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Não cabe ação de improbidade se Justiça diz que conduta é legal

Decisão do Supremo Tribunal Federal que afasta o caráter ilícito da conduta do indicado repercute no âmbito da improbidade administrativa, conforme o artigo 195 do Código Civil. Com esse entendimento e três votos a dois, a 1ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região que rejeitou denúncia contra a ex-governadora do Maranhão, Roseana Sarney.

Ministro Napoleão Nunes Maia criticou uso da ação de improbidade para investigação

Ela foi investigada com outras 40 pessoas por irregularidades na aplicação de recursos do Fundo de Investimento da Amazônia (Finam), administrado pela Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudam) no projeto Usimar, que tinha por objetivo a fundição de metais e usinagem de componentes automotivos.

Pelos exatos mesmos motivos, eles foram denunciados na área criminal. Como a ex-governadora estava no exercício do mandato no Senado, o caso tramitou no STF. Relator, o ministro Gilmar Mendes recusou o recebimento da denúncia porque entendeu que o Ministério Público Federal não estabeleceu relação entre a atuação de Roseana e os alegados fatos criminosos. 

Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Napoleão Nunes Maia, segundo o qual não cabe instauração da ação de improbidade administrativa se, no âmbito penal, reconhece-se não meramente a ausência de provas, mas que não há ilícito na conduta praticada pelo acusado. Se o órgão de acusação não consegue estabelecer a ligação do ato punível, não se pode atribuir conduta nenhuma ao imputado — seja na esfera criminal ou administrativa.

Interpretação

Ficaram vencidos a ministra Regina Helena Costa e o ministro Benedito Gonçalves, para quem a justa causa da ação está fundamentada: os indícios das irregularidades. Quando o STF diz que a ré não praticou ilícito penal, o faz apenas na jurisdição criminal. No caso, não houve discussão sobre negativa de autoria ou ausência do fato, até porque não houve denúncia. 

“Não significa, no meu entender, que sequer se possa apurar eventual ato de improbidade”, disse a ministra. Pela jurisprudência das turmas de Direito Público do STJ, presentes indícios de cometimento de ato ímprobo, figura-se devido o recebimento da ação. Ao recorrer, o MPF ainda apontou o princípio in dubio pro societate.

“Qual foi a apuração administrativa que se fez? Se está usando a ação de improbidade como investigação, como se usou até recentemente a ação penal para cobrar dívida fiscal. O requisito da justa causa está completamente banalizado, e os magistrados têm sido pouco zelosos com essa exigência”, criticou o relator. 

A ministra Regina entendeu ter havido a rejeição da denúncia, não a absolvição por ausência de provas, situação que também não repercute na esfera da ação de improbidade — não bloqueia ou impede seu processamento. “Ação de improbidade é sede própria para caso de improbidade. Não precisa de processo administrativo”, afirmou.

O ministro Sergio Kukina seguiu o relator. O princípio in dubio pro societate, explicou, é válido para quando há dúvida em que o juízo criminal não tenha dissipado por completo a inexistência do fato ou a negativa de autoria. Neste caso, no entanto, entendeu que o Supremo afirmou de maneira categórica a inexistência de vínculo subjetivo.

O voto de desempate foi proferido na sessão por videoconferência de terça-feira (12/5), após pedido de vista do ministro Gurgel de Faria. Ele interpretou que, segundo a decisão do STF, não há elementos para caracterizar a ação penal ou de improbidade.

AREsp 1.098.135

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STF nega recurso da Rede Sustentabilidade contra decisão da Funai

Derrota no Supremo

STF nega recurso da Rede Sustentabilidade contra decisão da Funai

A Rede Sustentabilidade amargou uma derrota nesta quarta-feira (6/5) no Supremo Tribunal Federal. O partido havia ajuizado a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 679 contra uma instrução normativa da Fundação Nacional do Índio (Funai) que alterou regras sobre requerimento, análise e emissão da Declaração de Reconhecimento de Limites de imóveis rurais privados, mas o pedido foi indeferido pelo ministro Luiz Fux.

O ministro Luiz Fux não atendeu ao pedido da Rede Sustentabilidade
Nelson Jr.-SCO-STF 

Em sua decisão, o ministro afirmou que julgou inviável a ADPF por não se tratar do instrumento indicado para o caso. Segundo Fux, o recurso utilizado pela Rede Sustentabilidade tem caráter excepcional e subsidiário e, por esse motivo, só deve ser usado se não houver outro meio eficaz para resolver o assunto. O ministro entendeu que, no caso em questão, a Rede poderia ter entrado com um mandado de segurança.   

“Ainda que se trate de um ato do poder público, não é irrestrita e genérica sua impugnação pela via da ADPF, sob pena de se legitimar uma judicialização excessiva e universal”, explicou Fux, para quem o uso da ADPF nessa situação banalizaria o próprio instrumento e o controle de constitucionalidade exercido pelos tribunais inferiores.

A causa da controvérsia foi a Instrução Normativa 9/2020 da Funai, órgão ligado ao Ministério da Justiça. De acordo com a argumentação da Rede, a medida — que apresenta mudanças na emissão de documento somente para reservas e terras indígenas homologadas ou regularizadas por decreto presidencial, sem menção ao uso ou à vivência no solo  — torna frágil a proteção de terras indígenas e vai contra a Constituição Federal e acordos internacionais sobre o tema.

O partido alegava também que os indígenas deveriam ter sido ouvidos antes da decisão da Funai e que a instrução normativa desrespeita seu direito originário sobre as terras que ocupam. Com informações da assessoria de imprensa do Supremo Tribunal Federal.

ADPF 679

Revista Consultor Jurídico, 7 de maio de 2020, 20h31

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Fernando Lacerda: Retroatividade do fim do voto de qualidade

A Lei nº 13.988, de 14 de abril de 2020, extinguiu o voto de qualidade no âmbito do Carf, determinando que, no caso de empate, o julgamento do processo administrativo de determinação e exigência do crédito tributário deve ser resolvido favoravelmente ao sujeito passivo.

De agora em diante, os recursos estarão sujeitos a uma nova regra de julgamento mais favorável ao contribuinte. O Carf é um órgão colegiado e paritário, de modo que metade dos membros das turmas julgadoras são auditores indicados pela Receita Federal e a outra metade é composta por representantes dos contribuintes. E, se antes o empate era resolvido com o voto de minerva do presidente da turma ― necessariamente um conselheiro indicado pela Receita Federal ―, daqui para frente o empate levará à vitória do contribuinte.

É dizer que casos idênticos, julgados pelos mesmos conselheiros, de uma mesma turma, mantendo-se os votos exatamente iguais, poderão ter desfechos diametralmente opostos simplesmente porque um dos casos foi julgado na semana passada e o outro será julgado na data de hoje. Pois o mesmo placar de 4 a 4 ou 5 a 5, que até então seria desempatado pelo voto de qualidade de um representante da Fazenda Nacional, a partir de agora resolve-se a favor do sujeito passivo.

Como ficam, então, as questões pretéritas? Sendo a nova regra de julgamento evidentemente mais benéfica ao contribuinte, será possível aplicá-la retroativamente? Se o crédito tributário é composto pelo valor principal, multa e juros, seria possível a aplicação retroativa parcial da norma mais benéfica para ao menos alcançar a multa e/ou os juros?

A par das instigantes questões sobre o impacto na esfera tributária, nosso olhar se volta agora à repercussão criminal nos inquéritos policiais e ações penais originados por representações fiscais para fins penais, em casos decididos contra os interesses do contribuinte pelo voto de qualidade no âmbito do Carf.

Essa preocupação foi externada pelo procurador-geral da República e pelo ministro da Justiça, que recomendaram ao presidente da República vetar a norma que instituiu o fim do voto de qualidade.

O procurador-geral da República enviou um ofício [1] ao presidente Jair Bolsonaro apontando que a alteração legislativa poderia “afetar a eficácia e a credibilidade do sistema persecução penal pátrio, no que se refere ao combate aos crimes fiscais”. Para Augusto Aras, o fim do voto de qualidade poderia resultar no “trancamento de várias e importantes ações penais em curso” e “o imediato arquivamento de inúmeras Representações Penais para Fins Penais, ante a desconstituição dos créditos tributários subjacentes, impedindo, assim, o início ou desenvolvimento de investigações”.

Nas palavras do representante do Ministério Público Federal, com a nova sistemática de julgamento no Carf poderia se alegar que “tratando-se de lei que repercute na esfera penal de forma mais benéfica, deve ser aplicada retroativamente, comprometendo-se importantes investigações e processos em curso, impedindo-se que tantas outras se iniciem a partir das representações encaminhadas pelas RFB”.

O mesmo receio foi compartilhado pelo Ministério da Justiça [2], ao prever que “o fim do voto de qualidade no CARF poderá ter impacto no combate ao crime”. Para o ex-ministro Sergio Moro, “a constituição do crédito tributário é, por sua vez, fundamental para tipificação do crime contra a ordem tributária, com o que eventual fragilização do procedimento de formação tem, além de consequências na arrecadação tributária, efeito colateral negativo no combate ao crime em geral”.

Não sem razão, pois o impacto na esfera criminal do fim do voto de qualidade nos parece evidente. Tratando-se de inovação legislativa que repercute de forma mais benéfica na situação penal do contribuinte a ser investigado ou acusado pela prática de crime contra a ordem tributária, é inevitável que se aplique retroativamente a todos os inquéritos policiais e processos criminais originados de lançamentos tributários julgados pelo voto de qualidade no âmbito do Carf.

O temor punitivista consubstanciado nas palavras do procurador-geral da República e do ministro da Justiça revela a medida urgente após a entrada em vigor dessa alteração legislativa: todos os casos criminais originados de julgamentos do Carf decididos pelo voto de qualidade devem ser revistos.

Tratando-se de delito fiscal referente a crédito tributário cuja constituição definitiva se deu pelo voto de qualidade no âmbito do Carf, todos os inquéritos policiais e os processos criminais que estiverem em curso devem ser trancados e todas as condenações devem ser anuladas, imediatamente e independentemente de eventual revisão na esfera tributária.

A aplicação retroativa e imediata do fim do voto de qualidade aos procedimentos criminais é consequência inevitável da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal sobre os crimes contra a ordem tributária. Editada há mais de dez anos, a Súmula Vinculante 24 consolidou entendimento no sentido de que “não se tipifica crime material contra a ordem tributária, previsto no artigo 1º, incisos I a IV, da Lei 8.137/1990 antes do lançamento definitivo do tributo”.

Desde então, embora alvo de inúmeras críticas, a Súmula Vinculante 24 condiciona o início de qualquer ato da persecução criminal ao lançamento definitivo do tributo. É bem verdade que não há consenso no âmbito do próprio Supremo Tribunal Federal sobre a natureza jurídico-penal do lançamento tributário. Ora se afirma que a constituição definitiva do crédito tributário é “elemento típico do delito” [3], ora se lhe aponta como “condição objetiva de punibilidade” [4].

Em todo caso, “quer se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade ou um elemento normativo de tipo” [5], não há discussão sobre a indispensabilidade da constituição definitiva do crédito tributário para o início da persecução penal: “É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal quanto à necessidade do exaurimento da via administrativa para a validade da ação penal, instaurada para apurar infração aos incisos I a IV do artigo 1º da Lei 8.137/1990” [6].

Para o Supremo Tribunal Federal, um crime contra a ordem tributária só existe após o lançamento definitivo do tributo. Isso fica claro nas decisões sobre o termo inicial de contagem da prescrição, que no âmbito penal é a data de consumação do delito. “É antiga a jurisprudência desta Corte no sentido de que os crimes definidos no artigo 1º da Lei 8.137/1990 são materiais e somente se consumam com o lançamento definitivo do crédito. Por consequência, não há que se falar em prescrição, que somente se iniciará com a consumação do delito, nos termos do artigo 111, I, do CP/1940” [7].

Portanto, “em razão da pendência de recurso administrativo perante as autoridades fazendárias, não se pode falar de crime. Uma vez que essa atividade persecutória funda-se tão somente na existência de suposto débito tributário, não é legítimo ao Estado instaurar processo penal cujo objeto coincida com o de apuração tributária que ainda não foi finalizada na esfera administrativa” [8].

A nosso ver, a discussão sobre a natureza jurídico-penal do lançamento tributário tem sido mal conduzida. Não se trata de qualificá-lo como “condição objetiva de punibilidade” ou “elemento típico do delito” [9]. Em verdade, o que importa não é o conceito de “lançamento definitivo” trazido pela Súmula Vinculante 24, mas sim o conceito de “tributo” que consta no artigo 1º da Lei 8.137/90.

Tal qual o tráfico de drogas (artigo 33 da Lei 11.343/90), que tipifica condutas relacionados ao fornecimento de drogas, o crime contra a ordem tributária previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90 tipifica condutas relacionadas à supressão ou redução de tributos. Nos dois casos, estamos diante de norma penal em branco. Tanto o conceito de droga quanto o conceito de tributo deve ser buscado em norma complementar, num caso a portaria da Anvisa e no outro o Código Tributário Nacional.

A legislação tributária define que “tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada” (artigo 3º do Código Tributário Nacional).

Como o “lançamento tributário” ― independentemente de sua qualificação como ato administrativo [10] ou procedimento administrativo [11] ―, é uma etapa indispensável na “atividade administrativa” de cobrança do tributo, só existirá tributo para fins de tipificação do artigo 1º da Lei 8.137/90 após a constituição do crédito tributário pelo lançamento definitivo.

Toda e qualquer alteração legislativa que impacte na formação do lançamento tributário refletirá imediatamente no conceito de tributo previsto no artigo 1º da Lei 8.137/90. E se tal inovação implica uma forma de tratamento mais benéfica ao contribuinte, deve produzir efeitos na esfera criminal mediante aplicação retroativa.

Sob tais condições deverão ser impactados os casos originados de representações fiscais para fins penais provenientes de decisões contrárias aos interesses do contribuinte, em julgamento resolvido pelo voto de qualidade no âmbito do Carf: todos os inquéritos policiais e processos criminais em curso devem ser trancados e todas as condenações penais devem ser anuladas.

Como só existe crime contra a ordem tributária após o lançamento definitivo do tributo, é inevitável que alterações legislativas na formação do lançamento tributário impactem decisivamente na própria existência do crime. Com o fim do voto de qualidade, operou-se abolitio criminis referente a todas as condutas que à época foram julgadas ilícitas pelo Carf e, segundo os critérios da lei atual, passaram a ser resolvidos favoravelmente ao contribuinte.

 é advogado criminalista, sócio do escritório Serrano Advogados, professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito e doutor e mestre em Direito pela PUC-SP.