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Zeca Lira: A Covid e os maus-tratos ao comércio por aplicativos

O mundo luta contra a pandemia causada pela Covid-19. Fique em casa!, clamam cientistas de todos os cantos, políticos esclarecidos da esquerda e da direita, cidadãos conscientes de todas as idades, gêneros e credos.

Enquanto não surge a vacina contra o coronavírus, o inimigo comum está perfeitamente identificado: a aglomeração de pessoas. Afora lunáticos, ninguém com uma fagulha de juízo pensa diferente.

Interessante, porém, que, à margem dessa aparente obviedade, o tema suscita muitas perplexidades.

Tome-se como exemplo o debate constante e acirrado, entre pretensos titulares do monopólio do bom senso, sobre se nossas autoridades sanitárias devem ser, simplesmente, contra ou a favor do isolamento horizontal ou do lockdown.

Afinal de contas, esse confronto radicalizado de opiniões faz algum sentido nos 8.516.000 quilômetros quadrados de Brasil?

A indagação provém das características singulares de nosso país, dotado de território continental, que abriga 5.570 municípios distribuídos entre 26 estados, onde regiões riquíssimas, que desfrutam de níveis europeus de desenvolvimento, coexistem com áreas miseráveis, tanto urbanas como rurais.

Ponderando-se os contrastes nacionais relevantes para o enfrentamento da pandemia, não se pode deixar de considerar, também, nossa estrutura demográfica.

Observe-se que, de um lado, o país é farto em regiões metropolitanas monumentais, como a Grande São Paulo, com 10% da população brasileira, que beira 210 milhões de habitantes.

De outro lado, sobram territórios com baixíssima densidade demográfica, como Roraima e seus pouco mais de dois habitantes por quilômetro quadrado, em território com 224.299 quilômetros quadrados.

Dados como esses evidenciam o equívoco do debate maniqueísta entre ser ou não ser a favor do isolamento horizontal ou do lockdown. Precisamos, isto sim, discutir como resolver a pandemia, segundo as múltiplas peculiaridades locais de nosso país.

A solução adequada nunca poderá desprezar, conforme o caso, a realidade municipal, metropolitana, estadual, interestadual, das regiões, sem prejuízo de diretrizes sérias, de âmbito nacional, a cargo da União Federal.

Surge daí outra dificuldade para que a política do “fique em casa” ganhe caráter consensual e pacífico, a salvo de controvérsias, tal qual cogitado no início deste texto.

Temos um presidente, 26 governadores e 5.570 prefeitos, todos dotados pela Constituição da República do poder-dever de editar, simultaneamente, decretos para combater a pandemia.

Não é preciso especular para perceber que, partindo o país para a descompressão da quarentena, viveremos, com crescimento exponencial, conflitos federativos de toda ordem.

A cada dia será mais frequente a coexistência de decretos estaduais que mandam fechar o comércio com decretos municipais que autorizam a reabertura das lojas. Idem na situação invertida: estados permitindo, municípios proibindo.

Pena que o Supremo Tribunal Federal, ao cuidar do conflito federativo em tempos de Covid-19, tenha limitado sua intervenção no assunto à declaração pedagógica de que a União deve respeitar a competência dos estados e dos municípios, no que tange ao problema.

Faltou definir como enfrentar, neste delicadíssimo momento, o conflito de normas entre estados e municípios, tema aludido pelo ministro Alexandre de Moraes na ADPF 672, porém sem caráter vinculante, segundo recente pronunciamento da Corte Constitucional (conferir, v.g., Rcl 40.507, do RGS, relator ministro Roberto Barroso).

Se não bastasse, temos o Ministério Público Federal, os Ministérios Públicos estaduais e do Distrito Federal, o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública da União, as Defensorias Públicas dos estados e distrital, todos ávidos por participar da gestão administrativa encarregada da luta contra a pandemia.

Situação curiosa ocorreu no Distrito Federal. Sabe-se que o DF tem uma natureza sui generis, pois acumula a competência concorrente dos estados e municípios para legislar, assim como a competência comum atribuída a esses dois entes para editar normas administrativas.

No Distrito Federal, assim, é materialmente impossível a ocorrência de conflito entre competências constitucionais estaduais e municipais, já que tudo fica concentrado nos Poderes Executivo e Legislativo do próprio DF.

Surpreendentemente, quando o governador do Distrito Federal já havia divulgado seu projeto de flexibilização do fechamento do comércio, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Distrito Federal e o Ministério Público do Trabalho, todos juntos, em 27 de abril de 2020, ingressaram com uma ação civil pública para impedir a reabertura das lojas.

Como a ação foi ajuizada não só contra o Distrito Federal, mas também contra a União Federal e a Defensoria Pública do Distrito Federal, o processo corre na 3ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do DF (Processo 1025277-20.2020.4.01.3400), tendo o juízo daquela seção judiciária deferido liminar para sustar o programa do Poder Executivo distrital.

Hermenêuticas à parte, o Distrito Federal experimentou, por breve período, um inédito fechamento integral de seu comércio por ordem autônoma do Poder Judiciário, sem suporte em determinação correlata do Poder Executivo.

Cenário complexo, força é convir. No momento, o Distrito Federal recuperou parte da competência constitucional para administrar seu território, embora permaneça sob tutela judicial, em decisão contra a qual se acha pendente de julgamento pedido de suspensão de tutela de urgência, submetido ao presidente do TRF-1.

Nada é simples, em tempos da Covid-19. São preciosos os interesses em xeque, que impõem, tanto a primazia da defesa da saúde, como a irrenunciável missão governamental de mitigar, quanto possível, os efeitos assustadores do anunciado desemprego em massa, resultante de recessão brutal que se declara a caminho, tudo em níveis inauditos.

Não se justificam, assim, os maus-tratos ao comércio por aplicativo nesses dias sofridos, de crises seriíssimas de toda espécie, notadamente por ser incontroverso que na aglomeração de pessoas reside o inimigo comum a todos que lutam contra o fantasma do coronavírus.

Repelindo o confronto diversionista entre saúde e economia, no sentido de que a defesa da primeira impediria o exercício da segunda, é induvidoso que qualquer gestor público tem o dever de proteger toda atividade econômica que não agrave a pandemia. E a circunstância deveria ser presumida em relação a negócios que, por natureza, não provocam concentração de público, ou que possam ser estruturados com riscos mínimos de contágio.

Evidentemente, não existe risco zero de contaminação durante a pandemia. Enquanto não sobrevier a vacina, sempre haverá perigo, seja na leitura de um jornal de papel, ou na ida a uma farmácia da esquina, ou na compra de alimento por aplicativo.

Se assim é, as autoridades federais, estaduais e municipais tinham o dever de estudar e conceber, desde o primeiro instante do fechamento do comércio, meios de admitir e estimular mecanismos de compra e venda remota (não presencial), inclusive de produtos ditos “não essenciais”, como roupas, acessórios, brinquedos, equipamentos de esportes, entre outros.

Todavia, ao revés, o que se viu no particular, desde os decretos iniciais de fechamento do comércio, foi uma ampla displicência com o conflito federativo, inclusive no tocante a práticas como o delivery.

O setor de shopping centers foi especialmente atingido por essa conduta inadequada em diferentes localidades, valendo aqui ilustrar o problema com o ocorrido no Dia das Mães, no mês em curso.

Com a proximidade da data festiva, sabidamente das mais importantes do ano para o comércio brasileiro, os empreendedores passaram a estudar a legislação de diferentes localidades, para aferir a possibilidade de desenvolvimento dessa modalidade de negócio não presencial.

O propósito era o de comercializar produtos de forma remota, em condições perfeitas de segurança sanitária, sem qualquer hipótese de aglomeração de pessoas, em estrutura autorizada em diferentes estados e municípios do país, cogitando-se tanto de delivery como take away, sem que o consumidor transitasse no interior do shopping.

A mecânica do delivery é conhecida por todos: o cliente compra remotamente e recebe o produto em sua residência. No que concerne ao take away, sua estruturação estava concebida para funcionar na modalidade drive thru, ocorrendo a retirada do produto no estacionamento do shopping, sem que o adquirente saísse do carro, processando-se a entrega com a mais absoluta segurança, em perfeitas condições de higiene e limpeza, segundo avaliação de experts.

Enfim, tratava-se de projeto comercial elaborado em estrita observância às determinações e protocolos sanitários estabelecidos pelas autoridades, consistente na implantação de sistema de venda remota de produtos cuja característica básica residia no fato de que, em circunstância alguma, o consumidor ingressaria em lojas ou transitaria pelo interior do shopping.

Diversos empreendimentos do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outras localidades estavam autorizados a essa prática, com permanente acompanhamento, não só das autoridades, mas também da imprensa.

Outros municípios importantes, porém, impediram a prática dos negócios remotos, ao argumento de que haviam determinado o “fechamento do shopping”, com ressalva apenas para o funcionamento de atividades essenciais (farmácias e supermercados) e sem autorização explícita para o delivery ou drive thru de produtos não essenciais.

Houve caso de proibição de negócios por aplicativos em região metropolitana, quando se constituiu o seguinte paradoxo: shoppings de um município estiveram proibidos de operar, ao passo que outros da mesma metrópole, mas situados em município contíguo, puderam fazê-lo.

Ou seja, uma desigualdade injustificável na perspectiva sanitária, que poderia ter sido facilmente evitada, possuísse o país uma política uniforme para a prática de negócios à distância em tempos de pandemia.

Em suma, é triste que essa atividade mercantil de risco reduzido não tenha merecido tratamento adequado por parte das autoridades até o presente momento. Perdemos todos – trabalhadores, empresários, população, fisco – com a proibição de negócios que, por natureza, são os mais indicados nesses duros dias de domínio planetário do atroz coronavírus.

Como os Dia dos Namorados está à frente e a Covid-19 não acena com trégua no curto prazo, ainda há tempo para um ajuste de rumos na defesa da circulação possível de riquezas, durante o isolamento social. Sugiro a reflexão.

 é sócio do escritório Lobo & Lira Advogados, presidente da Comissão Especial de Direito Urbanístico e Direito Imobiliário da seccional do Rio de Janeiro da Ordem dos Advogados do Brasil e diretor do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário no Rio de Janeiro.

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Carvalho e Aguiar: Responsabilidade na omissão de socorro

Entendemos perfeitamente ao que estamos sendo expostos e vamos trabalhar todos os dias conscientes desse risco, mas queremos trabalhar com uma contrapartida de o hospital de garantir a nossa segurança”, diz Luciana (médica no Rio de Janeiro).

1. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) trouxe ao debate público inúmeras questões que exigem reflexão no campo da ciência do direito penal. Dentre os temas relevantes, os relativos aos direitos e deveres de profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares, administradores etc.) e de pacientes infectados, para além da dimensão ética do comportamento geral da sociedade durante o período e em situações de contágio. No caso particular de médicos e pacientes, diversas notícias apresentam cenários bastante delicados que começam a atingir o cotidiano do sistema de saúde e que, em efeito, suscitam questões relativas à responsabilidade jurídico-criminal.

Importante salientar que entendemos que a intervenção penal na área da saúde pública geralmente traz mais danos do que resultados positivos (p. ex., criminalização do aborto, consumo de drogas etc.), notadamente porque é ilusório o discurso da prevenção através da punição. Em geral, são as normas de caráter administrativo as mais adequadas para regular este tipo de relação, como a própria experiência da pandemia tem demonstrado. No entanto, o direito penal brasileiro apresenta uma série de hipóteses que espelha casos reais que vêm sendo noticiados e, por esse motivo, fundamental uma reflexão mais aprofundada (científica), imunizada das paixões próprias da esfera política.

Assim, pretendemos apresentar ao público não especialista, de forma bastante objetiva, mas seguindo critérios técnico-jurídicos, algumas situações problemáticas que envolvem a possibilidade de responsabilização criminal dos profissionais da saúde e dos pacientes sob os seus cuidados. O primeiro tema a ser enfrentado diz respeito aos limites da omissão de socorro punível de médicos e demais profissionais da saúde no atendimento às vítimas da Covid-19.

2. Em matéria publicada em 27/03/20, repórteres da BBC Brasil narraram o drama de médicos que se encontram na linha de frente no atendimento ao Coronavírus: “estamos apavorados”, é o título da reportagem. O pavor dizia respeito ao exponencial aumento do número de casos e, em consequência, do volume de pessoas que buscavam atendimento: “(…) faltam equipamentos de proteção adequados, e o risco de serem infectados aumenta ainda mais o estresse e o medo em sua rotina diária.”[1] Em algumas situações, médicos e enfermeiros estariam comprando equipamentos de proteção individual (EPI) por conta própria, em decorrência da falta de material ou porque o que está sendo disponibilizado nas unidades hospitalares seria inadequado para atender às necessidades do pronto-socorro e da terapia intensiva (UTI).

No caso da médica carioca, a situação chegou ao limite, pois apesar de ter comprado para uso pessoal uma máscara N95, em razão da ausência de material na unidade, “foi proibida de usá-la, porque, nas palavras da diretoria do hospital, deixaria outros profissionais que não tinham como fazer o mesmo preocupados. ‘Disseram que iria gerar um motim (entre funcionários)’, diz Luciana.”[2]

A questão que surge em relação aos deveres de médicos e dos demais profissionais da saúde diz respeito à possibilidade de não socorrer pessoas infectadas pelo novo coronavírus diante do risco de contaminação. A pergunta seria se, nesses casos em que o médico não dispõe de equipamento minimamente adequado, o não atendimento configuraria omissão de socorro, isto é, se haveria o dever jurídico de esses profissionais agirem mesmo em situações de risco real.

A omissão de socorro é um delito de periclitação da vida ou da saúde, que se caracteriza por uma inação (deixar de agir) materializada na colocação de alguém a uma situação de risco. Dentre os delitos de periclitação da vida e da saúde, encontramos, p. ex., o perigo de contágio venéreo, a exposição à moléstia grave, o risco à vida ou à saúde. Segundo o art. 135 do Código Penal, configura omissão de socorro “deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.” A mera abstenção da ação de cuidado é suficiente para caracterização do delito, sendo a pena majorada (causa especial de aumento) nos casos em que a omissão resulta em lesão corporal de natureza grave ou morte. Diferente do delito do art. 269 — “deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória” —, p. ex., a omissão de socorro não é um crime próprio do médico, ou seja, a conduta pode ser praticada por qualquer pessoa, também pelos profissionais de saúde. Basta que alguém esteja no lugar e no momento em que alguém necessita de assistência.

Na omissão de socorro a vontade do sujeito ativo engloba apenas a situação de risco, ou seja, há a intenção de omitir-se e há a consciência do perigo derivado da inação. Distingue-se, portanto, de outros casos de ações realizadas por profissionais de saúde e que resultam dano, como, p. ex., o homicídio (ou lesão corporal) por omissão ou por negligência. Isso porque se o agente quiser (dolo) a morte ou a lesão, responderá pelos crimes do art. 121 (homicídio) ou do art. 129 (lesão corporal). No caso do homicídio por omissão, o profissional da saúde, na posição de garantidor (dever de agir decorrente do art. 13, § 2º, Código Penal) e em condições de atuar, deixa deliberadamente de exercer o ofício com a intensão de provocar a morte. Na hipótese da negligência (art. 121, § 3º, Código Penal), o médico, no exercício profissional, infringe um dever de cuidado objetivo, viola uma regra técnica que deveria observar e provoca um dano não desejado.

Os Tribunais têm reconhecido a omissão de socorro nas atividades que envolvem a área da saúde quando o profissional recusa o atendimento a pacientes em estado grave ou, tendo iniciado, deixa de prosseguir com o cuidado devido.[3] A recusa ao atendimento, por si só, não configura o delito, pois é necessária a demonstração de que a pessoa a ser socorrida estava em situação de perigo real.

3. Os dados públicos acerca da capacidade de expansão e, sobretudo, da letalidade da Covid-19, permitem afirmar que há efetivamente uma situação de risco que exige cuidado médico-hospitalar quando pacientes sintomáticos, com testagem positiva, aportam nas unidades de pronto-atendimento (UPAs) e nos hospitais.

O cenário de análise, portanto, é o da configuração (ou não) do delito de omissão de socorro quando o médico, motivado pela ausência real de equipamento adequado de proteção, nega assistência ou recusa mantê-la a pacientes infectados pelo Coronavírus.

O art. 135 do Código Penal possui um elemento normativo que permite excluir a tipicidade do delito nos casos em que a conduta exigida cria risco ao omitente. O Código refere um dever de assistência “quando possível fazê-lo sem risco pessoal”, ou seja, o risco integra o tipo penal como uma elementar que, se presente na situação real, exclui o injusto. A indagação complementar seria: a possibilidade de os profissionais da saúde contraírem o vírus em decorrência da insuficiência de equipamentos de proteção individual (“EPI”) configuraria risco pessoal? A resposta parece ser, à evidência, positiva.

Diversas notícias dão conta do insustentável cenário em que se encontram as unidades de saúde, ambientes nos quais os profissionais estão diante de pacientes infectados em estado grave sem contar com condições e equipamentos minimamente adequados. A propósito, o próprio Código de Ética Médica estabelece, como direito do médico, “recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais” (Capítulo II, IV, Resolução 2.217, Conselho Federal de Medicina, 27/09/2018).

Assim, a falta de estrutura hospitalar e a ausência de materiais mínimos de proteção, como máscaras, luvas, óculos, aventais, capotes e demais, fundamentam a negativa de atendimento a pacientes infectados (ou até mesmo com suspeita de infecção) por Covid-19, sem que isso configure o crime de omissão de socorro.

4. No entanto, a questão fica mais delicada quando há fornecimento de material de proteção individual pela administração, mas o equipamento é menos eficaz para Covid-19, como, p. ex., máscaras sem filtro PFF2 (adequadas para conter a transmissão) que não impedem a dispersão de aerossóis.

O caso do Hospital Salgado Filho, no Rio de Janeiro, é exemplar. Em reportagem publicada pelo O Globo, em 19/03/20, médicos do hospital do Méier, na Zona Norte do Rio de Janeiro, denunciavam estar trabalhando com máscaras convencionais, visto que as N95, recomendadas pelo Ministério da Saúde para o contato direto com pacientes infectados, não estavam sendo fornecidas pela Secretaria Municipal da Saúde.[4] Em Mato Grosso, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren) notificou três hospitais por disponibilização de máscaras inadequadas aos profissionais do atendimento ao novo Coronavírus. No Hospital de Acidentados Traumatologia e Ortopedia, Só Trauma, enfermeiros foram flagrados com máscaras do tipo TNT, contraindicadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para utilização no combate ao Coronavírus – “o TNT só possui uma camada de tecido e, por isso, é inadequado ao uso dos profissionais, já que não barra nem filtra fluidos biológicos, o que expõe profissionais à contaminação.”[5] A situação é comum em vários outros estados da federação.[6]

Se é possível dizer que mesmo inadequadas, as máscaras TNT protegem o profissional de saúde de forma mais efetiva do que a ausência de qualquer EPI, igualmente é correto afirmar que mesmo o uso do EPI indicado pelas autoridades competentes não elimina completamente o risco de transmissão do vírus. Em razão desta, resta trabalhar com as situações em que o perigo possa ser reduzido a níveis toleráveis.

A conclusão possível, em termos abstratos, é que a falta de EPI adequado, isto é, em total conformidade com as normas técnicas, gera uma presunção de risco real. Eventualmente algum outro tipo de material pode apresentar nível de segurança similar, mas não entendemos que seja o caso das máscaras de TNT, p. ex. Tais casos devem ser analisados isoladamente, pois não é possível verificar, a priori e genericamente, todas as variáveis que envolvem a atestação da satisfação das condições sanitárias.

Assim, em face dos materiais disponíveis no momento do atendimento, os profissionais da saúde devem identificar sua suficiência e, verificando que o EPI não apresenta um grau satisfatório (mínimo) de segurança, devem comunicar a seu supervisor ou responsável, decidindo se podem fornecer o suporte requerido pelo paciente. Cientes, porém, de que o delito de omissão de socorro não está configurado quando o profissional estiver em risco pessoal de contágio, seja pela insuficiência do material de proteção, seja pelas más condições sanitárias do ambiente hospitalar.

Os limites do dever de agir estão elencados, de forma geral, na regulação jurídica da omissão imprópria. Segundo o art. 13, § 2º do Código Penal, a abstenção da conduta devida só é penalmente relevante quando o omitente podia agir. A possibilidade do agir não refere abstratamente uma capacidade física, mas uma condição pessoal real nos limites do risco aceitável.[7] E estar suscetível à contaminação pelo Coronavírus por ausência de equipamento de proteção individual minimamente adequado configura cenário que extrapola o que entendemos por risco aceitável.

Embora na grande mídia os médicos sejam saudados como “heróis” — e em certo sentido realmente o são em vista do notório empenho em salvar vidas na crise pandêmica que estamos vivendo —, o direito penal não exige atos de heroísmo e muito menos pune a omissão da ação devida quando implica risco pessoal. Eventual obrigação moral não se traduz em obrigação jurídica e é legítimo que os profissionais da saúde, nos casos em que o poder público não fornece as condições adequadas de trabalho e os coloca em perigo, deixem de prestar o cuidado esperado.

No caso, as lições de Nélson Hungria ganham especial relevo: “a lei não obriga ninguém a ser herói ou santo, isto é, a sacrificar-se por amor ao próximo (…). Mesmo aquele a quem incumbe, especialmente, o dever de assistência ao periclitante, não cometerá o crime, se se abstém para evitar risco pessoal. O texto da lei é incondicional quando se refere a risco pessoal (…).”[8]

5. Estabelecidos os limites do agir dos profissionais da área médica, fundamental referir, ainda, que é dever da administração, através das secretarias de saúde competentes (âmbitos federal, estadual e municipal), o fornecimento de equipamentos adequados para proteger a saúde dos servidores, sobretudo na esfera pública. Se por um lado o médico, o enfermeiro e todos os demais profissionais da cadeia de atendimento não são heróis, não sendo obrigados a ações de risco, por outro também necessitam cuidados. Cuidados que se materializam no fornecimento, pela administração pública, de condições mínimas para o atendimento às vítimas da Covid-19.

Assim, em caso de eventual contaminação dos profissionais de saúde pelo Coronavírus, em decorrência da não disponibilização de material de atendimento adequado, e demonstrada a relação de causalidade entre o não-fornecimento possível do equipamento e o contágio, seria cabível inclusive a responsabilização dos gestores pelos danos, nas esferas administrativa e cível e, eventualmente, no campo criminal.

Fundamental, portanto, nestes casos, uma atuação forte das associações, conselhos, sindicados e demais entidades representativas dos profissionais da área da saúde para que se cumpram, pelos poderes públicos e instituições privadas, as diretrizes que garantam minimamente a atuação no cuidado às vítimas.

 é mestre (UFSC) e doutor (UFPR) em direito; professor de Direito Penal da UFRJ e da Unilasalle/RS e sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados.

Lucas Albuquerque Aguiar é advogado do escritório “Davi Tangerino e Salo de Carvalho Advogados Associados”; LL.M. em direito penal internacional (Universidade de Leiden/Holanda); bacharel em direito (UniCEUB) e relações internacionais (UnB).