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A aprovação do PL 1.179 e uma perspectiva do direito comparado

A crise sanitária mundial exigiu que os países adotassem medidas emergenciais para refrear a expansão do vírus enquanto não se lhe conhece a cura, mas também medidas político-econômico-sociais e jurídicas que se destinem a evitar consequências maiores ou  que se prorroguem no tempo e venham a comprometer implacavelmente os dias futuros.

Dada a excepcionalidade desta situação — sem precedentes em termos de contágio e alastramento internacional —, a lei aplicável durante a crise e seus efeitos também deve ser excepcional, pois nenhuma lei ordinária poderia antever a magnitude e os efeitos plúrimos de uma doença como esta que agora enfrentamos.

Antes de passarmos ao ordenamento brasileiro, notemos que, no contexto do direito dos demais países, a situação jurídica não é diferente. Dificuldades há aqui e ali. E destaco, de antemão, que é impossível fazer um escrutínio acerca dos diversos países, mas o fato de conhecermos os problemas e soluções experimentados por alguns deles amplia o nosso horizonte para a solução dos nossos próprios problemas. Embora a pandemia nivele a todos no temor de sua virulência e nos seus impactos psicológicos, é fato que cada país tem suas estruturas peculiares e deve agir a partir delas.

Em 19 de março deste, o corpo legislativo supremo do Reino Unido — o Parlamento — recebeu do Secretário de Estado para a Saúde e Assistência Social, o Coronavirus Bill, um projeto de lei que, em razão da célere tramitação legislativa, ganhou o consentimento da Rainha Elizabeth II em 25 de março último. Assim, o Reino Unido possui agora o Coronavirus Act 2020,[1] regime transitório com vigência inicial de dois anos, possibilitando revisão parlamentar semestral, mas comportando prorrogação ou abreviamento conforme a situação. O texto abrange várias áreas de atuação administrativa e alarga as atribuições governamentais e de agentes públicos, que vão do cadastramento dos profissionais das diversas áreas da saúde à permissão para que as cortes e tribunais utilizem vídeo e tecnologia de áudio para seus trabalhos e audiências.

No tocante à regulação dos contratos de direito privado, o Coronavirus Act trouxe grandes mudanças nas locações residenciais e comerciais. É sabido que o aluguel de imóveis residenciais, sobretudo na Inglaterra, corresponde à aproximadamente metade dos cerca de 30 milhões de domicílios do Reino Unido, um número bastante condizente com a situação atual dos grandes centros urbanos para os quais confluem mão de obra, turistas e estudantes, de maneira que o setor locatício será um dos mais afetados pela pandemia. O Coronavirus Act, visando a amparar o direito tanto dos proprietários de imóveis residenciais quanto dos locatários, estabeleceu o prazo de três meses para que o inquilino inadimplente desocupe o imóvel, contados da notificação de desocupação, independentemente de outra anterior previsão no contrato originário. Findo esse prazo e não havendo a desocupação, poderá o proprietário solicitar a ordem de despejo judicial para retomada da posse direta do bem imóvel, afastada a moratória para os aluguéis referentes ao período afetado pela pandemia.

Especificamente na Irlanda do Norte, no último 4 de maio, o emergencial Private Tenancies (Coronavirus Modifications), com tramitação parlamentar finalizada e já consentido por Sua Majestade, aumentou esse período de notificação de 4 a 8 semanas, como previsto na lei ordinária (Private Tenancies Order 2006), para 12 semanas, disposição esta com vigência até 30 de setembro de 2020.

A respeito dos aluguéis comerciais, o Reino Unido concede uma maior liberdade para as partes contratantes, tanto que, nos casos de retomada do imóvel por descumprimento de obrigação atribuída ao locatário, esses instrumentos não costumam ser regidos pela common law ou por uma  lei de locações, e sim por cláusulas contratuais específicas que dão ao locador maiores poderes de retomada da posse direta. Mesmo assim, o Coronavirus Act abarcou esses contratos de locação comercial, prevendo a suspensão por três meses, a contar da vigência da lei transitória, dessas cláusulas relacionadas à inadimplência dos aluguéis, mas não afetou o direito já existente de o locador se recusar à renovação contratual.

A França, tradicionalmente, possui um ordenamento não muito afeito à revisão contratual, embora nos tenha legado a teoria da imprevisão (que se forma a partir da Loi Failliot, de 1918), de modo que a revisão judicial dos contratos é um acontecimento bastante jovem no direito francês.

Essa resistência à revisão judicial dos contratos é juridicamente difícil de ser mantida nos tempos atuais, em especial neste momento de pandemia. Contudo, a Ordonnance de 10 de fevereiro de 2016, que reformou o Code Civil, é um dos sinais de que o ordenamento jurídico francês se abriu ao debate, haja vista a dicção do art. 1195,[2] que toca à possibilidade de renegociação quando uma mudança imprevisível das circunstâncias, por ocasião da conclusão do contrato, tornar a obrigação excessivamente onerosa para a parte que não consentiu em assumir o risco, a qual continuará a cumprir as obrigações ao longo dessa renegociação (se não realizado acordo direto entre as partes, poderá o juiz proceder à revisão ou rescisão contratual). O momento desta pandemia é uma grande oportunidade para o exercício da aplicação do referido dispositivo pelos magistrados franceses.

De outro lado, a América do Sul tem enfrentado sérios problema no âmbito do direito de família durante esta crise. No Seminário Internacional “Covid-19 y sus efectos en la Litigación de Familia”, promovido por meio eletrônico pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile no dia 23 de abril deste, a  professora Beatriz Ramos, da Universidade da República e da Universidade Católica do Uruguai, ponderou sobre questões como pensão alimentícia, direito de visitas, violência doméstica e alteração de regime de bens. Lembra ela que o Uruguai decretou o feriado nacional sanitário, dias em que os juízos de família têm recebido inúmeras consultas e vêm, por segurança, postergando algumas medidas cautelares e tendo de tomar várias decisões interlocutórias, como descontar dos seguros-desemprego as pensões alimentícias, a fim de garantir a sobrevivência dos alimentandos e vulneráveis.[3]

Na mesma ocasião, o professor peruano Enrique Varsi, da Universidade de Lima e da Universidade Nacional Maior de San Marcos, refletiu sobre a avalanche de situações que estão recaindo sobre o direito de família durante a pandemia, ponderando que os problemas existentes na esfera familiar se acutizaram e tendem a prosseguir (divórcios, separações, mudança de regime de casamento ou união), atraindo a necessidade de um novo marco para as famílias, com base numa solidariedade jurídica mais intensa entre seus integrantes.[4]

Mutatis mutandis, no Brasil, os Poderes estão sendo testados no limite durante esta inesperada pandemia da Covid-19. Com o Poder Judiciário, isso não é diferente: nossa experiência aponta que os momentos de crise trazem enorme aumento de judicialização de demandas (revisão contratual, aplicação da teoria da imprevisão, recuperação judicial, divórcio, alimentos, execuções, cobranças, ações penais e tributárias). Some-se a isso a necessidade de reconstrução ou de construção de bases jurídicas que amparem essas milhares ou milhões de demandas.

Há alguns dias, nesta mesma revista, tive a oportunidade de lembrar que, curiosamente, o Código Civil de 1916 não continha previsão de causas suspensivas, interruptivas ou impeditivas de prazos nos períodos de doenças com impactos gerais na sociedade, embora tal diploma seja contemporâneo a uma época marcada por surtos de dengue e febre amarela. Essa mesma ausência de previsão se repetiu no Código Civil de 2002, cujo legislador, com maiores razões, não supôs ter de enfrentar a esta altura da pós-modernidade, os efeitos jurídicos de uma nova pandemia de rápida expansão e alta virulência. O inimaginável, porém, aconteceu e o ordenamento jurídico nacional viu-se às voltas com a necessidade premente de reger as novas situações, de sorte a prevenir e evitar o colapso dos poderes e instituições, bem como proteger a saúde, as legítimas expectativas e as relações jurídicas dos cidadãos.

No Brasil, a situação exige uma regulação emergencial e transitória apta a fixar orientações para todos nós que lidamos com o direito. Há, também, a necessidade de fixação de balizas temporais para os prazos prescricionais e decadenciais das relações jurídicas especificamente influenciadas pela pandemia da Covid-19. E tudo isso, por óbvio, deve ser realizado sem deixar de observar direitos, sem prescindir da técnica jurídica e sem o intento de suplantar a legislação já existente.

No dia de ontem, 19 de maio de 2020, o plenário do Senado Federal aprovou o texto original do PL 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado — RJET), que segue agora para apreciação presidencial. Tal aprovação se deu, após o colegiado, rejeitar por 62 votos a 15, o substitutivo a referido PL. Ao decidir o Senado pela manutenção do texto original, de autoria de Antonio Anastasia e relatado por Simone Tebet, aprovou-se um destaque que antecipa a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD para agosto de 2020. Isso tornaria o prazo da LGPD aquele previsto na MP 959/2020 (3 de maio de 2021), mas esta, caso não aprovada a tempo, corre o risco de caducar.

Vemos, pois, uma luz para as relações privadas relacionadas direta ou indiretamente à pandemia da Covid-19. Tenho acompanhado bastante de perto as questões que afligem o cidadão brasileiro na atual quadra, principalmente no que toca às relações privadas, de modo que, neste espaço cedido pelo ConJur, pela Revista de Direito Civil Atual e pela Coluna Direito Civil Comparado, procedi, de modo imparcial, à análise transparente e informativa do PL 1.179/2020 nos últimos dias.

É necessária, sim, no ordenamento brasileiro uma lei específica para as relações privadas ora afetadas pela pandemia (os aluguéis, as mensalidades escolares, os prazos prescricionais e decadenciais, os empréstimos contraídos, os alimentos, as visitas, as questões consumeristas, o condomínio, entre outros). E o PL 1.179/2020 propôs-se genuinamente a enfrentar essas tormentosas questões, sem  buscar conflito de interesses, mas com a função de regular as relações privadas durante este período emergencial e transitório, oferecendo um norte para a jurisprudência e os profissionais do direito neste momento crucial, assim como contribuindo para a celeridade e uniformidade na pacificação dos conflitos decorrentes, ainda que reflexamente, da pandemia. É um documento coerente em seu mister, porque o momento atual não é favorável a alterações impensadas da legislação já existente de direito privado.

Renovo, portanto, meus cumprimentos aos juristas que vêm concretizando o  Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) atinente ao período da pandemia da Covid-19, representado pelo PL n. 1.179/2020: o Ministro Dias Toffoli, o Ministro Antonio Carlos Ferreira e o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., da Universidade de São Paulo, que incentivaram a redação do referido documento; bem como os professores Arruda Alvim (da PUC-SP), Fernando Campos Scaff,  Paula Forgioni, Francisco Satiro e Marcelo von Adamek (todos da USP), Rodrigo Xavier Leonardo (da UFPR) e Rafael Peteffi da Silva (da UFSC); além dos advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias. Também, a celeridade com que tem trabalhado o Congresso Nacional, em especial no regime emergencial, tem sido indispensável neste momento em que urgem as leis transitório-emergenciais e demais orientações. A aprovação do PL 1.179/2020 é, antes de mais nada, uma vitória da sociedade brasileira e, na sequência, representa um exemplo de trabalho conjunto entre juristas, acadêmicos, magistrados, advocacia, parlamentares e profissionais do direito!

Sem mais, se lhes posso dizer algumas palavras, minha cara leitora e meu caro leitor, é que, no contexto brasileiro, se torna ainda mais fundamental garantir o acesso à justiça neste momento gravado por complexidades, o que hoje temos procurado suprir, quase diuturnamente, pelos atendimentos eletrônico e remoto. E não basta o acesso à justiça: temos de buscar e apresentar as mais justas soluções para os cidadãos nas relações privadas ou públicas por eles firmadas, cidadãos esses que constituem a razão pela qual trabalha o Poder Judiciário.

Aos magistrados, advogados, promotores de justiça, defensores públicos, mediadores em geral e toda sociedade, estejamos todos preparados para muito trabalho (que não obstante a quantidade, deverá conservar a qualidade de sempre e até mesmo ser aperfeiçoada).

Instituições democráticas fortes, cidadania respeitada!

 é ministro, presidente eleito do Superior Tribunal de Justiça e corregedor nacional de Justiça.

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Angela Gimenez: Guarda dos filhos em tempos de pandemia

A pandemia da Covid-19 alcançou o Brasil, aproximadamente, em 13 de março deste ano, surpreendendo a todos com a notícia do seu alto contágio, da sua letalidade, da ausência de remédio para combatê-lo e da inexistência de vacina.

Por tais razões, as autoridades sanitárias recomendaram o confinamento social, desaconselhando o trânsito de pessoas e o contato com quem tivesse efetuado, qualquer viagem, pelo período mínimo de 14 dias (quarentena).

Ante esse fenômeno, presenciamos mães (em sua grande maioria) entendendo que as crianças, mesmo as que se encontravam sob o regime de guarda compartilhada, não poderiam conviver com seus dois genitores e com suas famílias extensas, sob o argumento de que a alternância de locais as deixariam mais expostas ao contágio.

Por serem, muitas vezes, decisões unilaterais, os pais passaram a buscar o Poder Judiciário para garantir seu direito de convivência com os filhos, resguardadas as orientações da saúde pública.

Nos primeiros dias, notaram-se decisões liminares que mantiveram o status quo da criança, fazendo com que ela permanecesse, por tempo indeterminado, com quem ela estivesse no momento em que a pandemia se instalou.

Um outro argumento utilizado, na ocasião, foi a necessidade de preservação dos avós, já que se alertava para o fato de as crianças poderem ser hospedeiras do vírus, de maneira assintomática, colocando em risco a população idosa, que se apresenta como mais vulnerável à gravidade da doença.

No entanto, com o passar dos dias, reconheceu-se que a permanência indiscriminada das crianças com apenas um guardião, por longo tempo, não se afinava com o princípio da proteção integral devida à população infanto-juvenil e que o trabalho a ser feito era o de análise particular de cada caso, com o objetivo de se apurar as melhores condições de proteção e cuidado dos filhos em cada família.

Os juízes passaram, então, a apreciar cada pedido de convívio sob a ótica do modelo legal vigente, que é o compartilhamento do tempo dos filhos com seus dois genitores e, não havendo diferenciação das condições entre pais e mães, tais como a ausência de comorbidades, a custódia física de ambos restou garantida, sempre com a adoção dos cuidados de higiene e de prevenção recomendados pela OMS e as autoridades nacionais.

Percebeu-se, também, que não se podia generalizar a situação dos avós, porque ser avô não é sinônimo de ser idoso, ante à existência de um grande contingente de jovens avós. Esse mais um fator a ser verificado caso a caso.

Olhando as inúmeras ações que têm chegado à Justiça, era de se estimar que, dada à excepcionalidade da situação atualmente vivida, os pais e mães buscassem um consenso, evitando-se a judicialização, em ocasião de notória transitoriedade, já que uma nova demanda gera ônus para as partes, ônus para o Poder Judiciário e elevado desgaste para os filhos. Porém, não tem sido essa a prática observada, até o momento, restando ao Poder Judiciário a tarefa de analisar as várias circunstâncias que envolvem as questões familiares postas à sua apreciação.

Os riscos da guarda unilateral durante o confinamento
O compartilhamento equilibrado do tempo do filho com seus dois genitores é o modelo legal a ser garantido, então, para que ele ocorra de forma segura, alguns critérios devem ser observados, tais como:

1) Evitar-se o translado das crianças e adolescentes em espaços muito curtos de tempo, ou seja, priorizar uma convivência mais concentrada, sem alternância breves e frequentes;

2) Verificação da situação de saúde dos genitores e, destacadamente, da criança;

3) Verificação de situações especiais de risco (genitores ou familiares que estejam em trabalho essencial; que se desloquem com frequência por viagens de trabalho ou por outros motivos; que residam em condições de menor salubridade, como por exemplo comunidade de alto índice populacional e pouco espaço físico); que sejam idosos, etc.

4) Se o genitor cuida sozinho da criança ou se recebe apoio de terceiros (parentes ou funcionários);

5) Se o translado da criança é feito por transporte público ou particular, entre outros.

Sobre os critérios é importante destacar que a permanência da criança somente com um genitor e aqui, diremos a mãe, já que o número de mães que têm permanecido com os filhos é bem superior, pode trazer consequências danosas para a segurança e o desenvolvimento dos filhos, assim como perpetuar uma desigualdade entre homens e mulheres. Isso porque:

1) Provoca sobrecarga à mãe, fazendo com que o confinamento se restrinja ao cuidado e atenção ao filho, sem descanso, sem espaço pessoal e de privacidade;

2) As incertezas sociais e econômicas geram ansiedade e tensões nos adultos, propiciando a reprovável aplicação de castigos físicos às crianças que igualmente se encontram confinadas e irrequietas;

3) O tempo indefinido de afastamento do outro responsável provoca sofrimento e angústia nos filhos, principalmente para as crianças pequenas que não entendem as razões do “desaparecimento” do pai, associando o seu sumiço à sua morte;

4) A angústia experimentada pelas crianças e seu elevado estado de ansiedade podem avançar para um estágio de depressão, como também provocar redução imunológica em tempos de pandemia;

5) Privação de alimento, decorrente de diminuição ou interrupção do pagamento de pensão alimentícia, restando prejudicado, também, o tempo em que a criança se alimentaria no lar paterno, durante o convívio. Agravamento aqui pelas dificuldades econômicas que a mãe, igualmente, pode estar atravessando, como por exemplo em decorrência de desemprego.

6) Diminuição ou perda do vínculo paterno-filial de afeto, com a impossibilidade do contato físico e acompanhamento/participação da rotina da criança.

7) Perda do direito da criança de possuir dupla referência e acolhimento de suas duas famílias.

8) Exposição à violência doméstica por desentendimento entre genitor(a) e padrasto/madrasta, outros irmãos, uso de álcool e drogas pelos adultos, em razão do confinamento;

9) Risco de as crianças permanecerem sozinhas ou nas ruas, já que não há escola, quando seu guardião exclusivo tem de sair para trabalhar, ainda que na informalidade.

Tendo em mente que os itens acima são meros exemplos, uma vez que muitas outras consequências poderão ser enfrentadas e que, também, durante a pandemia, a guarda compartilhada deve ser implementada pelo princípio da corresponsabilidade existente entre pais e mães e para se garantir o desenvolvimento integral dos filhos.

Pandemia e alienação parental
Com a vigência da Lei nº 13.058/2014 estabeleceu-se no país o reconhecimento expresso da igualdade parental entre os genitores, o que significa que, estando ambos aptos ao exercício do poder parental, não há razão para se priorizar um guardião em detrimento do outro, no que se refere à convivência parental.

Aliás, o artigo 1583, §2º, do Código Civil determina que, na hipótese de dissenso entre os pais, o Poder Judiciário deverá ser chamado à tarefa de harmonização do convívio, promovendo uma divisão equilibrada do tempo dos filhos com os dois guardiões [1].

Isso porque a aptidão para o poder familiar é presumida pela lei. Trata-se de presunção juris tantum e, por isso, para o seu afastamento, torna-se necessária a apresentação de indícios ou provas da possível inaptidão.

Inexistindo na petição inicial qualquer alegação de risco, o juiz deve, prontamente, disciplinar o compartilhamento de forma equilibrada, não determinando estudos ou outras diligências prévias que somente deverão ser efetivadas ao longo da instrução processual, ou seja, depois que a criança tenha, liminarmente, garantido o seu direito de acolhimento e cuidado de seus dois genitores, afastando-se a hipótese de ausência ou quebra de vínculo com um deles ou a instalação de alienação parental. A determinação de estudo psicológico e social no início do processo é desaconselhada, também, porque desfavorece a possibilidade de um acordo, já que, muitas vezes, o conteúdo dos laudos acirra os ânimos entre os demandantes.

Além disso, a demora judicial traz um custo emocional alto para todos os envolvidos, especialmente, para os vulneráveis. A demora gera nas pessoas elevada angústia, solidão e, principalmente, o sentimento de impotência, podendo levar, até mesmo, a problemas de saúde em decorrência do alto nível de ansiedade e desalento.

A guarda é uma estrutura de poder e o compartilhamento rompe com essa estrutura. Lembro aqui o trágico caso no menino Bernardo que, impossibilitado de convívio com suas duas famílias, restou desprotegido da ânsia de seu guardião exclusivo e de sua família, até a morte aos nove anos de idade.

A alienação parental é um fenômeno psíquico, advindo, muitas vezes, da frustração pelo rompimento da união e pelo processo de luto pós-separação. No período de elevado sofrimento é possível e até comum que a pessoa se afaste de seus projetos existenciais e de suas realizações pessoais, colocando o filho em um lugar delicado e perigoso, o de única gratificação daquele(a) genitor(a). Esvaziado, aquele guardião pratica a alienação parental até mesmo de forma inconsciente e, o que é mais grave, sob um discurso de amor e proteção.

Por isso o tempo é tão importante. A alienação parental necessita de tempo para se instalar e se consolidar.

Além do tempo, um segundo fator se mostra determinante para o incremento e persistência da prática alienadora que diz respeito à rede de apoio ao alienador. Sem a conivência e o suporte de familiares, amigos, vizinhos, professores e de até agentes de saúde e terapeutas, o liame da alienação parental não tem como se sustentar.

Atualmente, a pandemia tem se revelado como um forte elemento que passa a compor o discurso do alienador que quer demonstrar que sua obstrução ao convívio do outro se dá por cuidado para com o filho. O risco de contágio e o desconhecimento de antídoto para o coronavírus têm perpassado nossas análises, reações e decisões, por isso o risco de se tornar um argumento de fácil aceitação e enganosa boa-fé de quem o propaga.

Desse modo, inexistindo situações de desigualdade entre as condições oferecidas pelos dois responsáveis legais ou perigo diferenciado de contágio, por situação peculiar, nenhuma razão persiste para que a criança, durante o tempo de pandemia, fique impedida de conviver com seu pai, com sua mãe e com suas famílias extensas, evitando-se, assim, a possibilidade de violência, retratada pelo abuso emocional que é alienação parental. O Poder Judiciário tem de se afastar dessa armadilha.

Alguns têm afirmado que o tempo exclusivo de um genitor durante o período de isolamento social pode vir a ser compensado, posteriormente, argumento que não se sustenta. Primeiro, porque se estamos falando de situação de alienação parental em que há uma elevada dificuldade de se fazer o compartilhamento existir na prática da vida, imagine se este convívio tiver de ser diferido, em desfavor do alienador, em momento futuro. Segundo, porque o tempo de vida não é compensável, uma vez que, perdido este, não volta e as fases passadas não se repetem.

Conclusão
Imersos numa nova realidade, é dever de todos buscar, o quanto possível, a consensualidade como forma de solução rápida e particular para cada situação familiar apresentada. Com as alterações das condições fáticas, tem de se prestigiar a cláusula geral da boa-fé objetiva, contida no Código Civil, assim como o princípio constitucional da solidariedade social [2], que fundamentam o dever de renegociar [3] para se construir uma solução rápida, segura e justa, sem depender exclusivamente do Poder Judiciário.

Essa responsabilidade geral é destinada a todos os atores jurídicos, porém um relevo é atribuído aos advogados e defensores que, como diz o professor Darlan Barroso, são os “porteiros do Sistema Multiportas”. Muitas alternativas podem ser apresentadas às partes que não necessariamente a judicialização. Temos as práticas colaborativas, conciliações, mediações, o Direito sistêmico, a Justiça restaurativa, entre outras.

A contemporaneidade apresenta desafios que só poderão ser superados se mudarmos nosso mindset com projetos inovadores que incluem seres humanos renovados. A era da litigiosidade está sendo substituída pela cooperação e pela consensualidade, até porque hoje o Brasil enfrenta o contingente de 220 milhões de processos para 18 mil juízes.

As famílias nos seus múltiplos formatos têm como base a convivência, direito constitucionalmente amparado, devendo os seus integrantes serem os protagonistas de seus projetos de felicidade, deixando para o Judiciário apenas as situações de proteção às vulnerabilidades. Os filhos devem ser cuidados e protegidos por seus dois genitores. Essa convivência compartilhada deve significar um espaço valioso de humanização das novas gerações. O modelo passado de negligência ao convívio amplo já demonstrou seus severos prejuízos.

Há de se amadurecer… e esse é o momento. Com a pandemia percebemos nossa finitude e submissão às intempéries da vida. Mudemos! O porvir é hoje.

 

Angela Gimenez é juíza do Tribunal de Justiça do Estado de Mato Grosso e palestrante na área do Direito das Famílias.

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Opinião: Análise concorrencial de fusões e aquisições

A aquisição de participação pela Amazon na Deliveroo, uma das principais empresas de entregas de restaurantes e mercados em domicílio no Reino Unido, foi aprovada, em caráter provisório, pela Competition and Markets Authority – CMA em abril. Inicialmente, a análise do caso levantava questões interessantes sobre concorrência potencial, possibilidade de entrada e iniciativas disruptivas em mercados ainda nascentes como o de aplicativos para entregas em domicílio. Também neste caso, contudo, a crise econômica e sanitária da Covid-19 roubou a cena e expôs dois desafios a serem enfrentados por autoridades de defesa da concorrência em todo o mundo, incluindo o Conselho Administrativo de Defesa Econômica — Cade no Brasil.

O primeiro desafio das agências antitruste será ter flexibilidade suficiente para identificar transações que, mesmo que resultem em redução da concorrência, sejam menos prejudiciais que a saída de empresas do mercado devido à crise. No caso Amazon/Deliveroo, a CMA havia identificado inicialmente que a operação poderia resultar em uma redução da concorrência. Em síntese, a operação reduziria os incentivos para que a Amazon voltasse ao mercado de entregas de restaurantes — a empresa era concorrente da Deliveroo até 2018, quando decidiu sair desse mercado, mas havia indicações de que ela poderia voltar a atuar. Além disso, para a CMA, a operação aumentaria a concentração em entregas de supermercados, onde tanto Amazon quanto Deliveroo eram players importantes em um segmento nascente. Assim, no fim de 2019, a CMA decidiu aprofundar a análise para verificar se a operação demandaria restrições ou deveria até mesmo ser bloqueada.  

A situação, no entanto, mudou drasticamente com os efeitos da pandemia da Covid-19. Segundo a CMA, assim como outras empresas de entregas em domicílio, a Deliveroo ainda é dependente de injeções contínuas de capital para manter a expansão de suas operações. Com o “lockdown” do Reino Unido a partir do final de março, a empresa teve sua receita substancialmente reduzida, fazendo com que sua situação financeira se tornasse insustentável em pouco tempo. O investimento feito pela Amazon por meio da aquisição de participação na Deliveroo se tornou, com isso, essencial para que a empresa não entrasse em falência e, consequentemente, saísse em definitivo do mercado.

A lógica que sustentou a aprovação do caso Amazon Deliveroo é relativamente simples: pode ser melhor, para a livre concorrência, autorizar uma operação que garanta sobrevivência de uma empresa, ainda que isso resulte em concentração de mercado, do que reprovar a operação e, ao impedir o investimento, fazer com que a empresa em questão deixe o mercado. Trata-se de uma linha argumentativa já conhecida há décadas pelo direito da concorrência como “failing firm defense” ou, como chamada pela CMA, “exiting firm scenario”. 

Embora a lógica base do argumento seja relativamente simples e intuitiva, sua aplicação prática não é trivial. É usualmente necessária uma análise extensa dos fatos para que se possa evitar que o argumento seja desvirtuado e utilizado de maneira oportunista para

aprovação de operações que causem grande prejuízo à concorrência. No caso, a CMA realizou análise detalhada dos fatos, pautada em três etapas centrais. Primeiro, a CMA examinou se a Deliveroo de fato deixaria o mercado não fosse pelo investimento da Amazon. Na sequência, além da constatação da rápida deterioração da situação financeira da Deliveroo que a levaria à saída do mercado, a CMA verificou que se tornou implausível que outra empresa que não a Amazon aceitasse os riscos de realizar o investimento dada a conjuntura enfrentada (ou seja, não havia alternativa à Amazon para realização do investimento em face do cenário de crise que se instalou). Finalmente, a última etapa da análise consistiu em verificar que, caso a Deliveroo viesse a deixar o mercado, haveria aumento significativo do grau de concentração, tornando os mercados de entregas de restaurantes e de supermercados virtuais duopólios entre Just Eat e Uber Eats. 

Ou seja, o cenário com a saída da Deliveroo do mercado resultava em impacto anticompetitivo mais grave que a redução da concorrência gerada pelo investimento da Amazon. Segundo a CMA, a Deliveroo já era um player central para a rivalidade nos mercados sob análise, enquanto a possibilidade de entrada da Amazon ou seu crescimento ainda eram incertos. Desse modo, a CMA concluiu que a saída imediata de um player estabelecido, gerando substantiva concentração no curto-prazo (o mercado se tornaria um duopólio), era mais grave que os impactos de eventual redução dos incentivos para que a Amazon se tornasse mais um rival no futuro.             

segundo desafio das agências antitruste exposto pelo caso Amazon/Deliveroo é o da necessidade de respostas rápidas em casos que envolvam empresas à beira da falência devido aos efeitos da crise. No caso da Deliveroo, a CMA recorreu a uma decisão em caráter provisório para garantir que o investimento da Amazon seja realizado no tempo necessário, mas resguardando a possibilidade de, à luz de novas evidências sobre os impactos da operação, alterar sua decisão. Foi a maneira de evitar uma demora que levasse a Deliveroo à falência, mas sem autorizar em caráter definitivo uma operação potencialmente anticompetitiva apenas por falta de tempo hábil para concluir uma análise adequada.

No Brasil, esses mesmos desafios devem se apresentar ao CADE em breve. Embora conte com ferramentas necessárias para enfrentar esses desafios, o CADE teve poucas oportunidades até hoje de testá-las. No caso da failing firm, cerca de uma dezena de casos já levantaram o argumento, mas alguns desses casos nem mesmo demandaram do Cade uma análise detalhada da questão já que o argumento foi mal formulado ou claramente não tinha base factual de sustentação. A despeito da limitada experiência prática do CADE com a failing firm defense, o chamado “Guia H” publicado em 2016 reconhece que tal argumento pode justificar a aprovação de uma operação, desde que os seguintes requisitos sejam cumpridos:

– Se a operação fosse reprovada, a empresa sairia do mercado ou não poderia cumprir suas obrigações financeiras em decorrência de dificuldades econômicas e financeiras;

– Se a operação fosse reprovada, os ativos da empresa não permaneceriam no mercado, resultando em redução da oferta, aumento de concentração e diminuição do bem-estar; e

– Seja demonstrado que a empresa buscou alternativas que fossem menos danosas à concorrência para permanecer no mercado.

O Cade também tem à sua disposição o instituto da “autorização precária”, por meio do qual operações podem ser aprovadas em caráter provisório em tempo menor que o necessário para uma aprovação definitiva. Para receber essa autorização, as partes precisam demonstrar que a operação não resulta em preocupações concorrenciais relevantes, que pode ser integralmente desfeita e que sua não aprovação resultaria em prejuízos financeiros significativos. Até hoje, o Cade concedeu autorização precária em apenas uma operação.

Portanto, casos envolvendo questões complexas como Amazon/Deliveroo representariam mais um teste institucional relevante ao desenvolvimento da política de defesa da concorrência no Brasil. Discussões desse gênero poderão chegar ao Cade nos próximos meses, e colocarão à prova a flexibilidade da agência. Não haverá respostas fáceis nesses casos, e o Cade deverá enfrentar a pressão por decisões ágeis sem reduzir o rigor técnico de suas análises.

Ademir Antonio Pereira Jr. é sócio da Advocacia José Del Chiaro, doutor em Direito Comercial, mestre em Direito Econômico pela USP e LLM pela Stanford University.

Yan Villela Vieira é membro da Advocacia José Del Chiaro e mestrando em Direito pela USP.

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Maffini e Carvalho: MP 966: Vacina indevida ou precaução normativa?

O ensaísta, jornalista e ativista político José Ortega y Gasset ousava dizer que “o exagero é sempre a exageração de algo que não o é”. No Brasil, talvez por razões culturais provavelmente relacionas com uma insuficiente compreensão de conceitos e princípios jurídicos básicos, há uma tendência à produção legislativa demasiadamente detalhada e, não raro, redundante.

Aliado a esse excesso analítico típico da produção normativa nacional, existe, em nosso país, um descomunal receio de ser responsabilizado, um certo medo de agir em não havendo uma permissão normativa explícita, situação esta para a qual contribuem os órgãos de controle, que, não raras vezes, agem de maneira desproporcional, culpando — ou tentando responsabilizar – a conduta tomada, anteriormente, pelo agente público.

Por conta de tal tradição é que o surgimento da Medida Provisória 966, de 13 de maio de 2020, que “dispõe sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19”, vem sendo apontada por respeitáveis cientistas do Direito, como supérflua ou redundante, enfim como “mais do mesmo”. E o supostamente “mesmo” decorreria de normas contidas na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro — LINDB, especialmente as referidas nos seus artigos 22 e 28, trazidos à legislação pátria por meio da Lei 13.655, de 25 de abril de 2018, posteriormente “regulamentada”[3] pelo Decreto 9.830, de 10 de junho de 2019.

Ocorre que a LINDB, por mais prodigiosa que tenha sido quanto às alterações introduzidas pela Lei 13.655/18, nunca foi aplicada em um contexto de pandemia. Partindo-se desse pressuposto, e considerando que existem, por força dos efeitos decorrentes da Covid-19, outros fatos que devem ser considerados, deve-se indagar se a referida Medida Provisória 966/20 é uma vacina indevida ou uma simples precaução normativa?

Bem, é inegável que a referida Medida Provisória é uma “gordura” inserida na legislação brasileira, se considerado que a LINDB já poderia servir para os mesmos propósitos. Todavia, trata-se de uma “boa gordura”, pois customiza o que já está normatizado — especialmente nos artigos 22 e 28 da própria LINDB — ao grave momento de pandemia que estamos vivenciando.

De qualquer sorte, deve-se enfatizar desde já que as normas contidas na MP 966/20 não se prestam à criação de um círculo de imunidade de poder, contra o qual todos nós devemos lutar[4]. Desmandos, desvios, atos de improbidade administrativa e mesmo decisões tomadas, em tempos de Covid-19, contra evidências científicas ou contra informações reacionais de saúde pública, serão objeto de controle e de responsabilização de agentes públicos que os perpetrarem, ainda que MP 966/20 possa sinalizar em sentido contrário.

Verdade é que o advento de normas como as contidas na MP 966/20 propicia inegáveis perplexidades, o que impõe uma análise jurídica, tanto quanto possível, isenta de preconceitos ou rompantes retóricos.

Ora, a primeira perturbação decorre do fato de a questão ter sido normatizada mediante o emprego de Medida Provisória[5], o que parece justificável, considerando que as decisões  administrativas relacionadas com a pandemia de Covid-19, embora haja parâmetros decisórios específicos[6], requerem uma velocidade nas tomadas de decisão, a qual, inevitavelmente, culmina por majorar as chances de cometimento de erros.

A par da técnica legislativa utilizada, e considerando que até a data de fechamento deste artigo ainda não houve prolação de decisão, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que suspendesse os efeitos da referida Medida Provisória, passa-se a uma breve análise de seus três artigos, principiando com regra que estabelece que a responsabilização civil e administrativa dos agentes públicos (e não somente agentes políticos) fica condicionada a situações de dolo e erro grosseiro. Ora, é inegável a similitude de tal regra com o disposto no art. 28 da LINDB.

O art. 1º da MP 966/20, tanto quanto o artigo 28 da LINDB, parece alvissareiro. É evidente a existência de um verdadeiro clamor punitivista em desfavor de agentes públicos. Todavia, o atendimento a tal clamor, se materializado por meio de formas exacerbadas de interpretação e aplicação das normas de responsabilização dos agentes públicos, produz dois subprodutos extremamente graves. Primeiramente, tem-se uma certa promiscuidade interpretativa quanto à ocorrência de infrações de maior gravidade. De outro lado, o descuido na aplicação responsável de tais conceitos culmina por “criminalizar o erro”, sem que se perceba o mal que isso provoca no desenvolvimento da gestão pública.

Parece ser, pois, possível afirmar que tais normas trazem como decorrência lógica a impossibilidade de responsabilidade por presunções. Exatamente por tal motivo, o que se depreende do art. 1º da MP 966/20 e do art. 28 da LINDB é justamente a proibição de culpa presumida, eis que impôs o ônus argumentativo da constatação do dolo ou do erro grosseiro.

Finaliza-se a presente análise inicial com o destaque necessário à compreensão da incidência do art. 1º, da MP 966/20 e do art. 28 da LINDB sobre os casos de responsabilidade civil dos agentes públicos. Quanto ao tema, há polêmicas que devem ser compreendidas e, se possível, solucionadas. Ocorre que o art. 37, § 6º, da Constituição Federal estabelece que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”. Assim, tal norma constitucional estabelece que a responsabilidade civil dos agentes públicos, caso responsáveis por danos causados em desfavor de terceiros, ocorra por dolo ou culpa. Já o art. 28 da LINDB estabelece que a responsabilidade dos mesmos agentes ocorra nos casos de dolo ou erro grosseiro.

Do cotejo de tais normas citadas no parágrafo anterior, resta a dúvida acerca de como se interpretar o conceito de erro grosseiro para fins de responsabilização civil dos agentes públicos. Com efeito, caso se interprete que o conceito de erro grosseiro contido em tais normas (art. 1º da MP 966/20 e art. 28 da LINDB) restringe o conteúdo da norma constitucional, evidentemente se estará diante de uma flagrante inconstitucionalidade. Todavia, caso se interprete que a Constituição Federal deixou em aberto o conceito de culpa, permitindo ao legislador infraconstitucional a prerrogativa de gradação da culpa indutora de responsabilidade, tem-se aí uma função normativa absolutamente legítima e constitucional. Parece que tais normas se enquadram nesta segunda situação, razão pela qual não parece tratar-se de norma violadora do texto constitucional. Aliás, lembre-se que algumas categorias funcionais são sujeitas a regras legais que, sem qualquer violação ao art. 37, § 6º, da CF/88, já preveem responsabilidade civil condicionada a certas categorias específicos de culpabilidade, como é o caso de magistrados (ex. art. 143, I, do CPC). 

O art. 2º da MP 966/20 se ocupa da definição de erro grosseiro, ao estabelecer tratar-se de situação caracterizadora de “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”[7]. Ainda que verse definição dotada de elevada abstração, certamente servirá para auxiliar na compreensão de tal conceito. Tem sido afirmado que tal compreensão sobre o erro grosseiro teria sido incluída de modo oportunista em razão da iminência de decisões que o atual governo federal sobre protocolos médicos relativos ao tratamento da Covid-19; não se pode descartar que tenha sido esta a intenção. Entretanto, de um lado, por dever de honestidade intelectual, deve-se lembrar, como já referido, que tal definição é a mesma contida no art. 12, § 1º, do Decreto 9.830, editado a propósito de regulamentar o art. 28 da LINDB, sendo que o referido Decreto é de 10 de junho de 2019.

De outro lado, ainda que o propósito do art. 2º da MP 966/20 fosse a imunização de governantes pelas suas futuras decisões, tal desiderato não terá sido alcançado com a edição da MP 966/20, porquanto é um evidente erro grosseiro a estipulação de protocolos ou tratamentos médicos por governantes de qualquer esfera de governo que se fundamentem em convicções pessoais, ideológicas, religiosas, militares e, até mesmo, astrológicas, ou em qualquer outro critério que não sejam aqueles referidos no art. 3º, § 1º, da Lei 13.979/20, o qual coloca a ciência como verdadeira presidente das políticas públicas a serem levadas a efeito.

Por fim, o art. 3º da MP 966/20[8] em muito se assemelha ao disposto no art. 22 da LINDB[9]. Com efeito, trata-se de preceito que visa a “mitigar os efeitos da lei de acordo com a realidade, temperar a generalidade (abstração ínsita à atividade legislativa) com a especificidade (fatos concretos), colmatar lacunas, notadamente aquelas decorrentes da complexidade, todas estas tarefas são, dentre outras, tarefas naturais do intérprete contemporâneo”[10]. O art. 3º da MP 966/20 e o art. 22 da LINDB servem para consagrar “o ‘primado da realidade’; nele, a exigência de contextualização produz uma espécie de “pedido de empatia” com o gestor público e com as suas dificuldades. Esta é outra lógica bastante presente no projeto: se o controlador quer se colocar na posição de tomar ou substituir decisões administrativas, é preciso que enfrente também os ônus que o administrador enfrenta”[11].

Entre acertos e atropelos normativos, e diante de um novo colorido exposto pela pandemia, parece indene de dúvidas que a MP 966/20 tratou dos mesmíssimos temas já abordados pela LINDB; quanto a isso, parece não haver mais incisivos questionamentos, ressurgindo apenas a dúvida quanto ao propósito normativo, sobretudo diante da técnica legislativa empregada.

Espera-se que a MP 966/20 seja um reforço retórico, uma precaução normativa, ao que a LINDB, contundentemente, já previra, lançando alicerces voltados à segurança jurídica na tomada de decisões pelos agentes públicos. A pandemia não comporta vacinas indevidas e exageradas!

 é mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professor adjunto de Direito Administrativo na UFRGS, juiz substituto do Tribunal Regional Eleitoral do RS e advogado do escritório Rossi, Maffini, Milman & Grando Advogados.

 é doutor em Direito Administrativo e mestre em Direito e Políticas Públicas. Ex-Procurador do Estado do Amapá e advogado do escritório Guilherme Carvalho & Advogados Associados. Bacharel em Administração.

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Corregedor intima desembargador do TJ-RJ a esclarecer sociedade

Pedido de apuração

Corregedor pede que desembargador do TJ-RJ explique compra de empresa

O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, determinou que se instaure pedido de providências para apurar a conduta do desembargador Paulo Sérgio Rangel, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.

Pedido de apuração foi provocado por reportagem da revista Crusoé

A decisão foi tomada com base em uma reportagem da revista Crusoé que afirma que o magistrado teria comprado parte de uma corretora de seguros do empresário Leandro Braga de Souza.

Na decisão, o ministro Humberto Martins determina que o desembargador seja intimado para prestar esclarecimentos sobre os fatos expostos no prazo de 15 dias.

O empresário Leandro Braga de Souza foi preso durante uma operação da Polícia Federal no último dia 14 de maio. O inquérito conduzido pela PF investiga supostos pagamentos superfaturados feitos pelo Instituto Data Rio, que administra Unidades de Pronto Atendimento (UPA).

Conforme a reportagem, a corretora de seguros — que teria como sócio o desembargador Paulo Sérgio Rangel — fazia a intermediação de planos e seguros voltados para a área de benefícios e assistência à saúde.

Ex-promotor de Justiça, Paulo Sérgio Rangel foi nomeado desembargador, tendo ingressado no TJ do Rio por meio do quinto constitucional do MP.

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Revista Consultor Jurídico, 18 de maio de 2020, 15h16