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As fake news e o STF: ainda há o que fazer

O fenômeno, cada vez mais crescente, do compartilhamento desenfreado de notícias falsas, as assim chamadas fake news, assim como de técnicas de desinformação, põe em xeque a legitimidade e correto andamento do pleito eleitoral, acirra sectarismos, instila a divisão social, gera níveis preocupantes de instabilidade política e mesmo representa, cada vez mais, ameaças concretas para a democracia e o funcionamento regular de suas instituições estruturantes.

No caso do Brasil — a exemplo do que havia ocorrido por ocasião das eleições presidenciais que deram a vitória ao atual presidente Donald Trump — as últimas eleições gerais, em 2018, não inovaram no que toca ao recurso às mais variadas técnicas de desinformação e das “fake news”, posto que, como já sinalizado, mas alcançaram, inclusive e em especial no domínio da internet, níveis assustadores. Isso se deu não apenas em relação aos candidatos à Presidência à República, mas foi particularmente mais acentuado em relação aos mesmos.

Muito embora não seja o caso aqui de desenvolver o ponto, não há como deixar de recordar que o contexto no qual se situa o tema objeto do presente texto — que basicamente gravita em torno do nada novo problema da “verdade e da mentira na política”, título de uma das muitas paradigmáticas obras de Hannah Arendt — é particularmente singular em relação às experiências históricas anteriores, onde o recurso à desinformação e à mentira na Política já se revelaram de extrema relevância e de alto impacto, não só, mas especialmente no caso de regimes autoritários e, em especial, totalitários, v.g., os casos do nacional-socialismo alemão, do regime stalinista soviético, a revolução cultural chinesa, apenas para citar os mais devastadores e mais próximos em termos cronológicos.

Com o advento e crescimento da internet, tamanha é a dimensão do fenômeno que há mesmo quem fale em uma sociedade da desinformação (FRANCISCO, 2004), como etapa corrompida da sociedade da informação, ou de uma era da pós-verdade, em que a verdade e sua difusão passa a figurar em segundo plano, cedendo cada vez mais espaço ao apelo à irracionalidade e às emoções (KAKUTANI, 2018, p. 11).

Ainda nessa perspectiva, no tocante ao problema da erosão da verdade, inclusive na perspectiva axiológica, já não se trata mais “apenas” de notícias falsas, mas de uma falsa ciência (negacionistas de toda ordem), de uma falsa história (como a negação do holocausto), de perfis e mesmo de seguidores falsos nas mídias sociais (KAKUTANI, 2018, p. 11-12). Estamos, ao fim e ao cabo, “cercados de mentiras e de ficções” (HARARI, 2018, p. 287).

Cientes da querela ainda não resolvida relativamente à terminologia mais adequada e ao respectivo conteúdo, é de se salientar que a expressão “fake news”é comumente utilizada para ilustrar uma variada gama de informações: erros não intencionais, rumores sem origem notícia exata, teorias da conspiração, sátiras, distorções da realidade, falsas afirmações de políticos, paródias, conteúdo distorcido, conteúdo fabricado, falsas conexões, conteúdo manipulado, publicidade enganosa, dentre outros.

Para efeitos do presente texto, o termo “fake news” ligeiramente se aproxima dos já conhecidos boatos (SUNSTEIN, 2010), dos quais, contudo, se diferencia tanto pela razão de as fake news terem se adaptado ao desenvolvimento da tecnologia e dos meios comunicativos, notadamente as redes sociais, aptas a serem disseminadas instantaneamente, como também pela característica de as fake news necessariamente estarem em determinado contexto (por exemplo, o eleitoral) com o objetivo de criar uma esfera falaciosa sobre algo ou alguém, de modo a enganar o destinatário da mensagem inverídica.

Outro ponto que merece destaque nesse contexto, é o da irradiação dos efeitos de informações falsas prolongada no tempo, principalmente quando se utiliza a internet para a sua disseminação. E é nesse ponto, mais uma vez, que se reforça a ligeira, mas ao mesmo tempo densa, diferença entre boatos e fake news, porquanto os primeiros, em que pese sejam “tão antigos quanto a história humana” (SUNSTEIN, 2010, p. 3), uma vez inseridos no contexto da imediata comunicação e do avanço tecnológico, transmudam-se para uma roupagem de fake news, as quais são postadas e compartilhadas na internet, adquirindo, ademais de sua quase onipresença, um efeito duradouro (SUNSTEIN, 2010, p. 5).

O fato é que, sem que se possa aprofundar o tema, que assim como se dá com o discurso do ódio e outras figuras afins, também as assim chamadas Fake News (que também podem servir ao discurso do ódio, ao revengeporn, etc.) podem colocar em risco a delicada mas fundamental relação entre democracia e liberdade de expressão, o que nos faz lembrar de FRANK MICHELMAN, quando sublinha que a relação entre democracia e liberdade de expressão é de um recíproco condicionamento, de modo que, embora mais democracia possa muitas vezes significar mais liberdade de expressão e vice-versa (mais liberdade de expressão indica mais democracia), também é correto que a liberdade de expressão pode acarretar riscos para a democracia o que, por sua vez, pode comprometer a liberdade de expressão (2007, p. 58).

Por outro lado, quando se trata de liberdade de expressão e de seu papel cimeiro para o funcionamento de uma ordem democrática, não há como deixar de referir o papel do Poder Judiciário, em especial e no caso brasileiro, dado o enfoque deste espaço (observatório da Jurisdição constitucional) do STF.

Nesse contexto, sem desconsiderar a magnitude (em termos de importância e repercussão) dos feitos tramitando no TSE (Ações de Investigação Judicial Eleitoral 0601369-44 e 0601401-49) que tem por objeto a impugnação da chapa Bolsonaro-Mourão por contratações não declaradas para o envio em massa de mensagens e de ataques virtuais a adversários eleitorais, mas também o não menos polêmico Inquérito 4781, em andamento no STF, que tem como objetivo a investigação de ameaças, notícias fraudulentas contra ministros do STF e seus familiares, o caso que aqui se pretende apresentar é outro.

Trata-se da decisão proferida pelo STF na ADI 4451, relatada pelo Ministro Alexandre de Moraes e julgada em 20 e 21.06.2018, quando o Plenário confirmou medida cautelar e julgou procedente o pedido formulado para declarar a inconstitucionalidade do inciso II e da segunda parte do inciso III e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º, todos do art. 45 da Lei 9.504/1997, a já referida Lei das Eleições (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 23-24).

Tais dispositivos dispõe que as emissoras de rádio e televisão, em sua programação normal e noticiário, a partir de 1º de julho do ano da eleição, não poderão: (i) “usar trucagem, montagem ou outro recurso de áudio ou vídeo que, de qualquer forma, degradem ou ridicularizem candidato, partido ou coligação, ou produzir ou veicular programa com esse efeito” (inciso II) e (ii) “difundir opinião favorável ou contrária a candidato, partido, coligação, a seus órgãos ou representantes” (segunda parte do inciso III)[1]. Os §§ 4º e 5º explicam o que se entende, respectivamente, por trucagem e por montagem.

De modo especial, é relevante o fato de que o STF afastou a vedação legal impostas às emissoras de rádio e televisão de veicular programas de humor envolvendo candidatos, partidos e coligações nos três meses anteriores ao pleito, como forma de evitar que sejam ridicularizados ou satirizados. Com a decisão, foi tornada definitiva a suspensão determinada em sede de cautelar pelo Ministro Ayres Britto em 2010, não tendo a proibição sido aplicada desde então.

A teor do voto do Ministro Alexandre de Moraes, relator, a CF proíbe toda e qualquer forma de censura à liberdade de expressão e de informação, incluindo aqui a liberdade, de criação (liberdade artística), destacando, ainda, inexistir permissão que possa ser deduzida do texto constitucional para o efeito de limitar preventivamente o conteúdo do debate público por conta de conjecturas em torno de eventuais efeitos que a divulgação de determinados conteúdos possa vir a ter na esfera pública.

Passando agora aos votos dos demais julgadores, inicia-se com o do Ministro Gilmar Mendes (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 83 e ss.), para quem, mesmo em se levando em conta a possibilidade de veiculação de fake news mediante o recurso a truques, montagens e afins, o ordenamento jurídico brasileiro já fornece mecanismos suficientes para que se constate e combata excessos no exercício da liberdade de expressão, não apenas com o manejo do direito de resposta, tanto na imprensa, como no processo eleitoral, mas também na responsabilidade criminal a posteri, ademais dos outros instrumentos destinados a conter o uso abusivo das liberdades de expressão e de informação, previstas no próprio art. 45 da Lei das Eleições[2].

Na mesma linha, mais focado na importância (e posição preferencial) da liberdade de expressão e de informação para uma ordem democrática, o voto do Ministro Roberto Barroso, que considerou errônea a opção do legislador ao colocar a lisura do pleito eleitoral como hierarquicamente superior às liberdades de expressão, incluindo a liberdade artística, de modo a atingir inclusive o núcleo essencial das referidas liberdades, desrespeitando a sua posição preferencial (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 39-40).

A Ministra Rosa Weber, por sua vez, acertadamente aponta, quanto ao direito de resposta, que este nem sempre será eficaz, como no caso de charges e sátiras, mas que tais informações devem ser recebidas pelo destinatário como elas, de fato, o são: simplesmente humor(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 48).

Foi, contudo, no voto proferido pelo Ministro Luiz Fux[3] que a questão das fake news adquiriu um espaço maior, para quem a intervenção do Poder Judiciário no processo eleitoral deve ser mínima (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 63), em especial quando em causa a liberdade de expressão, em relação de retroalimentação com a Democracia.  Para Luiz Fux, o objeto da ADI inclui a avaliação do cabimento ou não do humor (ou, “deformação humorística”) na imprensa (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 64).

Da mesma forma há que frisar a distinção traçada pelo Ministro Luiz Fux entre o exercício legítimo da liberdade de expressão, que abarca a veiculação de opiniões e críticas mediante charges e sátiras, do falseamento doloso da verdade que causa danos graves e mesmo irreversíveis aos candidatos e ao próprio processo eleitoral, as assim designadas fake news, que devem ser repudiadas e combatidas pela Justiça Eleitoral (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 73).

O Ministro Ricardo Lewandowski, por seu turno, ressaltou a conexão das sátiras com as fakenews, visto que estas podem ser veiculadas por meio daquelas, ou, alternativamente, que as sátiras transmitam fake news (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 35). Os Ministros Marco Aurélio e Cármen Lúcia igualmente sustentaram a inconstitucionalidade dos dispositivos analisados, destacando a importância do riso e do humor para uma sociedade democrática (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 160).

Particularmente enfáticas foram as palavras do Ministro Celso de Mello, que no seu voto afirmou que “nenhuma autoridade, mesmo a autoridade judiciária, pode prescrever o que será ortodoxo em política ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 148).

À vista da síntese da decisão na ADI 4451/DF, verifica-se que a despeito de sua relevância e das posições de alguns dos Ministros (Alexandre de Moraes, Luiz Fux, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes)contrárias à veiculação de fake news(BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4451/DF, 2018, p. 16, 53, 71-72, 76-78)no processo eleitoral, o julgado do STF, em que pese articular alguma linha de orientação, não adentra o tema com maior detalhamento, em especial no que concerne ao combate das fake news nas mídias sociais, de tal sorte que também na seara jurisprudencial, ao menos por ora, não se encontram elementos mais robustos e estáveis a permitirem o melhor enfrentamento do problema pelas Instâncias da Justiça Eleitoral, mas também naquilo em que as fake news guardam relação com outras searas do direito, v.g. civil e penal.

De todo modo, inegável se tratar da primeira importante decisão do STF que envolve o tema (ainda que não central) sobre a matéria e sobre a legitimidade prima facie da veiculação de sátiras, charges e manifestações de humor em geral durante campanhas eleitorais, ademais de reafirmar a posição preferencial da liberdade de expressão na arquitetura constitucional brasileira.

Nessa perspectiva, crucial que o combate às ‘fake news’ se dê pelos meios legais disponíveis (e adequados, é de se acrescentar) e pela boa imprensa, que rapidamente pode levar a correta notícia à população” (BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Informativo 907. ADI 4451/DF, 2018), mas não — pelo menos em regra e à partida — com a sua abrupta e agressiva remoção.

Outrossim, observa-se que no julgamento apresentado, o STF não abriu mão, pelo contrário, revitalizou, a sua trajetória, inaugurada com a decisão histórica tomada na ADPF 130, que teve por revogada a antiga Lei de Imprensa do regime militar, de assegurar à liberdade de expressão uma posição preferencial, de modo que eventuais restrições devem não apenas ser excepcionais como restritivamente interpretadas.

Ademais disso, nenhum combate, embora necessário, ao exercício manifestamente abusivo da liberdade de expressão e de informação, não pode ser feito às suas custas. Do contrário, nem a liberdade de expressão e nem a Democracia sobreviverão.

 é professor, desembargador aposentado do TJ-RS e advogado.

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Lewandowski: Agente público não deve ter carta branca

*Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (17/5) do jornal O Globo.

Ian Fleming (1908-1964), soldado, jornalista e escritor inglês, imortalizou-se pela criação do personagem James Bond, membro do serviço secreto britânico, codinome 007, protagonista de vários romances e filmes que alcançaram grande sucesso de público e crítica.

De acordo com seu idealizador, Bond integrava um seletíssimo grupo de espiões, dotados de licença para matar, que os desobrigava de qualquer explicação caso tirassem a vida de algum inimigo da Coroa. Assim protegido, 007 executou inúmeros antagonistas, não raro com requintada crueldade e sem perder o indefectível ar blasé.

Ocorre que essa imunidade não existe no mundo real. Nenhuma nação conhecida, seja ela democrática, autoritária ou despótica, concede uma carta branca a seus agentes para eliminar adversários. Nem mesmo na guerra os beligerantes podem agir sem limitações, pois sua conduta é regida por tratados e convenções de natureza humanitária. Restabelecida a paz, os abusos são julgados e punidos por tribunais domésticos ou internacionais.

Não obstante, de uns tempos para cá, pretende-se introduzir no ordenamento jurídico pátrio uma singular excludente de ilicitude para os integrantes das corporações armadas. Uma primeira tentativa, abrigada no chamado “pacote anticrime”, que instituía o perdão para crimes cometidos sob influência de medo, surpresa ou violenta emoção ou, ainda, em face de virtual agressão, foi resolutamente rechaçada pelo Congresso Nacional.

No ano passado, enviou-se ao Parlamento outra propositura assemelhada. Dela consta que o militar ou policial, participante de uma operação para a garantia da lei e da ordem, age em legítima defesa presumida quando repele injusta agressão, presente ou potencial, definida como tentar ou praticar as seguintes condutas: terrorismo; morte ou lesão corporal; restrição à liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça; porte ou utilização ostensiva de arma de fogo.

Consta ainda que o autor só é responsabilizado criminalmente se agir com excesso doloso. Mesmo assim, a pena poderá ser atenuada pelo juiz. A prisão em flagrante passa a ser proibida e a preventiva apenas será decretada em circunstâncias excepcionais. Em todas as situações, a Advocacia-Geral da União fará a defesa dos acusados.

Ora, o Código Penal vigente há várias décadas já contempla, em seu artigo 23, a exclusão de ilicitude. Segundo o dispositivo, inexiste crime quando alguém pratica o fato em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. O artigo 25, por sua vez, esclarece que age em legítima defesa quem, fazendo uso moderado dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem.

Esse arcabouço legal, replicado nos artigos 42 e 44 do Código Penal Militar, sempre foi suficiente para que as autoridades incumbidas da segurança pública dessem conta de sua delicada missão, com prudência e serenidade, sem colocar em risco a vida ou integridade física dos cidadãos para cuja proteção foram instituídas.

Há poucos dias, seguindo a mesma lógica das iniciativas precedentes, editou-se uma medida provisória, desta feita para isentar de responsabilidade, nas esferas civil e administrativa, os agentes estatais que praticarem atos relacionados ao enfrentamento dos efeitos sanitários, econômicos ou sociais decorrentes da pandemia desencadeada pela Covid-19, salvo se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro.

Nossos parlamentares certamente saberão avaliar com o esperado discernimento a conveniência e oportunidade de aprovar tais inovações legislativas, atentos não apenas ao delicado momento pelo qual passa o país, mas sobretudo ao dever de salvaguardar os direitos e garantias fundamentais de sua majestade o povo brasileiro.

 é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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Deives Cruzeiro: A Covid–19 e as conciliações trabalhistas

A pandemia da Covid–19 não somente atingiu o sistema de saúde, seus prejuízos irradiaram-se para diversos setores, como a economia, e, inevitavelmente, alcançaram as relações de trabalho. Originariamente, o debate jurídico sobre as consequências trabalhistas da pandemia convergiu para eventual caracterização de “fato do príncipe” ou de força maior, na medida em que referidos institutos relacionam-se com os contratos de emprego potencialmente atingidos pelas medidas de quarentena.

Entretanto, as consequências trabalhistas da Covid–19 afetaram as relações jurídico-processuais. As implicações da pandemia no âmbito processual não se limitaram à suspensão dos prazos processuais ou das audiências trabalhistas (Resolução nº 313/CNJ e Ato Conjunto CSJT.GP.VP e CGJT. nº 001/2020), haja vista que as obrigações ajustadas pelas partes no âmbito da relação processual também passaram a ser objeto de questionamentos, por exemplo, as conciliações pendentes de cumprimento.

Formularam-se requerimentos no bojo dos processos trabalhistas a fim de que os vencimentos das parcelas de conciliação fossem postergados, de que os termos da conciliação fossem redefinidos ou de que a cláusula penal deixasse de ser aplicada. Evidentemente que o juiz do Trabalho, lidando diuturnamente com a seara eminentemente social do Direito, não pode ser alheio à situação excepcional causada pela Covid-19, mas toda deliberação jurisdicional deve respeitar os institutos jurídicos e, em especial, as normas constitucionais.

A decisão jurisdicional que homologa conciliação trabalhista é imbuída de irrecorribilidade pelas partes (artigo 831, parágrafo único/CLT). Em razão dessa qualidade, a decisão homologatória de conciliação transita em julgado no momento da homologação (Súmula nº 100, V/TST).

Logo, a formação da coisa julgada (artigo 5º, XXXVI/CF) impede que os termos da conciliação sejam alterados autônoma e unilateralmente pelo juiz do Trabalho.

Ademais, ainda que o TST (Súmula nº 259/TST) entenda que a ação rescisória corresponde à via processual adequada para desconstituição do termo de conciliação, o corte rescisório pressupõe existência de vício na decisão rescindenda (artigo 966/CPC). Porém, eventual pretensão de alteração dos termos da decisão homologatória de conciliação por força da Covid–19 ampara-se nas consequências advindas da pandemia e, por isso, não se refere a qualquer vício do ato jurisdicional suscetível do corte rescisório.

Amparando-se no trânsito em julgado da decisão homologatória de conciliação, poder-se-ia argumentar que os termos ajustados na conciliação poderiam ser objeto de revisão (artigo 505, I/CPC). A previsibilidade processual da revisão enseja alteração das circunstâncias de fato ou de direito existentes à época do proferimento da decisão jurisdicional.

Contudo, as circunstâncias de fato ou de direito suscetíveis de revisão correspondem àquelas que foram objeto de definição na sentença. A sentença homologatória de conciliação não implica análise do mérito pelo juízo trabalhista e, por isso, não existe definição de situação de fato ou direito. Portanto, entende-se que o instituto da revisão (artigo 505, I/CPC) é inaplicável à hipótese de alteração dos termos da conciliação trabalhista.

Com efeito, a conciliação trabalhista trata-se de solução protagonizada pelas partes e advogados, haja vista que o juiz do Trabalho atua unicamente fazendo ponderações acerca dos riscos processuais e das possibilidades conciliatórias. Nesse contexto, a repactuação das condições da conciliação depende de deliberação conjunta dos litigantes por força do instituto da novação (artigo 360, I/CC).

Relativamente à eventual cláusula penal estabelecida por ocasião da conciliação trabalhista homologada, sua incidência também tem sido objeto de debates. Inclusive há afirmação de que a situação de força maior (artigo 1º, parágrafo único da Medida Provisória nº 927) autorizaria a exclusão da multa pelo inadimplemento do pacto trabalhista (artigo 537, §1º/CPC). Todavia, o instituto trabalhista da força maior previsto legalmente (artigo 501/CLT) não implica isenção de pagamento de títulos, mas unicamente redução da parcela devida (artigo 502/CLT).

Além disso, o dispositivo processual que prevê exclusão da medida pecuniária (artigo 537, §1º/CPC) está inserto no capítulo relativo ao cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer. Portanto, o conteúdo ali tratado corresponde a meio coercitivo de cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer, logo, consiste em astreintes.

As astreintes possuem natureza eminentemente processual e, por isso, esse regramento do Código de Processo Civil (artigo 537, §1º/CPC) não se confunde com a cláusula penal fixada na conciliação trabalhista de natureza material em razão de corresponder a obrigação acessória que visa a garantir o adimplemento da obrigação principal e a definir antecipadamente as perdas e danos advindos do descumprimento da avença (artigo 411/CC). Além disso, em se tratando de cláusula penal, o ordenamento jurídico não prevê a possibilidade de sua exclusão nas hipóteses de descumprimento da obrigação por culpa do devedor, mas somente de sua flexibilização a depender da natureza e finalidade do negócio jurídico entabulado (artigo 413/CC).

A exclusão da cláusula penal é prevista nas ocasiões em que o descumprimento da obrigação não derive de culpa do devedor (artigo 408/CC). Esse dispositivo civilista decorre da pressuposta isonomia entre os contratantes nas relações civis e é preciso ser reanalisado a partir do prisma trabalhista que trata da disparidade entre as partes e da assunção dos riscos do negócio pelo empregador (artigo 2º/CLT).

Em verdade, a pandemia da Covid–19 corresponde à situação imprevista e excepcional. Contudo, o ordenamento jurídico é construído prevendo a normalidade e, também, prevendo a excepcionalidade, por exemplo, ao tratar do estado de defesa (artigo 136/CF) e do estado de sítio (artigo 137/CF).

No âmbito trabalhista, as situações excepcionais e de crise são igualmente reguladas, por exemplo, redução salarial mediante negociação coletiva (artigo 7º, VI/CF) ou suspensão contratual para qualificação profissional (artigo 476-A/CLT). Logo, argumentos de que a situação de exceção possibilitaria medidas de Direito e processuais excepcionais são contrários às cláusulas pétreas de proteção à legalidade (artigo 5º, I/CF), ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (artigo 5º, XXXV/CF) e igualmente contrários aos propósitos do constituinte originário que procurou garantir a estrutura jurídico-constitucional inclusive em momentos de crise.

Referência bibliográfica

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2012.

 é juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).