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TST tem maioria para invalidar TR na correção de dívida trabalhista

A aplicação da Taxa Referencial (TR) na correção de dívidas trabalhistas viola o direto à propriedade privada. Isso porque não atualiza com justiça os valores. Esse é o entendimento firmado nesta segunda-feira (15/6) pela maioria do Pleno do Tribunal Superior do Trabalho para declarar inconstitucional o uso da TR na atualização de débitos trabalhistas, informou o jornal Folha de S.Paulo. O julgamento será retomado em 29 de junho.

TST retomará julgamento sobre uso da TR em 29 de junho de 2020
Flickr/TST

A reforma trabalhista (Lei 13.467/2017) instituiu a TR como índice de referência para a correção. Criada no governo Fernando Collor, a TR, usada para atualizar a poupança, está em desuso e no valor anual de 0%.

A maioria (17 de 27) dos ministros defende que o Índice de Preços ao Consumidor Amplo Especial (IPCA-E) seja aplicado às dívidas trabalhistas. Em março, o acumulado de 12 meses do índice fechou em 3,67%. Além disso, aplicam-se juros de 1% ao mês nas ações na Justiça do Trabalho.

Amicus curiae no recurso da Usina Eldorado que está sendo analisado pelo TST, a Confederação Nacional do Sistema Financeiro (Consif) defende o uso da TR. Fábio Quintas, advogado da entidade, afirmou à Folha que usar outro índice prejudica o empregador. “O que temos nas dívidas trabalhistas? Temos que nelas incidem juro de mora de 1% ao mês e 12% ao ano. Essa equação hoje já está desequilibrada”.

O advogado da União Daniel Costa Reis também defendeu a TR. A seu ver, a decisão do Supremo Tribunal Federal de aplicar o IPCA-E na correção de precatórios pode ser usada para justificar o uso da TR em dívidas trabalhistas.

A relatora do caso, ministra Delaíde Miranda Arantes, afirmou que a TR afronta o direito à propriedade. Afinal, reduz o valor real da dívida trabalhista.

O ministro Cláudio Mascarenhas Brandão lembrou que a correção monetária é a recomposição do poder aquisitivo da moeda.

Já o ministro Alexandre Agra Belmonte disse que a TR “é imprestável” para a correção da moeda. “Se não serve para precatório, por que serviria para débito trabalhista, que tem natureza alimentar?”

Sete ministros declararam a TR constitucional. Segundo eles, a escolha legislativa pela TR não viola a Constituição. E a decisão do STF de que a taxa não era aplicável a precatórios não deve ser estendida automaticamente a débitos trabalhistas.

Processo 0024059-68.2017.5.24.0000

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Advogado que reteve valor deve devolvê-lo se caiu a liminar

Cliente que não sacou o dinheiro do estado para compra de medicamento, nem foi informado pelo advogado do andamento e desfecho do processo, não pode ser responsabilizado pela sua devolução numa ação de execução decorrente de cumprimento de sentença.

Reprodução

Por isso, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu recurso para impedir que a autora de uma ação de medicamentos fosse parar no polo passivo da execução, que pedia a devolução dos valores em função da sentença de improcedência. Por unanimidade, ela foi declarada parte ilegítima na ação executória.

Ao prover o agravo de instrumento manejado pela autora da ação, o desembargador-relator Eduardo Uhlein afirmou ser “incontroverso” que o advogado dela levantou, pessoalmente, o dinheiro liberado por decisão liminar para a compra do medicamento, sem repassá-lo à cliente.

Numa situação como esta, destacou, deve ser observado o artigo 876 do Código Civil, pois “todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir”.

Em reforço à sua posição, Uhlein citou o parecer do procurador de justiça Luiz Achylles Petiz Bardou, que assim se manifestou, no ponto: “Sequer sabia a agravante [autora da ação] que havia obtido decisão favorável a si, porquanto seu procurador, em vez de alcançar-lhe o medicamento, conforme compromisso por ele assumido nos autos, silenciou a respeito, deixando de prestar contas de numerário que foi por ele levantado. Tanto o procurador tem ciência da ilegalidade praticada que se ofereceu a restituir os valores aos cofres públicos”. O acórdão foi lavrado na sessão de 26 de maio.

Ação de obrigação de fazer

Romilda Barbosa Oliveira ajuizou ação de obrigação de fazer em face do Estado do Rio Grande do Sul para compeli-lo a adquirir o medicamento Synviscone, uma ampola de 6 ml para cada joelho, para tratamento da doença conhecida como gonartrose bilateral (desgaste nos joelhos). A ação foi distribuída em 10 de abril de 2010 no cartório da Vara Judicial da Comarca de Júlio de Castilhos.

Em despacho liminar proferido no dia 20 de junho de 2012, a juíza Priscila Gomes Palmeiro concedeu a antecipação de tutela, condenando o ente público a fornecer o medicamento em cinco dias a partir da data de intimação judicial ou, então, a depositar o valor na conta da autora para sua posterior aquisição.

Para a julgadora, o atestado e o receituário anexados aos autos dão veracidade às alegações postas na petição inicial, pois há necessidade de uso da medicação contínua para tratamento da moléstia. “O receio de dano irreparável é inerente ao próprio bem jurídico tutelado, a vida, sendo oportuno salientar que a ausência de medicação importa em grave risco de dano irreparável à saúde e à vida da requerente”, fundamentou no despacho.

O Estado do Rio Grande do Sul, no entanto, não cumpriu a decisão liminar, o que obrigou o advogado da autora a requerer o bloqueio de valores. Em despacho assinado no dia 23 de agosto, a mesma juíza determinou o bloqueio de R$ 1.840 na conta bancária do Estado, suficientes para aplicação de duas doses do medicamento, e posterior depósito em conta judicial.

Deferida antecipação de tutela, o procurador da autora, advogado Renan José Appel Barichello, voltou a peticionar ao juízo da Vara. Informou que, diante do fato de a autora residir no Município de Pinhal Grande, sacaria o alvará no nome  dela, realizando a compra e consequente entrega do medicamento, com prestação de contas. O juízo autorizou.

“Desde já, fica autorizada a expedição de alvará, em nome do procurador signatário, para o levantamento do valor, com prestação de contas no prazo de cinco dias do recebimento, sob pena de responsabilização cível e criminal. Cumpra-se com urgência”, registrou o despacho.

No curso da ação, o Estado apresentou contestação por meio da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RS). Em síntese, impugnou a eficácia do medicamento. Reclamou que o medicamento consta na inicial pelo nome comercial, contrariando o que determina o artigo 3º da Lei 9.787/99 (Lei dos Genéricos). Em caso de procedência da ação, no julgamento de mérito, pleiteou a realização de exames periódicos, a fim de constatar a necessidade de manutenção do tratamento.

Em 17 de abril de 2013, a parte autora foi intimada a prestar contas do valor levantado no alvará judicial e/ou comprovar sua restituição aos cofres do Estado no prazo de 48 horas. Não fez uma coisa nem outra. O Ministério Público, por sua vez, declinou de intervir no processo.

Sentença improcedente

Decorridos quase cinco anos do ajuizamento, especificamente no dia 15 de fevereiro de 2017, o juiz Ulisses Drewanz Gräbner julgou improcedente a ação de obrigação de fazer. Afirmou que a parte autora, apesar de intimada, não trouxe aos autos nenhuma comprovação de compra do medicamento neste tempo todo. E essa omissão sugere “desnecessidade do tratamento”, deduziu.

“Posto isso, vale ressaltar que as ações de saúde, em face da dignidade da pessoa humana, quebram a isonomia e a universalidade das políticas públicas, como defendido pelo Município e, com isso, é necessário que seja demonstrada de forma robusta a necessidade do fármaco”, justificou na sentença.

Fase de cumprimento de sentença

Em despacho assinado no dia 3 de agosto de 2017, Gräbner intimou a autora a devolver o valor bloqueado do Estado, devidamente corrigido, no prazo de 30 dias, sob pena de cometimento de crime de apropriação indébita.

Sem resposta, o mesmo juiz, no dia 9 de agosto de 2017, intimou a devedora na pessoa do seu advogado. Deu prazo de 15 dias para o pagamento, sob pena de incidência de multa e de honorários advocatícios, ambos em 10%, cumulativamente sobre o débito atualizado.

Com o silêncio da parte e de seu advogado, o Estado, por meio da PGE, pediu o cumprimento de sentença, com a busca de bens junto á Receita Federal, via sistema InfoJud, para quitação da dívida. Em 25 de maio de 2018, o juiz Ulisses Drewanz Gräbner deferiu a medida, limitando a investigação dos bens aos últimos três anos.

Em 14 de junho de 2018, o juiz expediu mandado de penhora para ser cumprido na casa da parte autora — agora, na fase de cumprimento de sentença, como parte executada no processo. “Em caso de não encontrar bens penhoráveis, deverá o Oficial de Justiça descrever na certidão os bens que guarnecem a residência da executada, conforme dispõe artigo 836, §1º do CPC”, orientou no despacho.

Exceção de pré-executividade

Surpreendida com o mandado de penhora, depósito e avaliação, o qual restou frustrado diante da ausência de bens em seu nome, Romilda Barbosa Oliveira procurou a Defensoria Pública e ainda registrou Boletim de Ocorrência policial, em face do advogado Renan José Appel Barichello, pelo delito de apropriação indébita.

Representada por defensor público, ela manejou uma exceção de pré-executividade em face do Estado. Trata-se de instrumento utilizado no processo de execução, em que o devedor “provoca” o juízo com o intuito de suspender a ação executiva, mediante a arguição de alguma nulidade processual. Neste, anexou declaração do próprio ex-advogado, na qual ele manifesta interesse em devolver, aos cofres do Estado, a importância recebida por meio de alvará judicial.

Na fundamentação da petição, a autora sustentou que não é parte legítima para figurar no polo passivo do cumprimento de sentença. Afirmou que o antigo procurador, sem o seu consentimento, sacou o dinheiro e não o repassou, tampouco adquiriu o medicamento ou prestou contas. Ainda: garantiu que não teve conhecimento da decisão que determinou a devolução dos valores, pois publicada via Nota de Expediente ao referido advogado. Assim, pleiteou que o juízo recebesse a exceção de pré-executividade para determinar o redirecionamento do cumprimento de sentença ao ex-procurador.

Exceção rejeitada

A juíza Samyra Remzetti Bernardi, da Vara Judicial da Comarca de Júlio de Castilhos, rejeitou a exceção de pré-executividade, mantendo ambos — a autora e seu advogado — no polo passivo da execução. Afinal, na percepção da julgadora, foi a autora que outorgou poderes ao procurador para o bloqueio de valores e retirada de dinheiro para a compra de medicamentos. Com isso, deve ser mantida a sua responsabilidade, de forma solidária.

Samyra também deferiu o pedido do advogado, de parcelar o pagamento da dívida em 10 parcelas, e notificou a OAB gaúcha, para a apuração da conduta profissional.

Agravo de instrumento

Em combate à decisão da juíza, o defensor de Romilda Barbosa de Oliveira interpôs recurso de agravo de instrumento no Tribunal de Justiça. Em síntese, reafirmou ser parte ilegítima para responder pelo débito, pois jamais recebeu qualquer valor atinente à ação judicial de medicamentos, nem mesmo teve conhecimento do deferimento do pedido que fizera em março de 2012.

Desta forma, concluiu nas razões recursais, apontou que o ex-advogado é o único responsável pelo ressarcimento do valor sacado. Pediu a a concessão do efeito suspensivo da execução e o provimento do recurso.

Clique aqui para ler a sentença que negou o medicamento

Clique aqui para ler a sentença que mandou devolver os valores

Clique aqui para ler o acórdão do agravo de instrumento

056/1.12.0000480-9 (Comarca de Júlio de Castilhos)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

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Apple não pode recusar orçamento para conserto em celular

É inadmissível que uma empresa de telefone identifique problema causado em um aparelho por conta de atualização automática e ofereça ao cliente, como única opção, a compra de um novo aparelho.

Telefone apresentou problema após atualização automática 
Divulgação

Com esse entendimento, a juíza Oriana Piske, do 4º Juizado Especial Cível de Brasília, deu provimento a uma ação para determinar que a Apple ofereça orçamento para conserto do Iphone 7 de um cliente.

O aparelho apresentou problemas após atualização automática: não fazia ligações e não era possível utilizar dispositivos externos. O cliente então procurou a empresa, que informou que o reparo não seria possível. A única solução seria a troca paga do aparelho.

Segundo a Apple, o aparelho tem mais de dois anos e meio desde que foi comprado e está fora do prazo de garantia, de um ano. O técnico que fez a avaliação encontrou problema placa lógica. Afirmou que o objetivo da ação seria obter garantia eterna do aparelho e não são raros os casos de falhas oriundas da má utilização do equipamento pelo consumidor.

“Diferente do que afirma a empresa ré, o autor não está pleiteando o conserto sem custo do seu aparelho, mas tão somente o direito de ver consertado um telefone que estava funcionando e que parou de funcionar após uma atualização de software”, disse a magistrada.

Por conta disso, considerou que houve falha de prestação de serviço por parte da assistência técnica autorizada. “Certamente um aparelho com menos de três anos de uso ainda tem à disposição do fabricante suas peças de reposição, o que reforça a possibilidade de conserto do equipamento”, acrescentou.

Assim, a assistência deve fornecer orçamento e indicar ao cliente, que se quiser, poderá pagar para que o aparelho seja consertado.

Processo 0701426-88.2020.8.07.0016

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Trâmite de atualização da bula não exime laboratório de culpa

Embora a bula seja o mais importante documento sanitário de veiculação de informações sobre um medicamento, não se pode aproveitar da tramitação administrativa de pedido de atualização junto à Anvisa para se eximir do dever de informar o público sobre os riscos inerentes do uso.

Por remedio, autora adquiriu compulsão por jogo e frequentava bingos 
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Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a responsabilização de um laboratório por conta de efeitos colaterais que causaram a uma consumidora a compulsão por jogo.

A paciente tomou a medicação para Mal de Parkinson, após aumento da dose, dilapidou o patrimônio pessoal de forma considerável ao participar compulsivamente de bingos por três anos.

O laboratório alegou que não houve falta de informação, pois seguiu as normas da Anvisa e inicialmente já incluiu na bula o aviso: “este produto é novo medicamento e, embora pesquisas realizadas tenham mostrado eficácia e segurança quando devidamente indicado, podem ocorrer reações adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas. Em caso de suspeita de reação adversa, o médico deve ser notificado”.

Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, o fato de uso de medicamento causar efeitos colaterais por si só não configura defeito do produto se usuário for previa e devidamente informado e advertido sobre tais riscos. Assim, pode inclusive decidir de forma livre e consciente sobre o tratamento que lhe é prescrito, além minimizar eventuais danos que já sabe que terá.

Não foi o que ocorreu no caso, no entanto. A ministra afirma que é fato incontroverso que jogo compulsivo — uma doença inclusive reconhecida pela Organização Mundial da Sáude — foi reconhecido como efeito colateral da medicação. Quando a paciente passou a fazer uso do produto, isso não constava na bula. Embora agora conste, isso não afasta a responsabilização do laboratório.

Comprovação dos danos e liquidez

Em recurso especial, o laboratório contestava a comprovação do valor dos danos, segundo cálculo aritmético simples — o montante dilapidado do patrimônio da paciente com a compulsão chegaria a R$ 1,1 milhão. Por outro lado, a autora da ação tentava comprovar lucros cessantes: o valor que ela deixou de ganhar por conta dos efeitos que essa compulsão causou.

A 3ª Turma aplicou a Súmula 7 e, por não poder analisar provas, manteve a decisão. Por outro lado, afastou a culpa concorrente da autora determinada pelo tribunal de origem. Considerou-se, a princípio, que o aumento da dose do medicamento e seu uso combinado com outro remédio piorou o quadro clínico. E para isso, a autora também teria parcela de culpa.

“Em nenhum momento é imputado à paciente o comportamento de ingerir dosagem superior à recomendada pelo laboratório ou prescrita pela médica. Não se sustenta o fundamento do acórdão para reconhecer culpa concorrente da paciente, no sentido de que a hipossuficiente técnica para valiar alteração medicamentosa não afasta o dever de cuidado com a própria saúde e consultar especialista médico”, apontou a ministra Nancy Andrighi. 

REsp 1.774.372

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Fernando Lacerda: Retroatividade do fim do voto de qualidade

A Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, extinguiu o voto de qualidade no âmbito do Carf, determinando que, no caso de empate, o julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário deve ser resolvido favoravelmente ao sujeito passivo.

De agora em diante, os recursos estarão sujeitos a uma nova regra de julgamento mais favorável ao contribuinte. O Carf é um órgão colegiado e paritário, de modo que metade dos membros das turmas julgadoras são auditores indicados pela Receita Federal e a outra metade é composta por representantes dos contribuintes. E, se antes o empate era resolvido com o voto de minerva do presidente da turma ― necessariamente um conselheiro indicado pela Receita Federal ―, daqui para frente o empate levará à vitória do contribuinte.

É dizer que casos idênticos, julgados pelos mesmos conselheiros, de uma mesma turma, mantendo-se os votos exatamente iguais, poderão ter desfechos diametralmente opostos simplesmente porque um dos casos foi julgado na semana passada e o outro será julgado na data de hoje. Pois o mesmo placar de 4 a 4 ou 5 a 5, que até então seria desempatado pelo voto de qualidade de um representante da Fazenda Nacional, a partir de agora resolve-se a favor do sujeito passivo.

Como ficam, então, as questões pretéritas? Sendo a nova regra de julgamento evidentemente mais benéfica ao contribuinte, será possível aplicá-la retroativamente? Se o crédito tributário é composto pelo valor principal, multa e juros, seria possível a aplicação retroativa parcial da norma mais benéfica para ao menos alcançar a multa e/ou os juros?

A par das instigantes questões sobre o impacto na esfera tributária, nosso olhar se volta agora à repercussão criminal nos inquéritos policiais e ações penais originados por representações fiscais para fins penais, em casos decididos contra os interesses do contribuinte pelo voto de qualidade no âmbito do Carf.

Essa preocupação foi externada pelo procurador-geral da República e pelo ministro da Justiça, que recomendaram ao presidente da República vetar a norma que instituiu o fim do voto de qualidade.

O procurador-geral da República enviou um ofício [1] ao presidente Jair Bolsonaro apontando que a alteração legislativa poderia “afetar a eficácia e a credibilidade do sistema persecução penal pátrio, no que se refere ao combate aos crimes fiscais”. Para Augusto Aras, o fim do voto de qualidade poderia resultar no “trancamento de várias e importantes ações penais em curso” e “o imediato arquivamento de inúmeras Representações Penais para Fins Penais, ante a desconstituição dos créditos tributários subjacentes, impedindo, assim, o início ou desenvolvimento de investigações”.

Nas palavras do representante do Ministério Público Federal, com a nova sistemática de julgamento no Carf poderia se alegar que “tratando-se de lei que repercute na esfera penal de forma mais benéfica, deve ser aplicada retroativamente, comprometendo-se importantes investigações e processos em curso, impedindo-se que tantas outras se iniciem a partir das representações encaminhadas pelas RFB”.

O mesmo receio foi compartilhado pelo Ministério da Justiça [2], ao prever que “o fim do voto de qualidade no CARF poderá ter impacto no combate ao crime”. Para o ex-ministro Sergio Moro, “a constituição do crédito tributário é, por sua vez, fundamental para tipificação do crime contra a ordem tributária, com o que eventual fragilização do procedimento de formação tem, além de consequências na arrecadação tributária, efeito colateral negativo no combate ao crime em geral”.

Não sem razão, pois o impacto na esfera criminal do fim do voto de qualidade nos parece evidente. Tratando-se de inovação legislativa que repercute de forma mais benéfica na situação penal do contribuinte a ser investigado ou acusado pela prática de crime contra a ordem tributária, é inevitável que se aplique retroativamente a todos os inquéritos policiais e processos criminais originados de lançamentos tributários julgados pelo voto de qualidade no âmbito do Carf.

O temor punitivista consubstanciado nas palavras do procurador-geral da República e do ministro da Justiça revela a medida urgente após a entrada em vigor dessa alteração legislativa: todos os casos criminais originados de julgamentos do Carf decididos pelo voto de qualidade devem ser revistos.

Tratando-se de delito fiscal referente a crédito tributário cuja constituição definitiva se deu pelo voto de qualidade no âmbito do Carf, todos os inquéritos policiais e os processos criminais que estiverem em curso devem ser trancados e todas as condenações devem ser anuladas, imediatamente e independentemente de eventual revisão na esfera tributária.

A aplicação retroativa e imediata do fim do voto de qualidade aos procedimentos criminais é consequência inevitável da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre os crimes contra a ordem tributária. Editada há mais de dez anos, a Súmula Vinculante 24 consolidou entendimento no sentido de que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990 antes do lançamento definitivo do tributo”.

Desde então, embora alvo de inúmeras críticas, a Súmula Vinculante 24 condiciona o início de qualquer ato da persecução criminal ao lançamento definitivo do tributo. É bem verdade que não há consenso no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal sobre a natureza jurídico-penal do lançamento tributário. Ora se afirma que a constituição definitiva do crédito tributário é “elemento típico do delito” [3], ora se lhe aponta como “condição objetiva de punibilidade” [4].

Em todo caso, “quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo” [5], não há discussão sobre a indispensabilidade da constituição definitiva do crédito tributário para o início da persecução penal: “É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade do exaurimento da via administrativa para a validade da ação penal, instaurada para apurar infração aos incisos I a IV do artigo 1º da Lei 8.137/1990” [6].

Para o Supremo Tribunal Federal, um crime contra a ordem tributária só existe após o lançamento definitivo do tributo. Isso fica claro nas decisões sobre o termo inicial de contagem da prescrição, que no âmbito penal é a data de consumação do delito. “É antiga a jurisprudência desta Corte no sentido de que os crimes definidos no artigo 1º da Lei 8.137/1990 são materiais e somente se consumam com o lançamento definitivo do crédito. Por consequência, não há que se falar em prescrição, que somente se iniciará com a consumação do delito, nos termos do artigo 111, I, do CP/1940” [7].

Portanto, “em razão da pendência de recurso administrativo perante as autoridades fazendárias, não se pode falar de crime. Uma vez que essa atividade persecutória funda-se tão somente na existência de suposto débito tributário, não é legítimo ao Estado instaurar processo penal cujo objeto coincida com o de apuração tributária que ainda não foi finalizada na esfera administrativa” [8].

A nosso ver, a discussão sobre a natureza jurídico-penal do lançamento tributário tem sido mal conduzida. Não se trata de qualificá-lo como “condição objetiva de punibilidade” ou “elemento típico do delito” [9]. Em verdade, o que importa não é o conceito de “lançamento definitivo” trazido pela Súmula Vinculante 24, mas sim o conceito de “tributo” que consta no artigo 1º da Lei 8.137/90.

Tal qual o tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/90), que tipifica condutas relacionados ao fornecimento de drogas, o crime contra a ordem tributária previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 tipifica condutas relacionadas à supressão ou redução de tributos. Nos dois casos, estamos diante de norma penal em branco. Tanto o conceito de droga quanto o conceito de tributo deve ser buscado em norma complementar, num caso a portaria da Anvisa e no outro o Código Tributário Nacional.

A legislação tributária define que “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (artigo 3º do Código Tributário Nacional).

Como o “lançamento tributário” ― independentemente de sua qualificação como ato administrativo [10] ou procedimento administrativo [11] ―, é uma etapa indispensável na “atividade administrativa” de cobrança do tributo, só existirá tributo para fins de tipificação do artigo 1º da Lei 8.137/90 após a constituição do crédito tributário pelo lançamento definitivo.

Toda e qualquer alteração legislativa que impacte na formação do lançamento tributário refletirá imediatamente no conceito de tributo previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90. E se tal inovação implica uma forma de tratamento mais benéfica ao contribuinte, deve produzir efeitos na esfera criminal mediante aplicação retroativa.

Sob tais condições deverão ser impactados os casos originados de representações fiscais para fins penais provenientes de decisões contrárias aos interesses do contribuinte, em julgamento resolvido pelo voto de qualidade no âmbito do Carf: todos os inquéritos policiais e processos criminais em curso devem ser trancados e todas as condenações penais devem ser anuladas.

Como só existe crime contra a ordem tributária após o lançamento definitivo do tributo, é inevitável que alterações legislativas na formação do lançamento tributário impactem decisivamente na própria existência do crime. Com o fim do voto de qualidade, operou-se abolitio criminis referente a todas as condutas que à época foram julgadas ilícitas pelo Carf e, segundo os critérios da lei atual, passaram a ser resolvidos favoravelmente ao contribuinte.

 é advogado criminalista, sócio do escritório Serrano Advogados, professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito e doutor e mestre em Direito pela PUC-SP.