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Advogado que reteve valor deve devolvê-lo se caiu a liminar

Cliente que não sacou o dinheiro do estado para compra de medicamento, nem foi informado pelo advogado do andamento e desfecho do processo, não pode ser responsabilizado pela sua devolução numa ação de execução decorrente de cumprimento de sentença.

Reprodução

Por isso, a 4ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu recurso para impedir que a autora de uma ação de medicamentos fosse parar no polo passivo da execução, que pedia a devolução dos valores em função da sentença de improcedência. Por unanimidade, ela foi declarada parte ilegítima na ação executória.

Ao prover o agravo de instrumento manejado pela autora da ação, o desembargador-relator Eduardo Uhlein afirmou ser “incontroverso” que o advogado dela levantou, pessoalmente, o dinheiro liberado por decisão liminar para a compra do medicamento, sem repassá-lo à cliente.

Numa situação como esta, destacou, deve ser observado o artigo 876 do Código Civil, pois “todo aquele que recebeu o que lhe não era devido fica obrigado a restituir”.

Em reforço à sua posição, Uhlein citou o parecer do procurador de justiça Luiz Achylles Petiz Bardou, que assim se manifestou, no ponto: “Sequer sabia a agravante [autora da ação] que havia obtido decisão favorável a si, porquanto seu procurador, em vez de alcançar-lhe o medicamento, conforme compromisso por ele assumido nos autos, silenciou a respeito, deixando de prestar contas de numerário que foi por ele levantado. Tanto o procurador tem ciência da ilegalidade praticada que se ofereceu a restituir os valores aos cofres públicos”. O acórdão foi lavrado na sessão de 26 de maio.

Ação de obrigação de fazer

Romilda Barbosa Oliveira ajuizou ação de obrigação de fazer em face do Estado do Rio Grande do Sul para compeli-lo a adquirir o medicamento Synviscone, uma ampola de 6 ml para cada joelho, para tratamento da doença conhecida como gonartrose bilateral (desgaste nos joelhos). A ação foi distribuída em 10 de abril de 2010 no cartório da Vara Judicial da Comarca de Júlio de Castilhos.

Em despacho liminar proferido no dia 20 de junho de 2012, a juíza Priscila Gomes Palmeiro concedeu a antecipação de tutela, condenando o ente público a fornecer o medicamento em cinco dias a partir da data de intimação judicial ou, então, a depositar o valor na conta da autora para sua posterior aquisição.

Para a julgadora, o atestado e o receituário anexados aos autos dão veracidade às alegações postas na petição inicial, pois há necessidade de uso da medicação contínua para tratamento da moléstia. “O receio de dano irreparável é inerente ao próprio bem jurídico tutelado, a vida, sendo oportuno salientar que a ausência de medicação importa em grave risco de dano irreparável à saúde e à vida da requerente”, fundamentou no despacho.

O Estado do Rio Grande do Sul, no entanto, não cumpriu a decisão liminar, o que obrigou o advogado da autora a requerer o bloqueio de valores. Em despacho assinado no dia 23 de agosto, a mesma juíza determinou o bloqueio de R$ 1.840 na conta bancária do Estado, suficientes para aplicação de duas doses do medicamento, e posterior depósito em conta judicial.

Deferida antecipação de tutela, o procurador da autora, advogado Renan José Appel Barichello, voltou a peticionar ao juízo da Vara. Informou que, diante do fato de a autora residir no Município de Pinhal Grande, sacaria o alvará no nome  dela, realizando a compra e consequente entrega do medicamento, com prestação de contas. O juízo autorizou.

“Desde já, fica autorizada a expedição de alvará, em nome do procurador signatário, para o levantamento do valor, com prestação de contas no prazo de cinco dias do recebimento, sob pena de responsabilização cível e criminal. Cumpra-se com urgência”, registrou o despacho.

No curso da ação, o Estado apresentou contestação por meio da Procuradoria-Geral do Estado (PGE-RS). Em síntese, impugnou a eficácia do medicamento. Reclamou que o medicamento consta na inicial pelo nome comercial, contrariando o que determina o artigo 3º da Lei 9.787/99 (Lei dos Genéricos). Em caso de procedência da ação, no julgamento de mérito, pleiteou a realização de exames periódicos, a fim de constatar a necessidade de manutenção do tratamento.

Em 17 de abril de 2013, a parte autora foi intimada a prestar contas do valor levantado no alvará judicial e/ou comprovar sua restituição aos cofres do Estado no prazo de 48 horas. Não fez uma coisa nem outra. O Ministério Público, por sua vez, declinou de intervir no processo.

Sentença improcedente

Decorridos quase cinco anos do ajuizamento, especificamente no dia 15 de fevereiro de 2017, o juiz Ulisses Drewanz Gräbner julgou improcedente a ação de obrigação de fazer. Afirmou que a parte autora, apesar de intimada, não trouxe aos autos nenhuma comprovação de compra do medicamento neste tempo todo. E essa omissão sugere “desnecessidade do tratamento”, deduziu.

“Posto isso, vale ressaltar que as ações de saúde, em face da dignidade da pessoa humana, quebram a isonomia e a universalidade das políticas públicas, como defendido pelo Município e, com isso, é necessário que seja demonstrada de forma robusta a necessidade do fármaco”, justificou na sentença.

Fase de cumprimento de sentença

Em despacho assinado no dia 3 de agosto de 2017, Gräbner intimou a autora a devolver o valor bloqueado do Estado, devidamente corrigido, no prazo de 30 dias, sob pena de cometimento de crime de apropriação indébita.

Sem resposta, o mesmo juiz, no dia 9 de agosto de 2017, intimou a devedora na pessoa do seu advogado. Deu prazo de 15 dias para o pagamento, sob pena de incidência de multa e de honorários advocatícios, ambos em 10%, cumulativamente sobre o débito atualizado.

Com o silêncio da parte e de seu advogado, o Estado, por meio da PGE, pediu o cumprimento de sentença, com a busca de bens junto á Receita Federal, via sistema InfoJud, para quitação da dívida. Em 25 de maio de 2018, o juiz Ulisses Drewanz Gräbner deferiu a medida, limitando a investigação dos bens aos últimos três anos.

Em 14 de junho de 2018, o juiz expediu mandado de penhora para ser cumprido na casa da parte autora — agora, na fase de cumprimento de sentença, como parte executada no processo. “Em caso de não encontrar bens penhoráveis, deverá o Oficial de Justiça descrever na certidão os bens que guarnecem a residência da executada, conforme dispõe artigo 836, §1º do CPC”, orientou no despacho.

Exceção de pré-executividade

Surpreendida com o mandado de penhora, depósito e avaliação, o qual restou frustrado diante da ausência de bens em seu nome, Romilda Barbosa Oliveira procurou a Defensoria Pública e ainda registrou Boletim de Ocorrência policial, em face do advogado Renan José Appel Barichello, pelo delito de apropriação indébita.

Representada por defensor público, ela manejou uma exceção de pré-executividade em face do Estado. Trata-se de instrumento utilizado no processo de execução, em que o devedor “provoca” o juízo com o intuito de suspender a ação executiva, mediante a arguição de alguma nulidade processual. Neste, anexou declaração do próprio ex-advogado, na qual ele manifesta interesse em devolver, aos cofres do Estado, a importância recebida por meio de alvará judicial.

Na fundamentação da petição, a autora sustentou que não é parte legítima para figurar no polo passivo do cumprimento de sentença. Afirmou que o antigo procurador, sem o seu consentimento, sacou o dinheiro e não o repassou, tampouco adquiriu o medicamento ou prestou contas. Ainda: garantiu que não teve conhecimento da decisão que determinou a devolução dos valores, pois publicada via Nota de Expediente ao referido advogado. Assim, pleiteou que o juízo recebesse a exceção de pré-executividade para determinar o redirecionamento do cumprimento de sentença ao ex-procurador.

Exceção rejeitada

A juíza Samyra Remzetti Bernardi, da Vara Judicial da Comarca de Júlio de Castilhos, rejeitou a exceção de pré-executividade, mantendo ambos — a autora e seu advogado — no polo passivo da execução. Afinal, na percepção da julgadora, foi a autora que outorgou poderes ao procurador para o bloqueio de valores e retirada de dinheiro para a compra de medicamentos. Com isso, deve ser mantida a sua responsabilidade, de forma solidária.

Samyra também deferiu o pedido do advogado, de parcelar o pagamento da dívida em 10 parcelas, e notificou a OAB gaúcha, para a apuração da conduta profissional.

Agravo de instrumento

Em combate à decisão da juíza, o defensor de Romilda Barbosa de Oliveira interpôs recurso de agravo de instrumento no Tribunal de Justiça. Em síntese, reafirmou ser parte ilegítima para responder pelo débito, pois jamais recebeu qualquer valor atinente à ação judicial de medicamentos, nem mesmo teve conhecimento do deferimento do pedido que fizera em março de 2012.

Desta forma, concluiu nas razões recursais, apontou que o ex-advogado é o único responsável pelo ressarcimento do valor sacado. Pediu a a concessão do efeito suspensivo da execução e o provimento do recurso.

Clique aqui para ler a sentença que negou o medicamento

Clique aqui para ler a sentença que mandou devolver os valores

Clique aqui para ler o acórdão do agravo de instrumento

056/1.12.0000480-9 (Comarca de Júlio de Castilhos)

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio Grande do Sul.

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TRF-4 autoriza demolição de imóveis em área ambiental no PR

Quem constrói ilegalmente em área de proteção permanente e se esconde do Ministério Público, para não ser responsabilizado judicialmente pelos danos ambientais, não pode reclamar da falta de oferecimento de termo de ajuste de conduta (TAC). Afinal, não é dado a ninguém se beneficiar da própria torpeza.

Trecho do rio Paraná em São Pedro (PR)
Divulgação

Por isso, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmou sentença que determinou a demolição de cerca de 20 imóveis construídos irregularmente, por posseiros não identificados, nas ilhas Tararã, Mineira e Cruzeiro, situadas no município de São Pedro do Paraná (PR).

A demolição é necessária para a recomposição da flora e da fauna nesta Unidade de Conservação da Área de Proteção Ambiental Federal das Ilhas e Várzeas do Rio Paraná. A decisão do colegiado, por unanimidade, foi tomada durante sessão de julgamento virtual realizada no último dia 2.

Ação civil pública

O Ministério Público Federal, após inquérito civil aberto em 2014, propôs a ação civil pública (ACP) para identificar os responsáveis pelas edificações construídas ilegalmente, que estavam acumulando lixo e despejando esgoto não tratado diretamente no rio.

A Procuradoria da República no município de Paranavaí (PR) não conseguiu identificar os ocupantes irregulares, mas apurou que os imóveis eram casas de lazer. A citação dos prováveis donos dos imóveis se deu por publicação de edital.

Como requerimento da ação, o MPF solicitou a condenação dos réus à demolição total das construções, à retirada dos entulhos e à regeneração da área de proteção, sob a orientação de instituições fiscalizadoras. Ainda pediu o pagamento de compensação pecuniária destinada ao Fundo Nacional do Meio Ambiente pelos danos ambientais e morais causados.

Sentença procedente

Após a autorização judicial para a lacração dos imóveis ser concedida liminarmente, o pedido teve o mérito analisado pela 1ª Vara Federal de Paranavaí (PR), que condenou os responsáveis pelas 19 casas notificadas. O juízo autorizou a demolição total das edificações.

Para o juiz federal Adriano José Pinheiro, a usurpação do patrimônio público, por si só, é o bastante para justificar a imediata desocupação do bem por aquele que injustamente e de má-fé exerce a posse.

“Em se tratando de área pública situada em APP e APA, como no caso, com mais razão ainda há que se determinar não apenas a desocupação do imóvel de domínio público, mas a reparação integral do dano ambiental causado pela ocupação irregular e as alterações que essa indevidamente causou no ambiente”’, complementou num trecho da sentença.

Apelação ao TRF-4

Os ocupantes dos imóveis notificados pela Justiça, pessoas físicas ainda não identificadas, representados por advogado dativo, contestaram as determinações da sentença. Preliminarmente, pediram a suspensão da ação até que lhes fosse oportunizada a celebração de TAC. No mérito, alegaram ausência de provas de dano ambiental e falta de perícia técnica.

O relator do recurso na 3ª Turma, desembargador Rogerio Favreto, manteve a condenação de primeiro grau, afastando as alegações dos réus. Ele salientou a importância de outras provas, como o laudo pericial do Instituto Ambiental do Paraná (IAP), a nota técnica elaborada pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e diversas imagens fotográficas da área anexadas aos autos.

Quanto ao direito dos réus aos termos, Favreto observou que “a ausência de celebração de TAC no caso concreto apenas pode ser atribuída à omissão dos próprios réus, que insistem em se ocultar, a fim de eximir-se de eventual responsabilidade ambiental pelos danos causados em razão das construções descritas nos autos”. Com informações da Assessoria de Imprensa do TRF-4.

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5000351-90.2016.4.04.7011/PR

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Uytdenbroek: A Lei de Fauna do Espírito Santo

O presente debate traz a reflexão do ponto de vista ambiental sobre o perigo do ingresso de espécimes invasoras de animais silvestres no estado do Espírito Santo, que pode vir a ser exemplo para os demais entes federativos.

No âmbito nacional, a Lei nº 5.197/67, em seu artigo 4º, cuidou da proibição de espécimes introduzidas no país sem o devido parecer técnico oficial favorável, além da necessária licença expedida na forma da lei pelas autoridades competentes. Significa dizer que um cidadão ao ingressar no país portando um animal diverso dos aqui já conhecidos, mesmo que o ser vivo possa aparentar certa inofensividade, terá de submeter o animal ao crivo das autoridades portuárias ou aeroportuárias responsáveis pela análise de risco do ingresso daquele ser vivo no país.

Embora seja louvável o intuito do legislador nacional, restavam lacunas normativas a serem preenchidas, demandando do poder público explicações e orientações mais precisas sobre as espécies invasoras.

Depois tramitar por alguns anos no Instituto Estadual do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (Iema), autarquia ambiental capixaba, e na Secretaria Estadual do Meio Ambiente (Seama), sendo submetido de igual modo à apreciação de outros órgãos envolvidos na contribuição da construção da norma, saiu do forno um projeto de lei complementar que instituiu a Política Estadual de Proteção à Fauna Silvestre no Estado do Espírito Santo. Logo, a Lei Complementar nº 936, publicada em dezembro de 2019, em minúcias, aborda o tema com merecido zelo e controle na tratativa do ingresso de espécimes que não são nativas do estado e tampouco do país. Em outras palavras, a norma capixaba visa a estancar a entrada de seres contaminados, portadores de doenças desconhecidas e, sobretudo, invasores disseminadores de doenças capazes de contaminar outros seres vivos que habitam no estado, provocando danos sanitários e econômicos.

A lei capixaba trouxe expressividade no tema entorno da saúde pública, particularmente no que trata do constante risco do ingresso de espécimes invasoras no Estado. Como informado, a norma em apreço serve de exemplo para os demais entes federativos, mormente àqueles que possuem portos e aeroportos destinados a importação e exportação, cujo ingresso de animais se torna mais propício e facilitador.

Pois entre outros tópicos relevantes ao meio ambiente, em tempos de Covid-19, destaco um que chama atenção, que é o dispositivo previsto no artigo 2º, inciso V, da Lei Complementar nº 936/2019, cuja redação esclarece o que é fauna exótica invasora: “Espécie introduzida a um ecossistema do qual não faz parte originalmente, mas onde se adapta e passa a exercer dominância, prejudicando processos naturais e espécies nativas, podendo causar prejuízos de ordem econômica e social”.

Numa rápida leitura, percebemos que o portador de animal silvestre, mesmo sem saber a origem da espécie, acreditando ser um animal doméstico e comum em outros países, é obrigado a submeter o ser vivo ao filtro das autoridades ambientais competentes, sob pena de incorrer em pena de elevada multa (artigo 20 da LC nº 963/2019). Observe que a mera omissão do portador do animal é suficiente para aplicação da penalidade pelas autoridades públicas.

O cuidado para barrar o ingresso de animais exóticos é uma preocupação cada vez mais latente nos dias hoje, principalmente quando fontes extraídas da Organização Nacional da Saúde (OMS) imputam o surgimento da Covid-19 ao consumo humano de animais portadores de doenças desconhecidas.

À guisa de exemplo, importa recordar o ingresso do peixe bagre-africano (Clarias Gariepinus[1] no Brasil. Em meados da década de 80, o peixe foi inicialmente introduzido na aquacultura, com objetivos econômicos. Mas, quando os especialistas perceberam o completo descontrole da espécie predadora natural e, o que é pior, de elevada resistência em ambientes diversos e inóspitos, já era tarde. Descobriu-se um animal de poucos predadores naturais e com possibilidade de adaptação em diversos biomas. O bagre-africano é capaz de sobreviver em condições precárias, águas sujas, alimentando-se de outros peixes, pequenos pássaros, anfíbios, répteis, caranguejos e plantas, sendo um ser resistente que, com suas fortes nadadeiras, é capaz de atravessar sítios e córregos de um canto para outro, procurando alimentos e melhores condições de reprodução. Vale dizer, é um animal devastador, causador de dano, e ninguém imaginava, na década de 80, o tamanho do estrago que o peixe poderia fazer.

Nesse cenário, a norma estadual capixaba inova ao trazer um mecanismo de segurança ao estado, permitindo que as autoridades ambientais competentes controlem o ingresso de espécimes invasoras, prevenindo dessa forma, a disseminação e possível transmissão de doenças até então desconhecidas, como era a Covid-19.

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Grace Mendonça: Repercussão geral consolida segurança jurídica

O instituto da repercussão geral, incorporado no ordenamento jurídico brasileiro como mecanismo de aprimoramento da jurisdição constitucional[2], revela consistência de vocação e força propulsora de um dos mais importantes postulados do Estado Democrático de Direito encartados na Constituição da República: a segurança jurídica.

A afirmação e as reflexões ora compartilhadas pautam-se pela concepção do instituto como instrumento capaz de uniformizar linhas interpretativas e, em decorrência, de transformar a segurança jurídica em valor tangível, sem, contudo, pretender adentrar na perspectiva da repercussão geral como barreira ou filtro apto a mitigar o volume de processos alçados à Suprema Corte do país – aspecto que detém premissas e ângulos próprios, inclusive no tocante aos impressionantes números da judicialização constitucional no Brasil. Não se pretende, portanto, abordar o instituto da repercussão geral à luz de sua incidência inicial junto à Suprema Corte, permeada pelos desafios de um Tribunal Constitucional assoberbado de processos, mas de suas qualidades e resultados positivos ao final de seu percurso.

Assim, ao circunscrever a competência recursal extraordinária da Suprema Corte à apreciação e julgamento de  recursos, cuja relevância social, política, econômica ou jurídica transcenda os interesses subjetivos da causa e, concomitantemente, pacificar a interpretação constitucional a ser adequadamente aplicada aos múltiplos litígios que encerram a mesma questão constitucional, a repercussão geral é instituto dotado de habilidades diferenciadas para elidir incertezas e instabilidades, tão deletérias à percepção social de justiça.

Desde a sua efetivação[3], foram submetidos à apreciação da Corte 1.089 casos representativos da controvérsia. Desse acervo, o Supremo Tribunal Federal acolheu a repercussão geral em 737 processos e negou em 342 feitos, estando pendente de apreciação 4 (quatro) casos. Dos processos em que restou reconhecida a preliminar de repercussão geral (737), o Supremo Tribunal Federal já se debruçou e decidiu o mérito de 437 recursos extraordinários, julgando em definitivo os feitos representativos de controvérsia[4].

A pacificação interpretativa é manifestada em teses de repercussão geral cuidadosamente fixadas pelo Colegiado, as quais passam a nortear as decisões a serem tomadas pelas demais instâncias do Poder Judiciário, numa articulação uniformizadora de destacada relevância para a sociedade, porquanto desestimuladora do avanço de controvérsias judiciais em rota de confronto com a tese fixada.

A sistemática da repercussão geral, portanto, tem a aptidão de impactar positivamente na funcionalidade do Sistema de Justiça brasileiro, na medida em que propicia maior racionalidade e eficiência, tornando a engrenagem mais fluida e menos onerosa. Seus salutares efeitos, porém, vão além. Expandem-se para alcançar o litigante individual ou coletivamente considerado, assim como os múltiplos setores, produtivos ou não, envolvidos em conflitos judiciais que aguardam a equânime distribuição de Justiça.

Não por outra razão, aliás, um dos pressupostos para a submissão do recurso extraordinário à sistemática da repercussão geral reside na relevância social, política, econômica ou jurídica do tema para além da subjetividade consubstanciada no recurso paradigmático[5], cuja demonstração, inclusive, não se confunde com invocações desacompanhadas de sólidos fundamentos no sentido de ser o tema controvertido efetivamente portador de ampla repercussão[6].

Quando se estabiliza a correta interpretação constitucional, mediante a fixação de uma tese de repercussão geral, incrementa-se previsibilidade. Em decorrência, o jurisdicionado que aguarda a entrega da prestação jurisdicional, conhecedor do posicionamento adotado pela Corte Suprema sobre a mesma questão constitucional, antevê solução individualizada consentânea com as premissas fixadas. O princípio da proteção da confiança ganha maior solidez[7], enquanto a irresignação, ínsita ao estado de dissenso interpretativo, é apaziguada, potencializando o senso de justiça material. Afinal, a dimensão subjetiva do princípio da segurança jurídica implica precisamente a proteção da legítima confiança, materializada também quando o órgão mais elevado do Poder Judiciário revela sua compreensão sobre tema de natureza constitucional.

A previsibilidade, intrínseca à concepção de segurança jurídica, que, segundo Canotilho[8], proporciona aos cidadãos certeza e calculabilidade no que diz respeito às consequências e efeitos jurídicos dos atos normativos, também pode ser estendida à interpretação fixada à luz da sistemática da repercussão geral. Pelos mesmos fundamentos, pode-se afirmar que a definição da tese de repercussão geral propicia a calculabilidade interpretativa e, em decorrência, fomenta segurança jurídica.

Se, antes da sistemática da repercussão geral, à luz dos precedentes da Corte Suprema, era possível extrair a sua linha interpretativa a respeito de determinada questão constitucional, com o instituto da repercussão geral, uma vez fixada a tese, o posicionamento torna-se manifesto, estancando eventual hesitação hermenêutica. Nas contendas de índole constitucional, portanto, a partir da tese firmada, o Poder Judiciário proporciona maior segurança jurídica ao jurisdicionado, conferindo-lhe condições mais refinadas de calculabilidade interpretativa.

Nessa esteira, quando dos julgamentos de recursos extraordinários sob a sistemática da repercussão geral, a jurisprudência até então dominante na Corte ganha especial relevo. Muito embora seja a partir do julgamento do recurso representativo da controvérsia que a tese é definida, o histórico jurisprudencial do Colegiado merece ser valorado, porquanto rupturas interpretativas, a depender das circunstâncias, podem colocar em risco ou embaçar a percepção de segurança jurídica.

Esse aspecto não tem passado despercebido pelo Supremo Tribunal Federal. As situações de virada interpretativa normalmente são marcadas por elementos de caráter objetivo, como a inovação ocorrida no ordenamento jurídico — reveladora de descompasso entre a interpretação até então firmada e a contemporânea legislação de regência do tema — ou mesmo a presença no julgado de circunstâncias fáticas distintas daquelas que embasaram o entendimento firmado em precedentes[9]. Igualmente merecem destaque as hipóteses em que, ao estruturar a tese de repercussão geral, a Corte acaba por promover complementação ou integração interpretativa, sem desacreditar a construção jurisprudencial existente[10]. Em outros casos, a tese firmada em repercussão geral altera a jurisprudência anterior para alargar a base protetiva do cidadão[11].  Não obstante, uma vez mantido o cenário legislativo e as balizas sobre as quais se assentou a jurisprudência, a Corte tem reafirmado a solidez de seus precedentes, incrementando segurança jurídica[12].

Um julgamento sob a sistemática da repercussão geral não significa, dessa forma, a abertura sem limites de determinada discussão constitucional, desconectando-a do histórico jurisprudencial do Colegiado, numa perspectiva de descontinuidade interpretativa. Sem elementos objetivamente apresentados, a guinada jurisprudencial implicaria degradação da segurança jurídica e, por conseguinte, perda de riqueza, afinal, não há crescimento, inclusive nas vertentes social e econômica de um país, em ambiente permeado por incerteza ou indefinição.

Se a cada julgamento sob a sistemática da repercussão geral o Supremo Tribunal Federal se orientasse pela desconsideração, sem freios, da jurisprudência construída, restariam instituídas a insegurança jurídica e a instabilidade. Aliás, esvaziado estaria o próprio instituto da repercussão geral que exige, como antecedente necessário, a demonstração de aspectos que transcendam o caso concreto, no plano social, político, jurídico e econômico, eixos que, já na largada do julgamento, estariam comprometidos caso a jurisprudência pacificadora de tema constitucional, firmada ao longo dos anos, fosse ignorada, sem o respaldo em elementos objetivos devidamente apontados. A incerteza, própria de um reinício, comprometeria a segurança jurídica.

A compreensão de que a revisitação descomedida da jurisprudência significaria contrassenso com os propósitos perseguidos pelo instituto da repercussão geral não implica a defesa do engessamento interpretativo, mas, tão somente, a necessidade de moderação quanto à mudança de orientação jurisprudencial, de modo a não lançar mácula sobre os pilares de sustentação da segurança jurídica, promovendo verdadeiro estado de incerteza. Afinal, a jurisprudência não se apresenta como uma posição estanque do Tribunal, mas antes, como o resultado de um processo hermenêutico, alicerçado em princípios, comandos e conceitos constitucionais.

É certo que o dinamismo das relações jurídicas recomenda o avanço interpretativo, em especial em matéria constitucional – a própria tese de repercussão geral pode ser revisada. A mudança, contudo, merece vir acompanhada da indispensável robustez de fundamentação, bem como da inserção de mecanismos niveladores, a exemplo da modulação e das cláusulas de transição, cruciais à preservação da segurança jurídica[13].

A segurança jurídica mantém relação estreita e intrincada com o fator tempo. A estabilização de relações jurídicas marcadas por uma judicialização que não obteve o desfecho ao longo de período considerável acaba envolvendo vertentes expressivas, a exemplo das justas expectativas normativas e interpretativas do jurisdicionado e dos possíveis impactos provenientes da demora.

O ponto ganha contornos ainda mais significativos quando o paradigma de repercussão geral discute questão constitucional que envolve lei ou ato normativo vigente em passado relativamente remoto, cujos reflexos indenizatórios encontram-se pendentes de definição. Caso a jurisprudência tenha sido firmada no sentido da inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, com o reconhecimento do direito à reparação de índole patrimonial, por exemplo, eventual modificação do entendimento pode gerar desdobramentos na seara da segurança jurídica e consequências práticas importantes do ponto de vista da igualdade de tratamento, considerando o teor de decisões anteriormente proferidas em casos análogos. Em tais circunstâncias, inclusive, caso a lei ou o ato normativo declarado inconstitucional alcance determinado setor produtivo, a alteração interpretativa pode gerar situações de desestabilização da força concorrencial entre empresas que disputam o mesmo segmento de mercado, fragilizando, por conseguinte, a segurança jurídica.

Nesse cenário, uma virada jurisprudencial, sem amparo em sólidos elementos objetivos, poderia desencadear consequências nocivas aos núcleos de sustentação da segurança jurídica, à luz dos impactos econômicos, políticos, sociais e jurídicos dela oriundos, ao passo que a reafirmação da jurisprudência poderia tornar ainda mais proeminente o atributo estabilizante do instituto da repercussão geral, aspectos que têm merecido apropriado sopesamento pela Corte Suprema.

Em tais casos, a reflexão merece perpassar os quatro eixos supramencionados em períodos distintos da história, de modo a favorecer a entrega da mais eficiente e justa tutela constitucional. Ponderações atentas ao tempo dos fatos podem ser determinantes para a blindagem da segurança jurídica, sob o viés da isonomia, especialmente quando o julgado culmina com uma alteração interpretativa.

Quando esforços são concentrados no sentido de materializar a segurança jurídica, tornando-a aliada no processo de alavancagem social, econômica, jurídica e política do país, o instituto da repercussão geral pode se tornar um forte instrumento de cooperação, já que o enfrentamento da questão constitucional, objeto do recurso extraordinário paradigma, demanda o exame de seus impactos ou externalidades nas mesmas esferas, de modo a trazer a necessária uniformização de entendimento, inclusive prestando reverência, sempre que possível, ao histórico jurisprudencial da Corte. Nesse sentido, quanto mais bem estruturada for a tese de repercussão geral, desembaraçando imprecisões interpretativas a respeito do tema em suas múltiplas vertentes, mais eficiente será o seu alcance, em prol da sedimentação da segurança jurídica.

Trata-se, portanto, de instrumento a serviço da jurisdição constitucional capaz de aquietar incertezas, de estabilizar linhas interpretativas e de propiciar ao jurisdicionado a ampliação dos níveis de cognoscibilidade acerca da posição da Suprema Corte, bem como de previsibilidade e calculabilidade normativa e interpretativa, elementos estruturais da segurança jurídica enquanto postulado do Estado Democrático de Direito.

O trabalho interpretativo, a partir da fixação de teses de repercussão geral, ganha estatura pacificadora, revelando a virtude do instituto de viabilizar a interpretação de leis e atos normativos à luz da Constituição da República, sob o estandarte da segurança jurídica.

Grace Mendonça é advogada, ex Advogada-Geral da União, mestre em Direito Constitucional e pós-graduada em Direito Processual Civil.

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Opinião: A Resolução 318 do CNJ e o funcionamento do Judiciário

A Resolução 313/2020
No dia 19 de março deste ano, 8 dias após a declaração de pandemia da Covid-19, decretada pela OMS, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 313/2020, destinada a regular o funcionamento do Poder Judiciário e questões atinentes à prática de atos processuais neste período de profunda anormalidade, com prazo de vigência até o dia 30 de abril de 2020.

A atitude mostrou-se acertada. Se, por um lado, as necessidade de desmobilização física dos prédios da Justiça, escritórios de advocacia e demais estabelecimentos era premente, também o Poder Judiciário e o acesso à Justiça não poderiam parar, uma vez que é um serviço fundamental.

Naquele momento, já era claro que o Brasil sofreria os impactos da pandemia tanto quanto o vinham sofrendo países asiáticos e europeus.

Diante disso, diversos yribunais já iniciavam movimento de fechamento e de suspensão da prática de atos e de prazos processuais. Como tais movimentos, naturalmente, se dariam de maneira não-uniforme, o CNJ se dispôs a realizar justamente uma de suas funções — a de buscar uniformidade, tanto quanto possível e observando as peculiaridades locais, da administração da Justiça.

A Resolução 313/2020 determinou, de plano, a suspensão de todos os prazos processuais em território nacional, em todos os órgãos jurisdicionais (exceto no Supremo Tribunal Federal, o qual não se submete à “Jurisdição” o CNJ).

Além disso, a Resolução criou o interessante conceito de “Plantão Extraordinário”, consistente, em síntese, na continuidade do trabalho dos juízes e servidores em tempo integral, por meio de mecanismos de teletrabalho. Determinou, ainda, que os tribunais garantissem a realização de algumas atividades essenciais (por ela elencadas) bem como a apreciação de medidas urgentes.

Dessa forma, o CNJ afastou a possibilidade de que os Tribunais simplesmente fechassem as portas e adotassem o sistema de plantão tradicional, semelhante àquele praticados em horário noturno ou em dias não úteis.

Naturalmente, diante da vedação de qualquer atividade presencial, restaram igualmente suspensas todas as audiências e sessões de julgamento, que não fossem realizadas de maneira virtual.

A Resolução 314/2020
Se o período de suspensão total dos prazos mostrou-se indispensável num primeiro momento, com o tempo os advogados, juízes, servidores e demais atores do sistema de justiça passaram a se aperfeiçoar cada vez mais com o trabalho remoto e as demais limitações impostas pela circunstância de pandemia. Por outro lado, a suspensão de prazos, se prolongada, passa a causar um crescente represamento de ações e recursos nos tribunais.

Diante da aproximação do termo de vigência, o CNJ editou nova Resolução (314/2020), a qual prorrogou com modificações a Resolução 313 até o dia 15 de maio de 2020.

As modificações foram, em síntese, as seguintes: (i) a partir do dia 04.05.2020, voltariam a fluir os prazos dos processos eletrônicos (cerca de 80% dos processos no Brasil, hoje, correm de maneira eletrônica); (ii) os Tribunais deveriam retomar a realização de audiências e sessões de julgamento por meio de mecanismos de videoconferência, para os quais, inclusive, disponibilizou plataforma on-line gratuita para utilização de todos os órgãos jurisdicionais do país.

A Resolução 314/2020 contemplou, ainda, importantíssima exceção, sobretudo para os advogados: nos casos de ato processual essencial à ampla defesa e ao contraditório (tais como contestação e embargos à execução), bem como naqueles que demandem coleta prévia de provas, basta que o advogado peticione nos autos informando a impossibilidade da prática plena de tal ato, para o tal prazo fique novamente suspenso, sem necessitar de aguardar a decisão do juiz.

Dessa forma, por força da Resolução 314/2020, os prazos processuais dos processos eletrônicos voltaram a fluir do momento em que suspensos (dia 19 de março de 2020), devendo ser contados, a partir do dia 04 de Maio de 2020, os dias que faltavam para seu término (art. 221 do CPC e Art. 3o § 1o  da Resolução). Naturalmente, os prazos processuais deflagrados por intimações realizadas dentro do período de suspensão iniciariam seu cômputo no dia 04 de maio de 2020.

A Resolução 318/2020
Pois bem. Diante da mudança do cenário da pandemia no país, com o endurecimento de medidas de rigoroso afastamento social já decretadas em alguns estados na Federação (e a possibilidade de que isso ocorra em outros), o CNJ editou, no dia último dia 7, a Resolução 318/2020, mantendo o curso dos prazos que já vinham correndo desde o último dia 4, mas contemplando a nova realidade de lockdown que vem sendo observada em alguns locais do pais.

Em síntese, a mais nova Resolução, feita principalmente por conta do advento desse chamando lockdown em alguns Estados da Federação, determina: (i) a prorrogação da vigência das Resoluções 313 e 314 até o dia 31 de maio; (ii) a nova suspensão dos prazos nos processos eletrônicos caso autoridade estadual determine medidas restritivas à circulação de pessoas (o assim chamado “lockdown”), suspensão essa válida para os órgãos jurisdicionais abrangidos por aquela unidade da Federação); (iii) mesmo ausente a decretação formal de lockdown por parte de autoridade estatal (como as municipais, por exemplo), poderá o Tribunal requerer ao CNJ a suspensão dos prazos em âmbito estadual ou local, demonstrando que, ainda assim, há situação que impeça o “livre exercício de atividades forenses regulares”.

Por outro lado, a Resolução nada mudou quanto à determinação de que as audiências e sessões de julgamento sigam sendo realizadas por meio de videoconferência.

Repare-se que as três Resoluções seguem vigentes, formando um único conjunto normativo com vigência até o dia 31 de maio de 2020. Da interpretação sistemática desse conjunto normativo se extraem, fundamentalmente, as seguintes regras, vigentes na data em que escrito este artigo:

  1. Os prazos nos processos físicos seguem suspensos, desde o dia 19 de março até o dia 31 de maio;
  1. Como regra, os prazos nos processos eletrônicos (mais de 80% dos processos no país) seguem fluindo desde o dia 04 de maio, não sendo suspensos ou interrompidos por força da Resolução 318/2020; segue vigente, igualmente, a possibilidade de peticionar informando ao Juízo a impossibilidade de prática do ato, pela necessidade de coleta prévia de meios de prova;
  1. Enquanto exceção, não fluirão os prazos nos processos eletrônicos que tramitem em órgão jurisdicional de um estado da Federação que tenha decretado medidas restritivas à circulação de pessoas (“lockdown”), durante todo o período de vigência de tal determinação;
  1. As audiências e sessões de julgamento devem continuar sendo realizadas por meio de videoconferência, sempre que possível.
  2.  

Na medida em que a situação de fato vá se alterando, é natural que exsurjam outros atos, editados pelo CNJ ou pelos Tribunais, para adaptar as normas à realidade, que muda a cada dia. Mas certamente essa é a hora de, mais do que nunca, todos os atores processuais atuarem na mais estrita cooperação e compreensão mútua, com empatia e solidariedade, entre juízes, advogados, membros do MP, defensores públicos, e todos os integrantes do sistema de Justiça, para que possamos superar juntos esse período de impensável anormalidade em que vivemos.

 é conselheiro do CNJ e membro do gabinete de crise instituído pela Portaria 53/2020. Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

Guilherme Peres de Oliveira é advogado e professor. Mestre e Doutor em Direito Processual Civil pela PUC-SP.

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Tórtima, Bottini e Warde: Quando o Estado bloqueia tudo

São dispensáveis maiores digressões sobre as dificuldades que já são experimentadas — e serão ainda mais — pelas sociedades empresárias, no Brasil e no resto do mundo, notadamente nos países em que as consequências da pandemia se fizeram sentir mais gravemente. Pouquíssimas empresas mantém o mesmo nível de receitas, muitas já demitem em massa e deixam de cumprir suas obrigações. E isso produz um enorme efeito cascata que antecipa um longo período de recessão e, depois dela, esforços coordenados para reconstruir as economias.

Nesse contexto, o mínimo que se pode esperar, para além de medidas de socorro a serem apresentadas pelo Poder Público, é um maior cuidado, por parte dos órgãos responsáveis pela persecução penal, com as consequências econômicas de suas ações. As medidas cautelares constritivas patrimoniais em desfavor de pessoas jurídicas, ainda que, por meio delas, seus executivos e funcionários tenham praticado crimes, demandam especial atenção.

Não é de hoje que se alerta para o fato de que, em matéria de crimes que envolvem empresas, o poder punitivo estatal deve ser implementado de forma a comprometer na menor medida possível a sua atividade econômica. É necessária uma ponderação entre, de um lado, o interesse da persecução penal e da rigorosa administração da Justiça e, de outro, o da sobrevivência da sociedade empresarial.

Destruir empresas é ceifar postos de trabalho, esmaecer o consumo e a arrecadação de impostos, desperdiçar o conteúdo nacional, diminuir a competitividade do país e, no fim do dia, inviabilizar o seu desenvolvimento.

Nesse contexto, importante que se faça uma análise das medidas constritivas de patrimônio de empresas no processo penal: o sequestro e o arresto. Na primeira, são bloqueados bens de possível origem criminosa. Na segunda, a medida recai sobre patrimônio licito para assegurar futura reparação de danos em caso de condenação.

No primeiro caso, a legitimidade da medida é indiscutível. A empresa que recebeu bens ou valores de origem ilícita pode ser alvo de medidas constritivas patrimoniais, ainda que o autor do respectivo crime não seja seu funcionário ou executivo, desde que os ativos ilícitos tenham passado a compor seu patrimônio, e isso independentemente da prática de atos de lavagem de capitais.

Já no arresto alguma cautela é necessária.

Um dos autores deste artigo, em outra oportunidade, (1), já alertava para a impossibilidade de decretação de medida de arresto em desfavor de pessoas jurídicas, ainda que em casos de acusação dos respectivos executivos ou funcionários por prática de lavagem de dinheiro. Como exposto, o arresto destina-se a garantir a reparação do dano, o pagamento de multas e as despesas processuais em caso de condenação. Bem por isso, apenas pessoas físicas podem ter bens arrestados, pois somente elas podem ser condenadas criminalmente (2).

Antes de adentrar a análise do tema principal desse artigo, voltado para as medidas cautelares penais contra o patrimônio de pessoas jurídicas, faremos breve digressão a respeito de cautelares da mesma natureza decretadas em desfavor de pessoas físicas. É que, considerando-se a necessidade urgente de aquecimento da economia, ou seja, de circulação de capitais, diante da brutal recessão que se avizinha, talvez a maior desde a grande depressão de 1929, é preciso cuidado com implementação de tais medidas, mesmo em relação a pessoas físicas.

No cenário atual, não raro, sequer se pode identificar em cautelares patrimoniais a exata natureza da medida, ou seja, não se sabe ao certo quando se trata de medida de sequestro (de ativos ilícitos) ou de arresto (de ativos a serem usados futuramente para eventual ressarcimento de prejuízos).

São comuns figuras híbridas de bloqueio de ativos, que acabam por tornar indisponíveis todo o patrimônio do acusado — presente e futuro —, sem que se saiba exatamente quais bens e valores foram sequestrados e quais foram arrestados.

Essa diferenciação se torna tanto mais necessária quando se trata de cautelar decretada em caso de imputação de crime de lavagem de capitais, situação em que, por expressa determinação legal, inverte-se o ônus da prova, devendo o acusado, que pretenda ter seus ativos disponibilizados, provar a origem lícita dos bens, em caso de decretação de sequestro.

Caso se trate de constrição cautelar com natureza de arresto — e, repita-se, a natureza da medida deve estar definida na decisão — é preciso, antes de tudo, dimensionar, com base em dados fáticos, o prejuízo causado, para que se tenham os parâmetros correspondentes para a medida.

Apenas um exemplo: em casos de crime de corrupção, há decisões cautelares, visando futura reparação de danos, que tomam como parâmetro o valor da propina paga a determinado funcionário público, o que, por óbvio, nada tem a ver com prejuízo eventualmente causado ao erário. Aliás, pode-se dizer que, na verdade, nem sempre há prejuízo diretamente aferível e a ser ressarcido em caso de condenação por crime de corrupção, circunstância que parece ser diuturnamente desconsiderada.

Nas fraudes em licitações, é frequente a determinação de arresto de ativos de acusados, como base no valor recebido pela empresa de que são sócios, em contraprestação a serviços prestados no âmbito de determinado contrato, até mesmo quando não há indicação de superfaturamento. Ora, considerando terem sido prestados serviços, é possível afirmar que todo o valor contratado e recebido pela empresa em questão consiste em prejuízo a ser ressarcido? Parece claro que não.

Portanto, mesmo no que diz com pessoas físicas, em se tratando de indisponibilidade cautelar de bens, não se pode prescindir de critérios e parâmetros muito bem determinados, mormente, como se disse, em tempos de depressão econômica.

Retomemos agora o tema inicialmente proposto, qual seja, o das medidas cautelares penais contra o patrimônio de pessoas jurídicas.

No que se refere ao sequestro, embora a medida seja legítima, alguns cuidados devem ser tomados para que a cautelar não inviabilize o funcionamento da empresa antes de um juízo definitivo acerca da origem ilícita dos bens. Empresas em graves dificuldades econômicas deixam de pagar impostos, funcionários e credores. Exatamente por isso, é preciso ter cautela, ainda quando se trate de sequestro de ativos de origem supostamente ilícita.

Em artigo sobre a persecução penal contra sociedades empresárias, especialmente sobre o caso Arthur Andersen (3), a Professora Patrícia H. Bucy, da Universidade do Alabama, informou que a experiência no referido caso tornou os membros do Ministério Público americano mais cautelosos quando o alvo é uma corporação (4). Em seguida, explicou a Professora que além da preocupação no sentido de que persecuções penais agressivas podem destruir negócios viáveis, os órgãos de acusação querem que as corporações exponham atos ilícitos eventualmente ocorridos (5).

Em outras palavras: não fosse o comedimento na aplicação do direito penal e respectivas medidas cautelares,  recomendável para preservar empresas, também o seria como incentivo a que atos ilícitos praticados isoladamente por seus executivos ou funcionários sejam denunciados por seus departamentos de conformidade às instâncias adequadas, interna e externamente. Parece bastante claro ser um desincentivo ao correto funcionamento dos sistemas de compliance a possibilidade de que o disclosure acerca de ilicitudes praticadas no âmbito da sociedade findem por destruí-la.

Isso não quer dizer, por óbvio, que não se possa decretar sequestro sobre ativos ilícitos que tenham passado a compor o patrimônio de determinadas sociedades, mas sim que tais medidas devem ser empreendidas com alguma cautela, olhos postos no atual cenário de devastação econômica, em evidente processo de agravamento.

É preciso, em primeiro lugar, tratar o ativo circulante de empresas — necessário ao pagamento de funcionários e credores — de forma responsável.

De saída, a fungibilidade de valores depositados em conta corrente já dificulta a indicação de que tenham eles origem ilícita, salvo em casos específicos, em que se venha a determinar a indisponibilidade de depósitos que tenham sido feitos como exata contrapartida a atos ilícitos praticados. É evidente que estamos falando aqui de sociedades empresárias com real atividade operacional e não de empresas de fachada constituídas com o propósito de viabilizar o recebimento de valores de origem espúria.

Quanto ao ativo não circulante, a exemplo do imobilizado, é preciso que a decisão de sequestro traga fundadas suspeitas acerca do caminho do dinheiro percorrido, desde a realização do suposto ato ilícito até a aquisição do bem alvo da medida cautelar de sequestro.

Por fim, feitas já tantas considerações visando limitar, o quanto possível, o uso de medidas cautelares patrimoniais, notadamente em desfavor de pessoas jurídicas, cabe ainda tratar de eventuais alternativas de lege ferenda para garantir a manutenção das atividades econômicas de empresas contra as quais medidas cautelares patrimoniais sejam justificadas, a não ser nos casos em que a empresa é mera fachada, sem atividade alguma para além da prática criminosa.

Nesse sentido, é possível pensar na elaboração de mecanismos para preservar minimamente a liquidez de empresas, mesmo se e quando necessária a constrição cautelar de seus ativos.

A exemplo do que se fez em relação a medidas cautelares pessoais, criando-se alternativas às prisões preventivas, é possível pensar em opções para mitigar os efeitos nefastos das medidas cautelares patrimoniais contra pessoas jurídicas.

Nesse sentido, pode-se indicar,  a título de exemplo, a obrigatoriedade de contratação de auditorias externas e monitorias para fiscalizar medidas de proibição de distribuição de dividendos ou de saídas de caixa para fins não operacionais, depósito paulatino e viável — de acordo com o ability to pay a ser aferido por auditoria externa — de valores a serem futuramente perdidos, e ainda a prestação de garantias judiciais sob a forma de fiança bancária ou seguro-garantia, todas medidas a serem cumpridas em substituição ao sequestro dos ativos, principalmente daqueles destinados ao cumprimento de obrigações que digam respeito à sobrevivência da sociedade.

Em breve síntese, o que se pretende é demonstrar ser possível construir um direito penal — e, nesse caso, processual penal — que siga ao propósito último de servir à sociedade, não apenas para punir os responsáveis por violações intoleráveis às normas jurídicas, mas também para garantir que apenas esses, e não terceiros absolutamente alheios a essas infrações, venham a sofrer as graves consequências jurídicas, de natureza pessoal e patrimonial, próprias desse ramo do direito.

(1) Em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-05/direito-defesa-bloqueio-bens-empresas-crimes-lavagem-dinheiro.

(2) Como se sabe, pelo direito brasileiro, apenas em casos de crimes ambientais, pessoas jurídicas podem figurar como acusadas em ações penais.

(3) A Arthur Andersen, uma das maiores empresas de auditoria do mundo, foi acusada e condenada por obstrução de justiça por ter supostamente destruído documentos de sua então cliente, Enron. Dois anos depois a condenação foi revista pela Suprema Corte americana.

(4) No sistema jurídico americano, pessoas jurídicas podem ser acusadas e condenadas criminalmente, sem as restrições do direito brasileiro. De qualquer forma, ainda que o texto trate de persecução penal, e não apenas de medidas cautelares, contra empresas, o alerta é plenamente aplicável para o que se pretende expor aqui.

(5) Disponível, mediante, assinatura, em:  https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/amcrimlr44&div=44&id=&page= (página 1287).

Fernanda Lara Tórtima é advogada criminalista, sócia do Tórtima Tavares Borges Advogados Associados.

 é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

 é advogado, presidente do IREE — Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa, é autor do bestseller “O Espetáculo da Corrupção”.

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Erro na licença ambiental não exime de reparar lesão, diz STJ

Erro na autorização ambiental para atividade comercial não é suficiente para afastar a responsabilidade de quem, no ato da atividade, comete dano ao meio ambiente. Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a condenação de uma empresa ao pagamento de R$ 300 mil a título de indenização.

Crime ambiental foi cometido para construção de posto de gasolina 
Reprodução

No caso, a empresa desmatou área de Mata Atlântica para construção de um posto de gasolina. E contava com licença ambiental para tanto, emitida pelo Ibama e Instituto Ambiental do Paraná. A sentença, no entanto, constatou que a concessão foi ilegal e, por isso, condenou a empresa — entendimento que foi mantido em segundo grau.

Em recurso especial, a empresa alegou que foi vítima do erro na concessão das licenças e que a condenação deveria ser, no máximo, solidária com os órgãos de licenciamento ambiental. 

Ao analisar o caso, a ministra Nancy Andrighi refutou a tese porque o dano ambiental é regido pela teoria do risco integral, segundo o qual o dever de indenizar se faz presente unicamente em face do dano, não importando se há ou não nexo causal entre a conduta e o dano. Trata-se do princípio do poluidor-pagador: é dele o dever de arcar com as despesas de prevenção, repressão e reparação da poluição.

“Mesmo que se considere que a instalação do posto de combustíveis somente tenha ocorrido em razão de erro na concessão da licença ambiental, é o exercício dessa atividade, de responsabilidade da recorrente, que gera o risco concretizado no dano ambiental, razão pela qual não há possibilidade de eximir-se da obrigação de reparar a lesão ambiental verificada”, concluiu a relatora, seguida por unanimidade.

Competência

O caso é uma ação civil pública proposta em 2000 e que circulou pelo STJ até chegar à 3ª Turma, para finalmente defini-la. Foi distribuído, a princípio, à 4ª Turma, que declinou da competência por ser licença ambiental matéria de Direito Público.

Na 1ª Seção, sem abrir conflito de competência, o caso foi devolvido porque havia decisão monocrática anterior do ministro Sidnei Beneti, à época julgando nas turmas de Direito Privado. Isso teria fixado a competência.

O julgamento foi concluído pela 3ª Turma em 28/4, em sessão por videoconferência na qual o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva trouxe voto-vista. “A rigor, deveríamos declinar da competência e devolver para a 1ª Seção. Mas é uma ação que tramita há 20 anos e, por isso mesmo, a ministra Nancy decidiu por bem, de uma vez por todas, julgar”, afirmou.

A relatora concordou, ressaltando que o processo já esteve na 1ª Seção e não foi aceito pelos colegas. “É uma questão que pode ser superada, considerando que é uma zona cinzenta e muito tênue que diferencia essa competência”, acrescentou.

“O fato é que o fundamento principal do recurso é a licitude ou não da licença ambiental”, ressaltou o ministro Marco Aurélio Bellizze. Assim, entende, ainda que a demora do caso seja prejudicial, deveria retornar aos colegiados que julgam Direito Público. “Se fosse traçar esse paralelo, toda ação que durasse 10, 15 anos teria o mesmo destino. Seria aproveitar a decisão, mesmo que estampando uma nulidade, um vício de competência”, explicou.

Presidente do colegiado, o ministro Moura Ribeiro deu fim à discussão ao concordar com a relatora em referência à “zona cinzenta” entre as competências das duas Seções. “É hora de pôr fim ao processo.” Todos aquiesceram. 

Clique aqui para ler o acórdão

REsp 1.612.887

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Trâmite de atualização da bula não exime laboratório de culpa

Embora a bula seja o mais importante documento sanitário de veiculação de informações sobre um medicamento, não se pode aproveitar da tramitação administrativa de pedido de atualização junto à Anvisa para se eximir do dever de informar o público sobre os riscos inerentes do uso.

Por remedio, autora adquiriu compulsão por jogo e frequentava bingos 
Reprodução

Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça manteve a responsabilização de um laboratório por conta de efeitos colaterais que causaram a uma consumidora a compulsão por jogo.

A paciente tomou a medicação para Mal de Parkinson, após aumento da dose, dilapidou o patrimônio pessoal de forma considerável ao participar compulsivamente de bingos por três anos.

O laboratório alegou que não houve falta de informação, pois seguiu as normas da Anvisa e inicialmente já incluiu na bula o aviso: “este produto é novo medicamento e, embora pesquisas realizadas tenham mostrado eficácia e segurança quando devidamente indicado, podem ocorrer reações adversas imprevisíveis ainda não descritas ou conhecidas. Em caso de suspeita de reação adversa, o médico deve ser notificado”.

Segundo a relatora, ministra Nancy Andrighi, o fato de uso de medicamento causar efeitos colaterais por si só não configura defeito do produto se usuário for previa e devidamente informado e advertido sobre tais riscos. Assim, pode inclusive decidir de forma livre e consciente sobre o tratamento que lhe é prescrito, além minimizar eventuais danos que já sabe que terá.

Não foi o que ocorreu no caso, no entanto. A ministra afirma que é fato incontroverso que jogo compulsivo — uma doença inclusive reconhecida pela Organização Mundial da Sáude — foi reconhecido como efeito colateral da medicação. Quando a paciente passou a fazer uso do produto, isso não constava na bula. Embora agora conste, isso não afasta a responsabilização do laboratório.

Comprovação dos danos e liquidez

Em recurso especial, o laboratório contestava a comprovação do valor dos danos, segundo cálculo aritmético simples — o montante dilapidado do patrimônio da paciente com a compulsão chegaria a R$ 1,1 milhão. Por outro lado, a autora da ação tentava comprovar lucros cessantes: o valor que ela deixou de ganhar por conta dos efeitos que essa compulsão causou.

A 3ª Turma aplicou a Súmula 7 e, por não poder analisar provas, manteve a decisão. Por outro lado, afastou a culpa concorrente da autora determinada pelo tribunal de origem. Considerou-se, a princípio, que o aumento da dose do medicamento e seu uso combinado com outro remédio piorou o quadro clínico. E para isso, a autora também teria parcela de culpa.

“Em nenhum momento é imputado à paciente o comportamento de ingerir dosagem superior à recomendada pelo laboratório ou prescrita pela médica. Não se sustenta o fundamento do acórdão para reconhecer culpa concorrente da paciente, no sentido de que a hipossuficiente técnica para valiar alteração medicamentosa não afasta o dever de cuidado com a própria saúde e consultar especialista médico”, apontou a ministra Nancy Andrighi. 

REsp 1.774.372