o texto original do PL 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado — RJET), que segue agora para apreciação presidencial. Tal aprovação se deu, após o colegiado, rejeitar por 62 votos a 15, o substitutivo a referido PL. Ao decidir o Senado pela manutenção do texto original, de autoria de Antonio Anastasia e relatado por Simone Tebet, aprovou-se um destaque que antecipa a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD para agosto de 2020. Isso tornaria o prazo da LGPD aquele previsto na MP 959/2020 (3 de maio de 2021), mas esta, caso não aprovada a tempo, corre o risco de caducar.

Vemos, pois, uma luz para as relações privadas relacionadas direta ou indiretamente à pandemia da Covid-19. Tenho acompanhado bastante de perto as questões que afligem o cidadão brasileiro na atual quadra, principalmente no que toca às relações privadas, de modo que, neste espaço cedido pelo ConJur, pela Revista de Direito Civil Atual e pela Coluna Direito Civil Comparado, procedi, de modo imparcial, à análise transparente e informativa do PL 1.179/2020 nos últimos dias.

É necessária, sim, no ordenamento brasileiro uma lei específica para as relações privadas ora afetadas pela pandemia (os aluguéis, as mensalidades escolares, os prazos prescricionais e decadenciais, os empréstimos contraídos, os alimentos, as visitas, as questões consumeristas, o condomínio, entre outros). E o PL 1.179/2020 propôs-se genuinamente a enfrentar essas tormentosas questões, sem  buscar conflito de interesses, mas com a função de regular as relações privadas durante este período emergencial e transitório, oferecendo um norte para a jurisprudência e os profissionais do direito neste momento crucial, assim como contribuindo para a celeridade e uniformidade na pacificação dos conflitos decorrentes, ainda que reflexamente, da pandemia. É um documento coerente em seu mister, porque o momento atual não é favorável a alterações impensadas da legislação já existente de direito privado.

Renovo, portanto, meus cumprimentos aos juristas que vêm concretizando o  Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) atinente ao período da pandemia da Covid-19, representado pelo PL n. 1.179/2020: o Ministro Dias Toffoli, o Ministro Antonio Carlos Ferreira e o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., da Universidade de São Paulo, que incentivaram a redação do referido documento; bem como os professores Arruda Alvim (da PUC-SP), Fernando Campos Scaff,  Paula Forgioni, Francisco Satiro e Marcelo von Adamek (todos da USP), Rodrigo Xavier Leonardo (da UFPR) e Rafael Peteffi da Silva (da UFSC); além dos advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias. Também, a celeridade com que tem trabalhado o Congresso Nacional, em especial no regime emergencial, tem sido indispensável neste momento em que urgem as leis transitório-emergenciais e demais orientações. A aprovação do PL 1.179/2020 é, antes de mais nada, uma vitória da sociedade brasileira e, na sequência, representa um exemplo de trabalho conjunto entre juristas, acadêmicos, magistrados, advocacia, parlamentares e profissionais do direito!

Sem mais, se lhes posso dizer algumas palavras, minha cara leitora e meu caro leitor, é que, no contexto brasileiro, se torna ainda mais fundamental garantir o acesso à justiça neste momento gravado por complexidades, o que hoje temos procurado suprir, quase diuturnamente, pelos atendimentos eletrônico e remoto. E não basta o acesso à justiça: temos de buscar e apresentar as mais justas soluções para os cidadãos nas relações privadas ou públicas por eles firmadas, cidadãos esses que constituem a razão pela qual trabalha o Poder Judiciário.

Aos magistrados, advogados, promotores de justiça, defensores públicos, mediadores em geral e toda sociedade, estejamos todos preparados para muito trabalho (que não obstante a quantidade, deverá conservar a qualidade de sempre e até mesmo ser aperfeiçoada).

Instituições democráticas fortes, cidadania respeitada!

 é ministro, presidente eleito do Superior Tribunal de Justiça e corregedor nacional de Justiça.

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Opinião: A audiência do artigo 334/CPC na pandemia

Durante o conturbado período atual, com a pandemia da Covid-19, surgem novos fatos que não encontram correspondência direta com o ordenamento jurídico. A tarefa que se impõe a operadores do Direito para adequar-se à realidade é construir o novo a partir dos instrumentos oferecidos pelo sistema normativo concebido em e para tempos de normalidade.

O Processo Civil também sentiu os impactos da pandemia. As limitações impostas pelo distanciamento social fizeram com que os órgãos do Poder Judiciário adotassem medidas para impedir ou restringir ao máximo a prática de atos que demandam a presença dos atores do processo. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou as Resoluções nº 313 e 314, pelas quais determinou a suspensão do atendimento presencial a partes e advogados e estabeleceu a vedação da prática de audiências presenciais, facultando sua realização por meio virtual quando todos os envolvidos tiverem acesso aos meios necessários.

A previsão normativa em questão afetou o procedimento comum logo em seu início, pois, ao acolher a petição inicial, o juiz deverá citar o réu para comparecer à audiência de conciliação, após a qual terá início o prazo para apresentação de resposta (artigo 334 e 335 CPC).

Enquanto o CPC foi estruturado para a tentativa de conciliação presencial, as circunstâncias concretas, não imaginadas de antemão pelo legislador [1], impuseram o desenvolvimento de interpretações para a não realização do ato (“o existente”), e, sobretudo, a criação de soluções tecnológicas para essa fase de processo (“o possível”). 

Diante disso, surgem questionamentos a respeito da viabilidade de realização do ato e da maneira pela qual o procedimento deve funcionar. É preciso investigar o existente, o possível e o desejável em relação à audiência de conciliação do artigo 334 CPC sem descurar, como ponto de partida, da importância de tal ato.

A previsão no CPC de audiência de conciliação para a abertura do procedimento comum veio no bojo de esforço mundial para a racionalização do processo e implantação da cultura dos meios alternativos de resolução de controvérsia, como se percebe nos países que adotam as duas maiores tradições jurídicas ocidentais. Sustenta Loïc Cadiet que o pluralismo do sistema processual não pode se furtar de combinar diversos modos de solução de controvérsias para o máximo alcance da boa Justiça [2].

A legislação processual francesa (Code de procédure civile) estabelece, em seu artigo 21, a missão de conciliação do juiz como um princípio basilar do processo (“Il entre dans la mission du juge de concilier les parties”), oferecendo-lhe estrutura com conciliadores para atingir seu propósito. Os meios alternativos de solução de controvérsias são considerados suas principais tendências [3].

O movimento de reforma do processo civil inglês teve por norte o incentivo à adesão das partes às ADRs (alternative dispute resolution), constando no relatório que antecedeu à implementação da lei processual que o ideal era evitar o litígio o tanto quanto possível [4]. Neil Andrews noticia que juízes comemoraram o êxito dos meios consensuais de solução de conflitos, resolvendo-os por vários métodos, entre os quais a prolação da sentença era apenas um, e o menos desejado. Indica, ainda, que os protocolos pré-litígio enfatizam a responsabilidade das partes de considerarem as ADRs [5].

A tendência de incentivo aos meios alternativos de solução de conflitos encontra apoio também no princípio nº 24 dos Principles of Transnational Civil Procedure [6].

No Brasil, a partir da estrutura do CPC, que conta com dispositivos a respeito da conciliação ao longo do texto, há quem sustente um “princípio do estímulo da solução por autocomposição” [7]. Aliás, no caso brasileiro, a previsão da audiência de conciliação inaugural representa um reencontro com sua história [8].

Como se vê, a audiência de conciliação prevista no artigo 334 do CPC não pode ser tida como formalidade inútil, pois inserida com o fim de cultivar política de conciliação e solução de conflitos por meios alternativos, tônica do cenário mundial.

Atualmente, com a pandemia da Covid-19 obstando a prática de atos que demandam a presença das partes, surgiram notícias sobre alternativas tecnológicas para as audiências presenciais. Há, inclusive, interessante iniciativa do site “Remote Courts Worlwide (https://remotecourts.org) compilando soluções tecnológicas criadas para a prestação jurisdicional no período de quarentena.

O Tribunal de Justiça do Paraná, no âmbito dos Centros Judiciários de Solução de Conflitos e Cidadania, criou um procedimento especial para a realização de sessões de conciliação e mediação, por intermédio de ferramentas virtuais de comunicação (videoconferência, aplicativos de mensagem instantânea, e-mail, chat, aplicativos como Zoom, WhatsApp, Skype ou similares), durante o período de suspensão das audiências presenciais (Portaria nº 3742/2020 Nupemec). Frise-se que a recente Lei 13.994/2020 positivou a possibilidade de realização, no âmbito dos juizados especiais, de conciliação não presencial conduzida mediante o emprego dos recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens em tempo real.

Em se tratando da audiência do artigo 334/CPC, havendo a possibilidade de sua realização de forma virtual, o demandado, quando citado para participar da audiência de conciliação virtual, deve ser cientificado dos meios pelos quais pode manifestar interesse na audiência, e existindo interesse, deve informar qual ferramenta entre as disponíveis ele prefere utilizar, fornecendo seus contatos, como e-mail.

Além do “possível”, pode-se citar um caminho “desejável”, a ser criado a partir da experiência das conciliações virtuais. Richard Susskind, em seu livro “Online Courts and the Future of Justice” defende uma versão estendida dos tribunais (extended courts), através dos quais os usuários de serviços judiciários poderiam ter acesso a ferramentas de orientação, assim como para ter conhecimento das possibilidades de acordos judiciais [9].

Adaptando essa ideia às particularidades de nosso ordenamento e ao tema ora tratado, pode-se dizer que as audiências de conciliação virtuais poderiam ser precedidas de chats entre as partes, com a intermediação de “robôs”, os quais teriam um papel mais ativo na busca da solução consensual. A utilização de chatbot no Judiciário não é uma novidade e há interessantes iniciativas, como por exemplo do Tribunal de Justiça de Roraima, para comunicação com usuários e automação de tarefas repetitivas [10].

Todavia, para avançar nesse tema, é necessário (e desejável) o desenvolvimento de ferramentas de integração do banco de dados de jurisprudências, do respectivo órgão julgador ou tribunal, fazendo com que o chatbot possa informar às partes os possíveis precedentes aplicáveis ao caso, o que auxiliaria nas discussões para realização de soluções consensuais. Por exemplo: o autor postula a condenação do demandado pela prática de danos morais, em virtude de cobrança indevida, requerendo o valor de R$ 10 mil. O demandado, no ambiente virtual prévio à audiência conciliatória, oferece o valor de R$2 mil para a realização de acordo. O robô, em consulta ao respectivo banco de dados, pode trazer às partes decisões prolatadas em casos análogos, por exemplo, com o entendimento de que o respetivo juízo tem decisões condenatórias, no importe de R$5 mil, em casos análogos.

O sistema de conciliação automatizado (prévio à audiência) deve possuir uma interface amigável (user-friendly), seja em termos jurídicos, considerando que eventualmente partes sem advogado irão utilizá-lo, seja em relação ao conhecimento de informática [11]. Além de facilitar o diálogo entre as partes, tal ferramenta auxiliaria o trabalho dos conciliadores na audiência. Com efeito, não se trata de uma pesquisa aprofundada, como aquelas que eventualmente serão realizadas pelos atores processuais, e também o sistema não deve realizar uma análise do mérito do caso concreto. Deve ser uma ferramenta simples, de fácil acesso e utilização, diante do propósito para o qual foi criada [12].

O problema surge da constatação que nem sempre o “possível” e o “desejável” estão ao alcance. O acesso aos meios eletrônicos e o seu domínio pelos atores do processo não são triviais, e a própria Resolução nº 314 do CNJ cuidou de ressalvar que, diante de impossibilidade técnica de realização de atos processuais pelo meio virtual, estes deverão ser adiados. Diante deste quadro, cabe ao juiz trabalhar com o “existente”, extraindo da lógica do sistema jurídico processual espaço para promover a adequação do procedimento.

Isso porque a previsão legal da audiência não pode vir em sentido oposto à sua finalidade. Os esforços para uma cultura de conciliação não podem inviabilizar a tutela do direito. O juiz, na condução do processo, deve observar se o procedimento tem o condão de colocar fim à controvérsia a partir dos valores defendidos pelo próprio procedimento. O juiz não deve assumir papel de expectador passivo diante de reflexos negativos na marcha processual decorrentes da observância de procedimento que não se adequa às necessidades da causa ou quando não dispõe de instrumentos para o seu impulso na forma como concebido.

Com efeito, ainda que tenha havido certa incompreensão do legislador quanto ao papel do juiz na condução do procedimento que culminou na retirada do anteprojeto do CPC de poder expresso do juiz de flexibilizá-lo o fato é que o ordenamento jurídico impõe ao magistrado, em observância ao devido processo, que obste a prática de atos que retire do processo sua eficiência e sua lógica de funcionamento. Os clamores legais por eficiência, economia e celeridade, com exigências de atuação ativa do juiz, não permitem pensar em sentido contrário, anotando a doutrina que é “dever do juiz adequar o procedimento às necessidades do conflito, para tutelar de modo mais efetivo a pretensão que é deduzida” [13].

Se ao juiz é dada atividade criativa do Direito quando prolata decisão de mérito [14], soa razoável que a ele também seja dado conformar o procedimento às necessidades do direito a ser tutelado, desde que isso não implique violação a direitos processuais das partes e decorra de decisão motivada e de efetiva necessidade [15], com vista nos instrumentos que a lei oferece.

A partir daí, e não havendo caminhos para garantir a realização da audiência de conciliação, torna-se necessária a adequação do procedimento para afastar a necessidade do ato, seguindo o feito já para apresentação de defesa, tal como a lei processual prevê para procedimentos especiais.

O contexto de isolamento social dá espaço para interpretação do artigo 334, §4º, II, do CPC adequada à realidade por ela imposta. Na atual conjuntura, não sendo possível a realização da audiência virtual, torna-se inviável a autocomposição, não pela natureza do direito em litígio, mas pela segurança dos atores envolvidos e pela constatação de que a obrigatoriedade de sua realização não pode significar ressalva à inafastabilidade da jurisdição (artigo 5º, XXXV, CF). Embora não seja essa a interpretação que inicialmente se extrai da norma, é preciso lembrar que em tempos de excepcionalidade a relação entre fatos e norma adquire contornos novos, originalmente não considerados.  

Além mais, é possível que o juiz, a partir dos poderes que ressaem do artigo 3º, §2º, e do artigo 139, V, do CPC, promova a realização de audiência de conciliação no curso do procedimento, sem contar a possibilidade de as partes, por si sós, aproximarem-se para tal desiderato. A adaptação do procedimento para que este prossiga com a defesa do réu após sua citação encontra amparo na lógica de funcionamento de outros procedimentos previstos em lei e na recente tradição processual brasileira. Tal atitude não decorreria de criação a partir de mera discricionariedade do juiz, mas de uso da analogia em caso de lacuna da lei (artigo 4º, LINDB) para situações de funcionamento excepcional do sistema de Justiça.

O comprometimento do sistema de Justiça com a cultura da conciliação e sua atuação como agente transformador da lógica da litigância impõem buscas efetivas entre o “possível e o “desejável para a garantia da realização da audiência de conciliação do artigo 334 do CPC. Prestigiar a conciliação significa entregar às partes a solução dos seus problemas, realçando a finalidade da jurisdição de busca pela pacificação social. Todavia, os caminhos alternativos de solução de conflitos pressupõem meios seguros, pouco custosos e eficientes para o alcance de seu objetivo. A ausência dessas condições e as limitações de recursos materiais e humanos não podem obstruir o andamento do procedimento, de modo que trabalhar com o “existente enxergando no ordenamento espaço para adequar o procedimento com a superação daquela fase inicial pode ser, ainda que como movimento excepcional, importante alternativa a ser considerada.

 


[1] Essa reflexão remete à ideia de derrotabilidade e à constatação de que o legislador não consegue antecipar todas as situações fáticas em torno da aplicação de determinada norma. Sobre o tema, veja-se obra do primeiro autor, Hermenêutica Jurídica e Derrotabilidade.

[2] CADIET, Loïc. El equilíbrio entre la rigidez y la flexibilidad en el proceso: elementos de teoría general del proceso y de derecho procesal comparado. In: ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel (coord.). O Processo civil entre a técnica processual e a tutela dos direitos: estudos em homenagem a Luiz Guilherme Marinoni. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2017. p. 143-153.

[3] OLIVEIRA, Paulo Mendes. Segurança jurídica e processo. Da rigidez à flexibilização processual. São Paulo: RT, 2018. p. 92.

[4]Em “Lord Woolf’s Access to Justice reports”. Sobre o relatório e sua investida em prol de meios alternativos de controvérsia: GERLIS, Stephen; LOUGHLIN, Paula. Civil Procedure. 2. Ed. Londres: Routledge, 2012. p. 106-107.

[5] ANDREWS, Neil. O moderno processo civil. Formas judiciais e alternativas de resolução de conflito na Inglaterra. Orientação e revisão da tradução de Teresa Arruda Alvim. 2. Ed. São Paulo: RT, 2012. p. 350.

[7] DIDIER JR, Fredie. Curso de processo civil: introdução ao direito processual civil. 17. Ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 274.

[8] Conforme lei de 29 de novembro de 1832, que estabelecia disposição provisória sobre a Administração da Justiça Civil. Os primeiros artigos do Anexo tratavam do início do procedimento a partir de tentativa de conciliação, diante de juízes de paz.

[9] “The more general conception is of a system that takes advantage of technology and is able to extend its reach beyond the tradicitional remit of traditional courts. On the model, technology can and should enable courts to deliver more than judicial decisions. The extended courts provide tools, for exemple, that can help court users understand relevant law and the options available [sic] to them. They can guide users in completing court forms, and help them to formulate their argumetns and assemble their evidence. They can also offer various forms of non-judicial settlement such as negotiation and early neutral evaluation, not as and alternative to the public court system but as part of it”. (SUSSKIND, Richard. Online Courts and the Future of Justice. Oxford University Press, 2019. p. 06).

[11] “If user of online courts are not lawyers, however, they will clearly need some help in navigating the systems”. (SUSSKIND, Richard. op. cit. p. 126).

[13] MARINONI, et. al. Código de Processo Civil comentado artigo por artigo. São Paulo: RT, 2016. p. 213.

[14] CAPPELLETTI, Mauro. Juízes legisladores? Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris editor, 1993.

[15] GAJARDONI, Fernando da Fonseca. Flexibilização procedimental. Um novo enfoque para o estudo do procedimento em matéria processual. São Paulo: Atlas, 2008.

 é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Paraná, mestrando em Direito pela Universidade Federal do Paraná e especialista pela Academia Brasileira de Direito Constitucional.

 é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Paraná, doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná.