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O artigo 19-E da Lei 10.522 e sua retroatividade

No nosso artigo desta semana, seguiremos endereçando nossas reflexões à aplicação do novel art. 19-E, da Lei nº 10.522/02[1], sempre com o escopo de fomentar o debate científico acerca do tema, em função de sua grande relevância para os processos em julgamentos ou já julgados no âmbito do Carf.

Hoje, trataremos de outra questão controvertida: a possibilidade de aplicação do artigo 19-E aos processos administrativos já encerrados, sob o rito do Decreto nº 70.235/72[2], pelo voto de qualidade, mas cujas multas seguem sendo executadas cobradas judicialmente. Em suma: a possibilidade de sua aplicação retroativa.

No panorama atual de debate, alguns têm defendido que a regra veiculada pelo art. 19-E teria natureza de norma de direito material, em razão da invocação do art. 112 do CTN em sua “exposição de motivos”. Logo, o novo dispositivo seria apenas interpretativo do art. 112 do CTN, retroagindo, portanto, em razão do prescrito no art. 106, I, do mesmo Código[3] – posição com a qual não concordamos, tendo em vista que o referido artigo “interpretado” nada tem a ver com os critérios de resolução de empates nos julgamentos administrativos. Esse entendimento, entretanto, não contraria o argumento, defendido por muitos, de uma eficácia direta do art. 112 sobre a aplicação de sanções em casos nos quais houve dúvida subjetiva do Colegiado[4], mas apenas sustenta a inaplicabilidade do art. 106, I, do CTN.

Outro desdobramento da premissa de se tratar de uma norma de direito material, foi a proposta de sua aplicação exclusivamente para sanções mantidas por voto de qualidade, com fundamento no art. 106, II, “a” ou “c”, do CTN[5]. Essa posição tampouco nos parece prosperar, pela literal inaplicabilidade das alíneas em questão, em face dos tipos infracionais restarem inalterados após a inserção do artigo 19-E na Lei nº 10.522/02 — não há abolitio total ou parcial de qualquer regra sancionatória, muito menos o abrandamento de suas consequências normativas.

A nossa divergência, no fundo, remete à própria premissa assumida: não vislumbramos a possibilidade de adjudicarmos a uma regra que diz respeito ao resultado de julgamentos de processos administrativos federais uma estrita natureza de direito material. Ora, a regra do artigo 25, §9, do Decreto nº 70.325/72 era de regra de direito processual, e a norma que a revogou parcialmente também tem igual natureza.

As regras de direito processual, como é sabido por todos, têm a particularidade de aplicadas sempre prospectivamente (tempus regit actum), é dizer, sem retroagir sobre casos julgados no passado, conforme se verifica no artigo 14 da Lei nº 13.105/2015 (CPC) e artigo 2º do Decreto-lei nº 3.689/1941 (CPP), verbis:

Art. 14. A norma processual não retroagirá e será aplicável imediatamente aos processos em curso, respeitados os atos processuais praticados e as situações jurídicas consolidadas sob a vigência da norma revogada.

Art. 2º A lei processual penal aplicar-se-á desde logo, sem prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei anterior.

Por outro lado, é preciso também ponderar que o processo administrativo regido pelo Decreto nº 70.235/72 não se restringe à determinação e exigência de tributos, mas também é instrumento para a aplicação de sanções, tanto de natureza tributária[6] (multas de ofício ou isoladas), como também de não-tributárias (a exemplo da multa decorrente da conversão de pena de perdimento, nos casos de interposição fraudulenta na importação). O fato de eventualmente envolver a cobrança de tributos não desnatura a possibilidade de também se pôr juridicamente como um processo administrativo sancionatório.

Nesse sentido, a regra inserida pelo art. 19-E da Lei nº 10.522/02 tem uma natureza bifronte, na medida em que, ao mesmo tempo, veicula i) uma regra processual, pondo fim a um julgamento colegiado na hipótese da votação terminar empatada, de modo que o processo possa seguir seu curso procedimental lógico, e ii) também estabelece a diretriz quanto ao cumprimento (exequibilidade) ou não de uma sanção.

Assim, parece-nos que ela guarda similitude com um tipo de regra processual amplamente reconhecida e estudada na doutrina e jurisprudência processual penal, quais sejam, as normas processuais mistas ou híbridas.

Há divergências doutrinárias sobre o alcance dessa categoria de regras, o que desemboca em uma corrente mais i) restritiva e outra mais ii) ampliativa. O ponto em comum entre ambas, todavia, é a mesma premissa de que é possível encontrar no ordenamento jurídico normas que, simultaneamente, encerrem comandos de natureza processual-penal e de natureza penal-substancial[7][8].

Segundo a corrente mais restritiva, normas processuais mistas ou híbridas são aquelas que, de alguma forma, digam respeito à pretensão punitiva ou, como prefere Eduardo Espínola Filho, apresentem conteúdo de direito substancial, i.e., atribuam, virtualmente, ao Estado ou a particulares o poder de disposição do conteúdo material do processo, isto é, da pretensão punitiva, ou da pena[9].

Por sua vez, na corrente ampliativa, as normas aqui estudadas seriam aquelas que, ultima ratio, digam respeito ao substantive due process. Daí Gustavo Badaró afirmar que para tal corrente doutrinária seriam normas híbridas aquelas que estabelecem condições de procedibilidade, constituição e competência dos tribunais, meio de prova e eficácia probatória, graus de recurso, liberdade condicional, prisão preventiva, fiança, modalidade de execução da pena e todas as demais normas que tenham por conteúdo matéria que seja direito ou garantia constitucional do cidadão[10].

Contrapondo as duas correntes doutrinárias, e mesmo adotando a linha mais restritiva de caracterização, é possível concluir que normas processuais que tratem da pretensão punitiva apresentam típico caráter de regra de direito material e, portanto, estariam sujeitas também ao regime jurídico de normas dessa natureza, incluindo aí a possibilidade de aplicação retroativa, apenas nas hipóteses em que beneficie o réu ou acusado. Esse é o entendimento dos nossos Tribunais Superiores:

1. RECURSO. Extraordinário. Pedido. Inconstitucionalidade do art. 411 do Código de Processo Penal. Dispositivo revogado pela Lei n° 11.689/2008. Perda superveniente do interesse recursal. Recurso prejudicado. O pedido da recorrente está prejudicado ante a revogação do art. 411, do Código de Processo Penal, pela Lei n° 11.689/2008, que introduziu, no art. 415, novas regras para a absolvição sumária nos processos da competência do Tribunal do Júri. 2. AÇÃO PENAL. Tribunal do Júri. Absolvição sumária imprópria. Revogação do art. 411, do Código de Processo Penal, pela Lei n° 11.689/2008. Retroatividade da lei mais benéfica. Concessão de habeas corpus de ofício. As novas regras, mais benignas, aplicam-se retroativamente. Ordem concedida para que o juízo de 1º grau examine, à luz da nova redação, se estão presentes os requisitos para a absolvição sumária, oportunizada prévia manifestação da defesa. (RE n. 602.561/SP – São Paulo. Recurso Extraordinário. Relator: Min. CEZAR PELUSO. Julgamento: 27/10/2009 Órgão Julgador: Segunda Turma).

AGRAVO REGIMENTAL. RECURSO ESPECIAL. PENAL E PROCESSUAL PENAL. LESÃO CORPORAL LEVE E GRAVE. REPARAÇÃO PELOS DANOS CAUSADOS À VÍTIMA PREVISTA NO ART. 387, INCISO IV, DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL. NORMA DE DIREITO PROCESSUAL E MATERIAL. IRRETROATIVIDADE. AGRAVO REGIMENTAL DESPROVIDO. 1. A regra do art. 387, inciso IV, do Código de Processo Penal, que dispõe sobre a fixação, na sentença condenatória, de valor mínimo para reparação civil dos danos causados ao ofendido, é norma híbrida, de direito processual e material, razão pela que não se aplica a delitos praticados antes da entrada em vigor da Lei n.º 11.719/2008, que deu nova redação ao dispositivo. Precedentes da Quinta Turma. 2. Agravo regimental desprovido. (AgRg no REsp 1254742/RS, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 22/10/2013, DJe 05/11/2013)

PENAL. PROCESSUAL PENAL. RECURSO ESPECIAL. RÉU REVEL. SUSPENSÃO DO PROCESSO E DO LAPSO PRESCRICIONAL. CRIME COMETIDO ANTES DA LEI 9.271/96. INAPLICABILIDADE. Reiterada jurisprudência desta Corte no sentido de que as disposições do art. 366 do CPP, com a sua nova redação dada pela Lei 9.271/96, sendo norma de natureza híbrida, processual (suspensão do processo) e material (suspensão da prescrição), não podem ser cindidas, sendo inaplicável por inteiro o citado dispositivo legal às infrações cometidas antes da vigência da Lei 9.271/96. Precedentes. Recurso conhecido e provido. (REsp 280.656/RJ, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 13/03/2001, DJ 04/06/2001, p. 227)[11]

Ao se analisar os casos julgados pelo Carf e, portanto, sujeitos à regra do art. 19-E da Lei nº 10.522/02, é possível observar que há a apreciação da imposição de sanções (de natureza tributária ou não), como dito anteriormente, e, ao assim fazer, o Tribunal define a exequibilidade da pretensão punitiva daí decorrente. Em outras palavras, a sua decisão definitiva é condição objetiva de punibilidade dos agentes autuados. Sem tal manifestação judicativa, não é possível cobra a pena (multa) imposta pelo Estado.

Esse entendimento, ressalte-se, encontra amparo na jurisprudência do STF, em especial nos precedentes que orientaram a Súmula Vinculante nº 24[12]. Nesse sentido, por exemplo, o voto do Ministro Gilmar Mendes, no HC nº 102.477, pontua que o “a decisão definitiva do processo administrativo consubstancia condição objetiva de punibilidade”, ou o HC 81.611, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence, que aduz que “se considere o lançamento definitivo uma condição objetiva de punibilidade”.

Ora, não se nega que os precedentes em questão foram julgados para analisar a procedibilidade de denúncias de crimes contra a ordem tributária, mas seus fundamentos descortinam a natureza jurídica da decisão definitiva dos processos administrativos. Se a decisão final em processo tributário é condição para a aplicação das sanções penais decorrentes dos crimes capitulados no art. 1º da Lei nº 8.137/90[13], é inegável que as sanções de natureza administrativa (tributárias ou não), constituídas por meio de ato administrativo, só poderão ser exigidas após a decisão definitiva no processo administrativo sancionatório, razão pela qual ela se põe como condição objetiva da punibilidade do agente.

Em suma, ao mesmo tempo que o art. 19-E da Lei nº 10.522/02 veicula uma norma de direito processual, ele também encerra, nos casos em que há exigências de caráter sancionatório (multas), natureza processual híbrida, na medida em que condiciona a exequibilidade da pretensão punitiva do Estado. Ainda que a incidência normativa se dê com o ato administrativo que imputou a sanção, a sua exequibilidade, em havendo contestação, fica condicionada ao conteúdo da decisão definitiva no processo administrativo.

Portanto, em se tratando de norma dessa natureza, entendemos que ela deverá retroagir para abranger  apenas as exigências de caráter sancionatório, tributárias ou não, cobradas conjunta ou separadamente de tributos, que foram mantidas, no âmbito do Carf, por meio de decisão final proferida pelo voto de qualidade, e que prosseguem sendo cobradas judicialmente, na esteira de diversos precedentes dos tribunais superiores, e por força da retroatividade benigna do art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988[14], excepcionadora do caráter prospectivo da eficácia de normas processuais deste jaez. Não obstante, ante tudo o que fora aqui afirmado, não nos parece que tal retroatividade não se aplicaria para a cobrança de crédito tributário decorrente de tributos, mesmo que tenha sido mantido por meio do voto de qualidade.

Por fim, em uma abordagem próxima, ainda que não coincidente àquela perfilhada aqui, defendendo  os reflexos do art. 19-E da Lei nº 10.522/02 no âmbito dos processos penais de crimes contra a ordem tributária, remetemos ao artigo de Fernando Hideo I. Lacerda, no qual defendeu a retroatividade da regra, afirmando que com o fim do voto de qualidade, operou-se abolitio criminis referente a todas as condutas que à época foram julgadas ilícitas pelo Carf e, segundo os critérios da lei atual, passaram a ser resolvidos favoravelmente ao contribuinte[15].

 é sócio do Daniel & Diniz Advocacia Tributária, doutor em Direito Tributário pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Direito Tributário pela PUC-SP, ex-conselheiro titular da 1ª e 3ª Seções do Carf, e professor em cursos de pós-graduação.”

 é advogado tributarista, sócio do Daniel & Diniz Advocacia e Consultoria Tributária, ex-conselheiro titular do Carf na 3ª Seção de Julgamento, professor de Direito Tributário, Processo Tributário e Processo Civil. Doutorando em Processo Civil pela USP e Mestre em Direito Tributário pela PUC-SP e pós-graduado em Direito Tributário pelo Ibet.

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Responsabilização jurídica por uso de cloroquina não é consenso

O julgamento pelo Supremo Tribunal Federal de ações diretas de inconstitucionalidade — que questionaram a Medida Provisória 966, que restringiu a responsabilização dos agentes públicos durante a epidemia de Covid-19 — sedimentou o entendimento de que ignorar diretrizes científicas constitui erro grosseiro, o que abre a possibilidade para questionamento judicial e posterior condenação.

Uso da cloroquina no tratamento da Covid-19 é controverso no aspecto jurídico
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Apesar da clareza do enunciado jurídico, as dificuldades próprias da produção do saber científico podem ser um entrave à sua aplicação, especialmente no que diz respeito ao coronavírus.

O principal exemplo é o uso da cloroquina. O medicamento, originalmente usado no combate de doenças como malária e lúpus, foi amplamente defendido por políticos, como o presidente Jair Bolsonaro e o mandatário norte-americano Donald Trump, como eficaz no tratamento da Covid-19. 

Apesar do entusiasmo de agentes políticos, o periódico científico The Lancet publicou divulgou estudo que acompanhou 100 mil pacientes em todo o mundo e que apontou não apenas a ineficácia da cloroquina para combater a Covid-19, mas também o risco de ataque cardíaco nos pacientes, com aumento da mortalidade.

Em 25 de maio, a Organização Mundial de Saúde decidiu suspender os testes com o remédio até que sua segurança seja verificada em detalhes. Apesar das informações recentes, o SUS manteve o próprio protocolo, que recomenda a utilização do remédio para pacientes com Covid.

Assim, o médico que receitar cloroquina seguindo o protocolo do SUS estará respaldado juridicamente. O entendimento é do advogado e é presidente da Sociedade Brasileira de Direito Médico e Bioética (Anadem), Raul Canal.

Em entrevista à ConJur, Canal explica que a recomendação da OMS não é vinculativa e que a principal autoridade médica no país é o Ministério da Saúde. “Desde que o médico siga o protocolo do Ministério da Saúde e o paciente tenha concordado com o uso da cloroquina, ele [o médico] pode até ser processado, mas está legalmente amparado.”

Segundo ele, a “imunidade” vale inclusive para os autores do protocolo do SUS que recomendou o uso da cloroquina, porque o documento foi baseado nas informações científicas disponíveis no momento.

Canal explica que ainda não existe consenso médico em relação ao tratamento da Covid-19 e que o debate não pode ser contaminado pela discussão política. “No voto da ministra Carmén Lúcia, ela disse que não se pode proteger os servidores 100% ao ponto de permitir que eles possam cometer aberrações, mas também não se pode engessá-los. Se o médico sabe que o paciente é cardiopata e tem problemas nos rins e mesmo assim receitou cloroquina, pode ser responsabilizado”, comenta.

O constitucionalista Eduardo Mendonça também entende que não se poderia responsabilizar o médico com base no entendimento do STF da MP 966 se ele, médico, seguir o protocolo do SUS e informar os riscos do tratamento ao paciente.

“Do ponto de vista jurídico, a premissa é a de que constitui culpa grave o que contrarie os protocolos médicos reconhecidos pelas entidades médicas reconhecidas. Se houver discordância entre essas opiniões técnicas, não acho possível responsabilizar o administrador que segue uma delas. Mas a opção por seguir apenas a própria intuição é temerária e pode gerar responsabilização”, argumenta.

Contraponto

O jurista e colunista da ConJur, Lenio Streck, por sua vez, tem um entendimento diferente. “Erro grosseiro na medicina ocorre de dois modos: por erro na condução do procedimento ou por ministrar tratamento (medicação) sobre a qual não há comprovação científica. Assim, quem ministrar cloroquina poderá cometer erro grosseiro, sim. Veja: não é que não haja consenso sobre a eficácia. É que as pesquisas mostram que é mais perigoso usar do que não usar. Logo, o médico assume o risco de ser processado se o paciente morrer e ficar comprovado que o foi por causa da cloroquina”, explica.

Entendimento parecido tem advogado constitucionalista Paulo Peixoto. “Como não há consenso entre os cientistas, tampouco há estudos que atestem uma alta probabilidade de cura ou atenuação dos efeitos do vírus, possível dizer que não há critérios técnicos e científicos que deem respaldo à aplicação do medicamento no combate à Covid-19. Assim, o Estado pode ser responsabilizado objetivamente pela morte ou pelas sequelas dos pacientes, cabendo contra o médico eventual ação regressiva”, argumenta.

A visão é endossada, ainda, por Luís Inácio Adams, ex-AGU, em artigo publicado na ConJur. “Aparentemente, o elemento catalisador da decisão foi o político e não o técnico. Tudo considerado, o caso do protocolo da cloroquina adotado pelo Ministério da Saúde pode ser o primeiro caso em que venha a ser aplicado o entendimento do Supremo Tribunal Federal do que seja erro grosseiro”, afirma.

Ministério Público 

A atuação do Ministério Público até agora parece indicar que os procuradores vão defender o uso do remédio. Recentemente, procuradores de Minas Gerais e Goiás fizeram recomendações a determinados municípios para ampliar o uso do medicamento. No Piauí foi aberta ação civil pública com o mesmo objetivo.

Em 22 de maio, a Procuradoria Geral da República enviou ofício ao Ministério da Saúde pedindo informações sobre o novo protocolo adotado em relação ao medicamento. O texto, assinado pela subprocuradora-Geral da República, Célia Regina Souza Delgado, também pede que o Ministério da Saúde apresente um plano para evitar desabastecimento do fármaco, que é usado para tratamento de doenças como malária e lúpus.

Nesse caso, os procuradores podem ser responsabilizados pelas ações de incentivo ao uso do medicamento? Para Raul Canal, não: a falta de consenso científico também respalda esses profissionais.”Existem correntes que defendem o uso da cloroquina. A OMS pausou os estudos, mas também não proibiu. O uso da cloroquina é justificável no Brasil por conta do protocolo do SUS”, diz.

O julgamento no Supremo

O voto do ministro Luís Roberto Barroso prevaleceu na decisão colegiada do Supremo Tribunal Federal de manter a vigência da Medida Provisória 966, que restringiu a responsabilização dos agentes públicos a hipóteses de dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados ao combate da epidemia da Covid-19.

O entendimento de Barroso criou um limite claro ao determinar que agentes públicos que pratiquem atos administrativos que violem o direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente por descumprimento de normas e critérios científicos e técnicos cometem erro grosseiro e, portanto, estão sujeitos a sanções legais.

Clique aqui para ler o oficio da PGR ao Ministério da Saúde

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O RJET e a teoria de imprevisão: entendendo o artigo 7º

O projeto de lei que institui o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia da Covid-19 (RJET) tem sido beneficiado pelo ambiente propício ao debate científico que emergiu durante este período de confinamento. Apresentado há pouco mais de um mês pelo senador Antonio Anastasia, o RJET já foi objeto de ampla discussão na rede mundial de computadores, como testemunham os vários artigos veiculados na coluna Direito Civil Atual, publicada neste sítio, bem como os seminários promovidos na TV ConJur pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Esses aportes contribuem para a maturação do texto, que ainda se encontra em gestação no Congresso Nacional.

Nesse cenário de particular profusão acadêmica, um dos dispositivos do RJET que mais têm despertado a atenção da comunidade jurídica é o seu artigo 7º, que aborda o tema da resolução por onerosidade excessiva e da revisão judicial dos contratos. Em sua redação atual, o caput do dispositivo prevê que “não se consideram fatos imprevisíveis, para os fins exclusivos dos artigos 317, 478, 479 e 480 do Código Civil, o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou substituição do padrão monetário”. As opiniões que se formaram acerca desse artigo são as mais variadas [1].

Há dois pontos essenciais para a correta compreensão desse dispositivo. Primeiramente, o artigo 7º do RJET não modifica, nem mesmo provisoriamente, regime de resolução ou revisão contratual instituído pelo Código Civil. Trata-se, em verdade, de uma diretriz hermenêutica dos dispositivos do Código e que deve vigorar durante o período da pandemia. Em outras palavras, o artigo 7º, ao “fixar o sentido de uma lei anterior” [2], é um autêntico exemplo de uma “lei interpretativa”, uma categoria legal muito cara ao Direito Tributário, mas que apenas em raras ocasiões é empregada no Direito Civil.

Essa estratégia regulatória bastante comedida condiz com os princípios que nortearam a elaboração do RJET. Conforme ressalta a sua exposição de motivos, o projeto buscou “não alterar as leis vigentes” e, no que tange especificamente ao tema regulado pelo artigo 7º, declara que o Código Civil brasileiro já possui “regras adequadas para resolver ou revisar contratos por imprevisão”. A manutenção do modelo previsto no Código Civil foi, portanto, uma escolha consciente da comissão elaboradora do RJET.

A segunda questão relevante sobre o artigo 7º está no fato de que a diretriz interpretativa nele prevista não representa, a bem dizer, uma inovação no Direito brasileiro. Pelo contrário: a ideia de que as vicissitudes econômicas, notadamente as alterações inflacionárias, cambiais e monetárias, não constituem fatos imprevisíveis a justificar a revisão ou a resolução dos contratos, está há muito tempo incorporada à tradição jurídica nacional, especialmente em razão do posicionamento reiterado dos tribunais superiores 3].

Essa tese remonta a antigos precedentes do STF, proferidos ainda em meados no século passado [4], e foi rapidamente integrada à jurisprudência do STJ, quando de sua criação [5]. A ideia por detrás desse entendimento é bastante intuitiva: o Brasil é um país historicamente marcado pela instabilidade econômica e pelas frequentes oscilações de inflação, de câmbio e pela sucessão da padrões monetários. Na opinião dos tribunais, essas alterações, conquanto bruscas, não constituiriam eventos imprevisíveis que permitiriam a flexibilização da força obrigatória dos contratos. E, de fato, o entendimento contrário poderia conduzir a uma excessiva fragilização dos vínculos contratuais, que seriam passíveis de revisão toda vez que se findasse um ciclo econômico.

Assim, o STJ decidiu pela inaplicabilidade das regras de revisão dos contratos civis em praticamente todas as crises econômicas enfrentadas pelo Brasil nas últimas décadas e que tiveram impacto sobre a inflação ou sobre o câmbio. É o que ocorreu, por exemplo, nos choques gerados pelas políticas econômicas adotadas pelo Estado brasileiro, como a grave escalada inflacionária de 1986 [6], em decorrência do malogro do Plano Cruzado; ou a maxidesvalorização cambial de 1999 [7], que se seguiu ao abandono do sistema das bandas cambiais que até então sustentava o Plano Real. Esse entendimento também foi aplicado a crises cambiais provocadas por fatores internos, como a de 2002 [8], ou externos, como a de 2008 [9], que levaram a uma rápida depreciação da moeda brasileira no mercado internacional.

Por que não criar uma norma ad hoc de revisão contratual? O exemplo da França

Em resumo, o artigo 7º do RJET não altera substancialmente o atual panorama da revisão dos contratos civis por imprevisão, tratando-se de uma abordagem que se vale das normas e orientações interpretativas já existentes no nosso ordenamento para lidar com eventuais desarranjos contratuais gerados pela Covid-19. Essa forma de enfrentamento tem sido adotada em outros países, que também optaram por não criar novos métodos de revisão contratual aplicáveis à presente crise. É o que ocorre, por exemplo, na França.

Com efeito, a França editou uma série de medidas emergenciais para fazer face aos problemas decorrentes da Covid-19, as quais têm como marco legal a Lei nº 2020-290, “de urgência para o enfrentamento da epidemia de Covid-19”, de 23 de março 2020. Entre as intervenções promovidas na seara dos contratos, destaca-se a prorrogação geral dos prazos que suscitariam a incidência de cláusulas penais, cláusulas resolutórias e astreintes, bem como dos prazos decadenciais [10]; e a suspensão temporária das medidas de despejo e do corte do fornecimento de energia elétrica, água, e aquecimento [11]. É notável, todavia, que nenhuma dessas medidas alterou, nem mesmo em caráter temporário, as normas gerais de revisão dos contratos, previstas no artigo 1195 do Code civil.

Esse fato é até certo ponto surpreendente, tendo em vista que a França é também a pátria da histórica Lei Failliot, de 21 janeiro de 1918, que instituiu um regime excepcional e temporário que permitia a resolução de contratos cujas obrigações tivessem se tornado particularmente onerosas para uma das partes em razão dos efeitos imprevisíveis da Primeira Guerra Mundial. Por qual razão o parlamento francês de 2020 não optou por seguir o mesmo caminho para solucionar os problemas contratuais gerados pela Covid-19? A divergência pode ser explicada em função dos diferentes arcabouços legais existentes hoje e um século atrás.

À época da promulgação da Lei Failliot, a teoria da imprevisão não encontrava amparo no Code Civil e era categoricamente rechaçada pela Corte de Cassação francesa [12]. A legislação de emergência teve de suprir essa omissão, instituindo um regime ad hoc de resolução dos contratos por imprevisão. O cenário atual é completamente distinto, tendo em vista que a reforma do direito dos contratos e das obrigações, de 2016, terminou por inserir no Code Civil uma regra geral de resolução e revisão dos contratos por imprevisão. É natural que essa regra seja posta em prática durante a pandemia de Covid-19, o que torna desnecessária a criação de um regime específico para esta crise.

Os limites do artigo 7º do RJET

Outro fator importante a ser considerado quando da análise do artigo 7º do RJET diz respeito ao seu campo de aplicação, que é bastante circunscrito e abarca apenas as regras de resolução e revisão contratual previstas no Código Civil. De fato, o próprio parágrafo primeiro do dispositivo em comento estabelece que suas diretrizes interpretativas não se aplicam aos modelos de revisão contratual instituídos pelo Código de Defesa do Consumidor ou pela Lei de Locações de Imóveis Urbanos (Lei nº 8.245 de 1991). A essas duas exceções, deve-se acrescer os contratos administrativos, tendo em vista que o RJET declaradamente não tratou de matérias afeitas ao Direito Administrativo ou Tributário [13].

Essas ressalvas, mais uma vez, revelam a sintonia existente entre o dispositivo do RJET e a jurisprudência nacional. Diferentemente do entendimento adotado para a revisão de contratos regulados pelo Código Civil, o STJ tem admitido que a inflação e a variação cambial podem fundamentar a revisão judicial dos contratos de consumo [14], de locação [15] e administrativos [16]. Essa interpretação não será alterada pelo artigo 7º do RJET.

A exclusão se justifica na medida em que esses três gêneros de contratos são contemplados com regimes especiais de revisão, cada qual governado por princípios próprios. No caso específico dos contratos de consumo e de locação de imóveis, essas regras especiais de revisão não exigem que o evento que ensejou o desequilíbrio contratual seja “imprevisível”, o que, por si só, já bastaria para tornar inoperante a diretriz interpretativa prevista no RJET. Com efeito, o artigo 7º do RJET declara que a inflação, a variação cambial e as alterações do padrão monetário não devem ser interpretadas como “fatos imprevisíveis” para efeitos de incidência das regras de revisão dos contratos. Ocorre que, como prevê o artigo 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor, a revisão dos contratos de consumo pressupõe apenas que “fatos supervenientes” à celebração do contrato tenham tornado as obrigações assumidas pelo consumidor “excessivamente onerosas”; pouco importando se esses fatos eram ou não previsíveis. Essa diferença entre os modelos revisão civil e consumerista é plenamente compreensível: a assimetria entre fornecedores e consumidores, inerente às relações de consumo, requer um sistema mais amplo e facilitado de revisão dos contratos desequilibrados.

A função do artigo 7º do RJET

Se o artigo 7º do RJET não modifica o modelo de resolução ou revisão contratual por fatos supervenientes, e tampouco introduz uma diretriz interpretativa verdadeiramente nova, qual seria, então, a função desse dispositivo? A resposta a esta pergunta passa pela compreensão dos objetivos do RJET que, entre vários aspectos, buscou antecipar um problema prático a ser enfrentado pelos tribunais: a onda de ações judiciais pleiteando a revisão ou a resolução de contratos, que certamente se formará em razão da pandemia. A estratégia do RJET de transformar uma regra jurisprudencial em lei, ainda que de caráter temporário, pode contribuir de duas formas para a conter esse cenário de iminente proliferação de litígios.

Em primeiro lugar, o artigo 7º permitirá que o Judiciário responda de maneira uniforme aos problemas cambiários, inflacionários ou monetários eventualmente surgidos em razão da pandemia. Se é verdade que o STJ tem cumprido com esmero sua função de unificar a jurisprudência nacional, ao zelar pela coerência de seus próprios precedentes, é também verdade que, antes que os primeiros litígios relacionados à Covid-19  cheguem a esta corte superior, podem surgir interpretações contraditórias nas instâncias inferiores. O artigo 7º se antecipa a esse problema ao garantir que o entendimento historicamente adotado pelo STJ será seguido com mais rigor pelos magistrados de primeiro e segundo graus. Essa uniformidade é salutar pois assegura o tratamento isonômico dos jurisdicionado e favorece a economia processual, na medida em que evita a prolação de decisões que seriam revertidas nas instâncias superiores.

Em segundo lugar, o artigo 7º poderá contribuir para a diminuição do número de ações que versam sobre a resolução ou revisão de contratos. De um lado, porque a uniformização da jurisprudência impede o surgimento de uma “loteria judicial’, que é sempre um convite ao ajuizamento de demandas. De outro, porque o critério objetivo estampado no dispositivo será uma clara sinalização para os litigantes no sentido de que não vale a pena ajuizar uma ação que tenha por fundamento a variação cambial, inflacionária ou monetária, desencorajando esse tipo de pedido.

Os autores agradecem ao Professor Otavio Luiz Rodrigues Junior a cessão do espaço de sua coluna semanal para a publicação deste texto.

Daniel Amaral Carnaúba é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Pires Novais Dias é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio, doutor em Direito, com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015), e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha (2015).

Guilherme Henrique Lima Reinig é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

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Diogo Malan: Advocacia criminal e sua ética (parte 2)

Em 1966, Monroe Freedman respondeu afirmativamente àquelas que considera as três mais difíceis questões na advocacia criminal: (i) é apropriado proceder ao exame cruzado com o propósito de desacreditar testemunha que o Advogado sabe estar dizendo a verdade?; (ii) é apropriado permitir que o acusado preste depoimento, quando o Advogado sabe que ele cometerá crime de perjúrio?; (iii) é apropriado fornecer ao cliente orientação jurídica, quando há razão para crer que essa orientação vai induzi-lo a cometer delito de perjúrio? [1]

Exatamente quatro décadas após, Stephen Gillers publicou artigo científico dialogando criticamente com essas ideias de Freedman. [2]

Gillers inicia seu texto reconhecendo que o Advogado criminalista está vinculado a três deveres éticos, potencialmente conflitantes: (i) atuar com empenho pessoal, obtendo todas as informações úteis à defesa técnica do cliente; (ii) resguardar o sigilo profissional, só divulgando informações obtidas do cliente em benefício deste; (iii) exercer o dever de sinceridade (duty of candor), revelando ao julgador informações necessárias para prevenir ou remediar fraudes contra a administração da justiça criminal (v.g. perjúrio do acusado etc.).

Gillers critica a proposição de que o terceiro sobredito dever ético é subordinado aos dois antecedentes, pois caso o Advogado não consiga convencer o cliente a não cometer perjúrio, nem renunciar ao mandato, ele pode permitir o depoimento falso do cliente em juízo, sem incorrer em infração ético-disciplinar ou penal.

Nesse sentido, Gillers questiona a tese de que, caso prevaleça o dever de sinceridade sobre os demais deveres éticos do Advogado, este a rigor deve advertir o cliente, no início da entrevista reservada, que certas informações fornecidas podem ser futuramente reveladas ao julgador. Tal conjuntura encoraja tanto a omissão de informações pelo cliente, quanto a ignorância seletiva do Advogado, que tende a limitar o escopo das perguntas feitas ao cliente.

Para solução do trilema ético em digressão, Gillers propõe critério temporal, diferenciando o perjúrio antecipado (quando o Advogado toma conhecimento do perjúrio antes de o cliente depor em juízo) do perjúrio consumado (quando o Advogado fica ciente do perjúrio durante, ou após, o depoimento judicial do cliente).

No primeiro caso (perjúrio antecipado), Gillers entende que o cliente não tem direito a cometer perjúrio, nem à assistência jurídica para tanto. Assim, a questão do perjúrio antecipado não é propriamente uma questão legal, e sim política.

Gillers rejeita a ideia de que o Advogado pode permitir que o cliente cometa perjúrio, porquanto há diversos atos atentatórios à administração da justiça criminal que o Advogado não pode praticar: produzir documento ideologicamente falso, testemunha mentirosa etc.

Assim, o cliente que propositadamente sonega informações do Advogado, para poder praticar perjúrio, assume os riscos de: (i) deixar de se beneficiar do uso estratégico dessas informações pelo Advogado; (ii) ter a sua própria mendacidade exposta pelo exame cruzado do acusador.

Gillers também rechaça o argumento de que o Advogado deve advertir o cliente que, caso este confesse durante a entrevista reservada, não poderá negar a prática do crime em juízo. Isso porque não há necessidade de se informar ao cliente que o Advogado não pode cometer ilegalidade durante o patrocínio da causa.

Quanto à proposição de que o dever de sinceridade induz o Advogado a selecionar as informações obtidas do cliente, comprometendo a própria efetividade da defesa técnica, Gillers a caracteriza como sendo um non sequitur, que pode ser assim resumido: para que o Advogado atue com efetividade, ele deve ser cúmplice de perjúrio.

Nesse diapasão, caso o Advogado adote a tática de propositadamente se manter ignorante para poder burlar seu dever ético de sinceridade com o julgador, os regramentos deontológicos advocatícios não podem ser adaptados para acomodar essa tática.

Freedman e Gillers concordam em um ponto: o Advogado tem o dever ético de desencorajar a prática de perjúrio pelo cliente, recusando-se a prepara-lo para seu depoimento, alertando-o para os riscos do exame cruzado do acusador e da imposição de pena pelo perjúrio etc.

O problema se intensifica quando sobrevém dissenso. Ou seja: Advogado não quer que o cliente deponha em juízo (pois crê que ele cometerá perjúrio), porém o cliente está irredutível, por entender que o Advogado está errado, e a mera suposição de que o cliente mentirá é insuficiente para violar seu direito fundamental a ser ouvido.

A não ser que a posição do Advogado esteja baseada em uma confissão direta do cliente sobre sua intenção de mentir em juízo, a solução desse dissenso apresenta dificuldades consideráveis para o julgador. [3]

No segundo caso (perjúrio consumado), Gillers entende que os valores que Freedman quer proteger – a tutela da sinceridade na relação Advogado-cliente, e o desencorajamento da ignorância seletiva do Advogado – sofrem grau menos intenso de restrição.

Para tanto, Gillers afasta o argumento de que o direito ao silêncio (privilege against self-incrimination), previsto na V Emenda da Declaração de Direitos (no person shall be compelled in any criminal case to be a witness against himself), impede a revelação ao julgador do perjúrio sobre o qual o Advogado tomou conhecimento com base em informações confidenciais.

Isso porque as declarações prestadas pelo cliente ao Advogado não são involuntárias, compelidas pelo Estado. O fato de o cliente ter motivação para ser sincero com o Advogado, e este ter o dever ético de encorajar tal sinceridade, não tem o condão de tornar as declarações do cliente involuntárias. O Estado não adota medidas coercitivas contra o cliente que se recusa a falar com seu Advogado.

Gillers também redargue que o Advogado que revela o perjúrio consumado ao julgador não está produzindo elementos probatórios, e sim revelando informações sobre fraude contra a administração da justiça criminal que ele involuntariamente auxiliou.

Por fim, Gillers invoca o precedente United States v. Apfelbaum, da Suprema Corte norte-americana. [4]

Nesse caso, o acusado invocou o direito ao silêncio ao depor perante grande júri (grand jury) federal, porém o Juiz lhe concedeu imunidade, com fundamento no título 18, § 6002 do US Code. [5] Após, ele foi acusado de prestar declarações falsas ao sobredito júri, tendo objetado quanto à admissão em juízo de quaisquer outras partes do seu depoimento imunizado, à exceção dos excertos imputados como falsos.

A Suprema Corte decidiu pela licitude probatória das outras partes desse depoimento imunizado, com fundamento de que nem a V Emenda da Declaração de Direitos, nem o título 18, § 6002 do US Code, proíbem a admissão em juízo de depoimento imunizado do acusado, para fins de persecução penal do seu falso testemunho.

O principal fundamento é que a proteção jurídica conferida pelo estatuto jurídico da testemunha imune é menos intensa do que aquela decorrente do exercício do direito ao silêncio.

Nessa toada, Gillers conclui que mesmo o testemunho exigido coercitivamente pelo Estado é admissível em juízo para comprovação da sua falsidade, à luz do direito ao silêncio. Portanto, a revelação pelo Advogado ao julgador do perjúrio consumado pelo cliente, com base em informações confidenciais, não caracteriza violação ao sobredito direito fundamental.

Esse debate acadêmico entre Freedman e Gillers é bem talhado para demonstrar a complexidade das variegadas questões éticas inerentes à advocacia criminal, motivo pelo qual se pretende revisita-las em breve.

[1] O raciocínio de Freedman é que hipotético regramento ético proibindo o Advogado de deixar que o cliente cometa perjúrio, ou impondo ao Advogado dever de revelar esse perjúrio ao julgador, ensejaria a erosão dos deveres éticos de propiciar ao cliente defesa técnica efetiva e de resguardar o sigilo profissional. Tal erosão caracteriza dano aos valores do sistema de administração da justiça criminal maior do que aquele causado pelo perjúrio (FREEDMAN, Monroe. Professional responsibility of the criminal defense lawyer: The three hardest questions, In: Michigan Law Review, n. 64, pp. 1.469-1.484, june 1966).

[2] GILLERS, Stephen. Monroe Freedman’s solution to the criminal defense lawyer’s trilemma is wrong as a matter of policy and constitutional law, In: Hofstra Law Review, n. 34, pp. 821-845, 2006.

[3] Caso o julgador considere a crença do Advogado como suficiente para inviabilizar o depoimento do cliente em juízo, na prática ele tornará o Advogado “juiz” da credibilidade do cliente, usurpando competência dos jurados. Caso o Juiz considere que a intenção do cliente prevalece sobre a posição do Advogado, colocará em causa a confiança inerente à relação Advogado-cliente. Caso o julgador exija que o Advogado revele o fundamento dessa crença, colocará em causa o sigilo profissional. A resolução desse dissenso é feita em procedimento incidental? Perante o mesmo Juiz da causa, ou outro Juiz? O acusado tem direito a ser ouvido nesse procedimento incidental? O acusado tem direito a ser assistido por Advogado independente? Qual é o standard probatório aplicável à intenção do acusado de cometer perjúrio?

[4] 445 U. S. 115 (1980).

[5] Nesse caso, o acusado não pode se recusar a depor com fundamento no direito ao silêncio, porém seu testemunho e quaisquer informações derivadas (direta ou indiretamente) do seu testemunho não podem ser usados contra ele em qualquer processo criminal, exceto em persecução por perjúrio, falso testemunho ou descumprimento da ordem de imunidade de outra maneira.

 é advogado criminalista, sócio do Mirza & Malan Advogados e professor da Uerj e da UFRJ.

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Juíza derruba decreto que flexibiliza quarentena em Ribeirão Preto

Combate ao Coronavírus

Por falta de interesse local, juíza suspende decreto que flexibiliza quarentena

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Não há interesse local identificável em caso de município que, contra parecer científico referente à pandemia do coronavírus e decreto estadual, publica decreto municipal visando flexibilizar a quarentena de seus cidadãos. Com esse entendimento, a juíza Lucilene Aparecida Canella de Melo, da 2ª Vara da Fazenda Pública de Ribeirão Preto, deferiu liminar para suspender o Decreto 100/2020.

Centro histórico de Ribeirão Preto (SP)
Divulgação

Ao decidir, a magistrada levou em consideração a decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direita de Constitucionalidade 6.341. No último dia 15, o Plenário da corte referendou decisão do ministro Marco Aurélio para confirmar a competência concorrente da Anvisa e dos estados e municípios sobre saúde pública.

Ou seja, municípios podem suplementar legislação federal e estadual no que couber, desde que haja interesse local. E a averiguação do “interesse local” só se torna possível mediante a investigação de todos elementos que envolvem o caso concreto. Na visão da magistrada, ele não existe quanto ao decreto de Ribeirão Preto, que visava o relaxamento da quarentena.

Dentre os motivos citados está estudo da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo que aponta que a previsão de pico da epidemia em Ribeirão Preto não se concretizou até o momento, estando de 2 a 3 semanas atrás da capital no que diz respeito à evolução dos casos da Covid-19.

“Esses dados tornam questionável a existência de interesse local para o abrandamento das medidas restritivas que antes haviam sido determinadas neste Município, e que estavam em compasso com o Decreto Estadual 64.881 de 22 de março de 2020, de maior abrangência”, concluiu a magistrada.

Se não há interesse local identificável, prevalece o decreto estadual que mantém as medidas de isolamento social e outras.

Clique aqui para ler a decisão

1012331-36.2020.8.26.0506

 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 28 de abril de 2020, 21h47