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Homem preso após extinção do processo deve ser indenizado

As pessoas jurídicas de direito público e de direito privado, assim como as prestadoras de serviços públicos, devem responder pelos danos causados por seus agentes.

Homem foi preso depois de ser furtado

O entendimento é da juíza Rozana Silqueira Paixão, da 1ª Vara Empresarial e de Fazenda Pública de Montes Claros (MG), ao determinar que o Estado de Minas Gerais indenize homem que foi preso mesmo depois de seu processo ser extinto. A decisão foi proferida em 26 de maio. 

Segundo os autos, em 20  de dezembro de 2017 o autor compareceu a um posto policial para realizar boletim de ocorrência depois de ser furtado. Entretanto, ele acabou preso porque, segundo a autoridade policial, era alvo de mandado de prisão. 

 Ocorre que o único mandado contra o autor foi expedido em novembro de 2011, tendo sido extinto sem resolução de mérito em maio de 2014. O pedido de prisão diz respeito a uma dívida de pensão alimentar, devidamente paga. 

Ainda assim, ele permaneceu detido entre 20 e 24 de dezembro, véspera de natal, o que “lhe trouxe, além de humilhação da prisão injusta e o fato do contato com outros presos, traumas psicológicos”, relata a decisão. 

Segundo a magistrada, ficou demonstrada “a ocorrência de prisão ilegal, decorrida da existência de baixa do mandado do sistema respectivo, segundo informação dos autos não contestada pelo réu [Estado de Minas Gerais], o que enseja dano moral pleiteado pelo autor”. 

A juíza fixou indenização por dano moral no valor de R$ 10 mil. 

5007142-31.2019.8.13.0433

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Carvalho e Aguiar: Responsabilidade na omissão de socorro

Entendemos perfeitamente ao que estamos sendo expostos e vamos trabalhar todos os dias conscientes desse risco, mas queremos trabalhar com uma contrapartida de o hospital de garantir a nossa segurança”, diz Luciana (médica no Rio de Janeiro).

1. A pandemia do novo coronavírus (Covid-19) trouxe ao debate público inúmeras questões que exigem reflexão no campo da ciência do direito penal. Dentre os temas relevantes, os relativos aos direitos e deveres de profissionais de saúde (médicos, enfermeiros, auxiliares, administradores etc.) e de pacientes infectados, para além da dimensão ética do comportamento geral da sociedade durante o período e em situações de contágio. No caso particular de médicos e pacientes, diversas notícias apresentam cenários bastante delicados que começam a atingir o cotidiano do sistema de saúde e que, em efeito, suscitam questões relativas à responsabilidade jurídico-criminal.

Importante salientar que entendemos que a intervenção penal na área da saúde pública geralmente traz mais danos do que resultados positivos (p. ex., criminalização do aborto, consumo de drogas etc.), notadamente porque é ilusório o discurso da prevenção através da punição. Em geral, são as normas de caráter administrativo as mais adequadas para regular este tipo de relação, como a própria experiência da pandemia tem demonstrado. No entanto, o direito penal brasileiro apresenta uma série de hipóteses que espelha casos reais que vêm sendo noticiados e, por esse motivo, fundamental uma reflexão mais aprofundada (científica), imunizada das paixões próprias da esfera política.

Assim, pretendemos apresentar ao público não especialista, de forma bastante objetiva, mas seguindo critérios técnico-jurídicos, algumas situações problemáticas que envolvem a possibilidade de responsabilização criminal dos profissionais da saúde e dos pacientes sob os seus cuidados. O primeiro tema a ser enfrentado diz respeito aos limites da omissão de socorro punível de médicos e demais profissionais da saúde no atendimento às vítimas da Covid-19.

2. Em matéria publicada em 27/03/20, repórteres da BBC Brasil narraram o drama de médicos que se encontram na linha de frente no atendimento ao Coronavírus: “estamos apavorados”, é o título da reportagem. O pavor dizia respeito ao exponencial aumento do número de casos e, em consequência, do volume de pessoas que buscavam atendimento: “(…) faltam equipamentos de proteção adequados, e o risco de serem infectados aumenta ainda mais o estresse e o medo em sua rotina diária.”[1] Em algumas situações, médicos e enfermeiros estariam comprando equipamentos de proteção individual (EPI) por conta própria, em decorrência da falta de material ou porque o que está sendo disponibilizado nas unidades hospitalares seria inadequado para atender às necessidades do pronto-socorro e da terapia intensiva (UTI).

No caso da médica carioca, a situação chegou ao limite, pois apesar de ter comprado para uso pessoal uma máscara N95, em razão da ausência de material na unidade, “foi proibida de usá-la, porque, nas palavras da diretoria do hospital, deixaria outros profissionais que não tinham como fazer o mesmo preocupados. ‘Disseram que iria gerar um motim (entre funcionários)’, diz Luciana.”[2]

A questão que surge em relação aos deveres de médicos e dos demais profissionais da saúde diz respeito à possibilidade de não socorrer pessoas infectadas pelo novo coronavírus diante do risco de contaminação. A pergunta seria se, nesses casos em que o médico não dispõe de equipamento minimamente adequado, o não atendimento configuraria omissão de socorro, isto é, se haveria o dever jurídico de esses profissionais agirem mesmo em situações de risco real.

A omissão de socorro é um delito de periclitação da vida ou da saúde, que se caracteriza por uma inação (deixar de agir) materializada na colocação de alguém a uma situação de risco. Dentre os delitos de periclitação da vida e da saúde, encontramos, p. ex., o perigo de contágio venéreo, a exposição à moléstia grave, o risco à vida ou à saúde. Segundo o art. 135 do Código Penal, configura omissão de socorro “deixar de prestar assistência, quando possível fazê-lo sem risco pessoal, à criança abandonada ou extraviada, ou à pessoa inválida ou ferida, ao desamparo ou em grave e iminente perigo; ou não pedir, nesses casos, o socorro da autoridade pública.” A mera abstenção da ação de cuidado é suficiente para caracterização do delito, sendo a pena majorada (causa especial de aumento) nos casos em que a omissão resulta em lesão corporal de natureza grave ou morte. Diferente do delito do art. 269 — “deixar o médico de denunciar à autoridade pública doença cuja notificação é compulsória” —, p. ex., a omissão de socorro não é um crime próprio do médico, ou seja, a conduta pode ser praticada por qualquer pessoa, também pelos profissionais de saúde. Basta que alguém esteja no lugar e no momento em que alguém necessita de assistência.

Na omissão de socorro a vontade do sujeito ativo engloba apenas a situação de risco, ou seja, há a intenção de omitir-se e há a consciência do perigo derivado da inação. Distingue-se, portanto, de outros casos de ações realizadas por profissionais de saúde e que resultam dano, como, p. ex., o homicídio (ou lesão corporal) por omissão ou por negligência. Isso porque se o agente quiser (dolo) a morte ou a lesão, responderá pelos crimes do art. 121 (homicídio) ou do art. 129 (lesão corporal). No caso do homicídio por omissão, o profissional da saúde, na posição de garantidor (dever de agir decorrente do art. 13, § 2º, Código Penal) e em condições de atuar, deixa deliberadamente de exercer o ofício com a intensão de provocar a morte. Na hipótese da negligência (art. 121, § 3º, Código Penal), o médico, no exercício profissional, infringe um dever de cuidado objetivo, viola uma regra técnica que deveria observar e provoca um dano não desejado.

Os Tribunais têm reconhecido a omissão de socorro nas atividades que envolvem a área da saúde quando o profissional recusa o atendimento a pacientes em estado grave ou, tendo iniciado, deixa de prosseguir com o cuidado devido.[3] A recusa ao atendimento, por si só, não configura o delito, pois é necessária a demonstração de que a pessoa a ser socorrida estava em situação de perigo real.

3. Os dados públicos acerca da capacidade de expansão e, sobretudo, da letalidade da Covid-19, permitem afirmar que há efetivamente uma situação de risco que exige cuidado médico-hospitalar quando pacientes sintomáticos, com testagem positiva, aportam nas unidades de pronto-atendimento (UPAs) e nos hospitais.

O cenário de análise, portanto, é o da configuração (ou não) do delito de omissão de socorro quando o médico, motivado pela ausência real de equipamento adequado de proteção, nega assistência ou recusa mantê-la a pacientes infectados pelo Coronavírus.

O art. 135 do Código Penal possui um elemento normativo que permite excluir a tipicidade do delito nos casos em que a conduta exigida cria risco ao omitente. O Código refere um dever de assistência “quando possível fazê-lo sem risco pessoal”, ou seja, o risco integra o tipo penal como uma elementar que, se presente na situação real, exclui o injusto. A indagação complementar seria: a possibilidade de os profissionais da saúde contraírem o vírus em decorrência da insuficiência de equipamentos de proteção individual (“EPI”) configuraria risco pessoal? A resposta parece ser, à evidência, positiva.

Diversas notícias dão conta do insustentável cenário em que se encontram as unidades de saúde, ambientes nos quais os profissionais estão diante de pacientes infectados em estado grave sem contar com condições e equipamentos minimamente adequados. A propósito, o próprio Código de Ética Médica estabelece, como direito do médico, “recusar-se a exercer sua profissão em instituição pública ou privada onde as condições de trabalho não sejam dignas ou possam prejudicar a própria saúde ou a do paciente, bem como a dos demais profissionais” (Capítulo II, IV, Resolução 2.217, Conselho Federal de Medicina, 27/09/2018).

Assim, a falta de estrutura hospitalar e a ausência de materiais mínimos de proteção, como máscaras, luvas, óculos, aventais, capotes e demais, fundamentam a negativa de atendimento a pacientes infectados (ou até mesmo com suspeita de infecção) por Covid-19, sem que isso configure o crime de omissão de socorro.

4. No entanto, a questão fica mais delicada quando há fornecimento de material de proteção individual pela administração, mas o equipamento é menos eficaz para Covid-19, como, p. ex., máscaras sem filtro PFF2 (adequadas para conter a transmissão) que não impedem a dispersão de aerossóis.

O caso do Hospital Salgado Filho, no Rio de Janeiro, é exemplar. Em reportagem publicada pelo O Globo, em 19/03/20, médicos do hospital do Méier, na Zona Norte do Rio de Janeiro, denunciavam estar trabalhando com máscaras convencionais, visto que as N95, recomendadas pelo Ministério da Saúde para o contato direto com pacientes infectados, não estavam sendo fornecidas pela Secretaria Municipal da Saúde.[4] Em Mato Grosso, o Conselho Regional de Enfermagem (Coren) notificou três hospitais por disponibilização de máscaras inadequadas aos profissionais do atendimento ao novo Coronavírus. No Hospital de Acidentados Traumatologia e Ortopedia, Só Trauma, enfermeiros foram flagrados com máscaras do tipo TNT, contraindicadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) para utilização no combate ao Coronavírus – “o TNT só possui uma camada de tecido e, por isso, é inadequado ao uso dos profissionais, já que não barra nem filtra fluidos biológicos, o que expõe profissionais à contaminação.”[5] A situação é comum em vários outros estados da federação.[6]

Se é possível dizer que mesmo inadequadas, as máscaras TNT protegem o profissional de saúde de forma mais efetiva do que a ausência de qualquer EPI, igualmente é correto afirmar que mesmo o uso do EPI indicado pelas autoridades competentes não elimina completamente o risco de transmissão do vírus. Em razão desta, resta trabalhar com as situações em que o perigo possa ser reduzido a níveis toleráveis.

A conclusão possível, em termos abstratos, é que a falta de EPI adequado, isto é, em total conformidade com as normas técnicas, gera uma presunção de risco real. Eventualmente algum outro tipo de material pode apresentar nível de segurança similar, mas não entendemos que seja o caso das máscaras de TNT, p. ex. Tais casos devem ser analisados isoladamente, pois não é possível verificar, a priori e genericamente, todas as variáveis que envolvem a atestação da satisfação das condições sanitárias.

Assim, em face dos materiais disponíveis no momento do atendimento, os profissionais da saúde devem identificar sua suficiência e, verificando que o EPI não apresenta um grau satisfatório (mínimo) de segurança, devem comunicar a seu supervisor ou responsável, decidindo se podem fornecer o suporte requerido pelo paciente. Cientes, porém, de que o delito de omissão de socorro não está configurado quando o profissional estiver em risco pessoal de contágio, seja pela insuficiência do material de proteção, seja pelas más condições sanitárias do ambiente hospitalar.

Os limites do dever de agir estão elencados, de forma geral, na regulação jurídica da omissão imprópria. Segundo o art. 13, § 2º do Código Penal, a abstenção da conduta devida só é penalmente relevante quando o omitente podia agir. A possibilidade do agir não refere abstratamente uma capacidade física, mas uma condição pessoal real nos limites do risco aceitável.[7] E estar suscetível à contaminação pelo Coronavírus por ausência de equipamento de proteção individual minimamente adequado configura cenário que extrapola o que entendemos por risco aceitável.

Embora na grande mídia os médicos sejam saudados como “heróis” — e em certo sentido realmente o são em vista do notório empenho em salvar vidas na crise pandêmica que estamos vivendo —, o direito penal não exige atos de heroísmo e muito menos pune a omissão da ação devida quando implica risco pessoal. Eventual obrigação moral não se traduz em obrigação jurídica e é legítimo que os profissionais da saúde, nos casos em que o poder público não fornece as condições adequadas de trabalho e os coloca em perigo, deixem de prestar o cuidado esperado.

No caso, as lições de Nélson Hungria ganham especial relevo: “a lei não obriga ninguém a ser herói ou santo, isto é, a sacrificar-se por amor ao próximo (…). Mesmo aquele a quem incumbe, especialmente, o dever de assistência ao periclitante, não cometerá o crime, se se abstém para evitar risco pessoal. O texto da lei é incondicional quando se refere a risco pessoal (…).”[8]

5. Estabelecidos os limites do agir dos profissionais da área médica, fundamental referir, ainda, que é dever da administração, através das secretarias de saúde competentes (âmbitos federal, estadual e municipal), o fornecimento de equipamentos adequados para proteger a saúde dos servidores, sobretudo na esfera pública. Se por um lado o médico, o enfermeiro e todos os demais profissionais da cadeia de atendimento não são heróis, não sendo obrigados a ações de risco, por outro também necessitam cuidados. Cuidados que se materializam no fornecimento, pela administração pública, de condições mínimas para o atendimento às vítimas da Covid-19.

Assim, em caso de eventual contaminação dos profissionais de saúde pelo Coronavírus, em decorrência da não disponibilização de material de atendimento adequado, e demonstrada a relação de causalidade entre o não-fornecimento possível do equipamento e o contágio, seria cabível inclusive a responsabilização dos gestores pelos danos, nas esferas administrativa e cível e, eventualmente, no campo criminal.

Fundamental, portanto, nestes casos, uma atuação forte das associações, conselhos, sindicados e demais entidades representativas dos profissionais da área da saúde para que se cumpram, pelos poderes públicos e instituições privadas, as diretrizes que garantam minimamente a atuação no cuidado às vítimas.

 é mestre (UFSC) e doutor (UFPR) em direito; professor de Direito Penal da UFRJ e da Unilasalle/RS e sócio do Davi Tangerino & Salo de Carvalho Advogados.

Lucas Albuquerque Aguiar é advogado do escritório “Davi Tangerino e Salo de Carvalho Advogados Associados”; LL.M. em direito penal internacional (Universidade de Leiden/Holanda); bacharel em direito (UniCEUB) e relações internacionais (UnB).

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Suzane Prado: Abuso de autoridade e a Lei 13869/19

Com a edição da Lei 13.869/2019, houve a expressa revogação da antiga Lei de Abuso de Autoridade (Lei 4.898/65), conforme dispõe o artigo 44 daquela. Num breve retrospecto, sabe-se que a Lei 4898/65 [1] penalizava em três searas civil, administrativa e criminal condutas de autoridades consideradas abusivas. Autoridade para o fim dessa Lei era “quem exerce cargo, emprego ou função pública, de natureza civil, ou militar, ainda que transitoriamente e sem remuneração” (artigo 5º).

E as condutas passíveis de enquadramento como abusiva estavam nos artigos 3º e 4º da 4898/65. No primeiro deles, dizia constituir abuso de autoridade qualquer atentado (essa expressão é muito importante; quer dizer que não precisava a ocorrência efetiva de algum dano, não admitindo tentativa) às liberdades de locomoção, de consciência, de crença, de culto religioso, de associação, mais à inviolabilidade de domicílio, ao sigilo de correspondência, aos direitos e garantias assegurados ao exercício do voto, ao direito de reunião e aqueles assegurados ao exercício profissional e, por fim, mas não menos importante, à incolumidade física do indivíduo.

No artigo 4º, mais dez hipóteses de abuso de autoridade descrevendo condutas tanto comissivas quando omissivas. A saber:

a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder;

b) submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei;

c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa;

d) deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada;

e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei;

f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor;

g) recusar o carcereiro ou agente de autoridade policial recibo de importância recebida a título de carceragem, custas, emolumentos ou de qualquer outra despesa;

h) o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal;

i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade.

Sempre que constatada a prática de alguma destas condutas, a ação penal era pública incondicionada (Lei 5249/67, excluindo necessidade de representação mencionada no artigo 1º da Lei 4898/65), e a pena de detenção, de dez dias a seis meses (artigo 6º, § 3º, “b”).

Ainda, em havendo resultado penalmente relevante quando da prática de alguma das condutas incriminadas, dava-se o concurso material. Isso porque, para além do  bem jurídico protegido pela Lei Especial a regularidade da prestação do serviço público e o exercício dos direitos constitucionais o agente também viria a ofender, por exemplo, a integridade física do ofendido, atingindo bem jurídico diverso. A propósito, “a Lei nº 4.898/65, cuidando da questão referente ao abuso de autoridade, definiu, caso a caso, as sanções administrativa, civil e penal aplicáveis de acordo com a gravidade do abuso cometido. Desta forma, o abuso de autoridade passou a ser punido independentemente de responder o agente, em concurso material, por outros delitos que da sua ação resultar” [2].

Na nova lei encontramos como atos suscetíveis de configurar abuso de autoridade, em termos penais, aqueles previstos nos artigos 9º a 38, descritos de forma mais pormenorizada, se comparados com os tipos da lei anterior. Assim como o conceito de agente público, praticamente repetido no caput e parágrafo único, mas especificando carreiras de Estado, no artigo 2º.

O que motivou essa escrita foi o fato de encontrar-se em trâmite nos Juizados Especiais Criminais de nossa atribuição, termos nos quais se investiga o abuso de autoridade cometido quando da prisão do sujeito, de regra, pelo atentado à incolumidade física da pessoa (artigo 3º, “i”). A primeira indagação foi: houve continuidade normativo-típica?

Discorrendo sobre o princípio da continuidade normativo-típica, Luiz Flávio Gomes [3] começa falando da abolitio criminis pela revogação da lei que considerava típico um fato determinado, por outra lei. Esta, por ser mais benéfica deve ser aplicada de imediato e, de regra, leva à extinção da punibilidade (artigo 2º, parágrafo único, e 107, III, ambas do CP). Todavia, o autor faz a ressalva: “Essa revogação nem sempre culmina na abolitio criminis. Isso porque a conduta descrita na norma revogada pode continuar tipificada em outro diploma legal. E esse fenômeno é denominado pela doutrina como princípio da continuidade normativo-típica”.

Embora o enquadramento típico vá migrar da lei revogada para outra, na qual o tipo penal subsista (de regra, com alteração de pena ou inserção de qualificadora), é a lei do tempo do fato que determina a sanção penal a que está sujeito o agente e a forma de execução da mesma. A propósito, o HC 106155, julgado em 04/10/2011, relator para o acórdão ministro Luiz Fux, determinando a aplicação da pena prevista na lei anterior e a tipificação da conduta na lei que sucedeu [4].

No questionamento feito sobre os processos de abuso de autoridade por atentado à incolumidade física da pessoa, algumas questões devem ser postas, frente a redação do artigo 13 da nova lei.

“Artigo 13   Constranger o preso ou o detento, mediante violência, grave ameaça ou redução de sua capacidade de resistência, a:

I exibir-se ou ter seu corpo ou parte dele exibido à curiosidade pública;

II submeter-se a situação vexatória ou a constrangimento não autorizado em lei;

III produzir prova contra si mesmo ou contra terceiro:

(Promulgação partes vetadas)

Pena detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa, sem prejuízo da pena cominada à violência”.

De regra, o conteúdo apurado nos termos circunstanciados em andamento é a violência usada quando da prisão, para além do necessário (quando foi necessário), sem as finalidades constantes do artigo 13 da nova Lei (o dito “corretivo” no jargão popular). Assim, se praticado o ato antes da vigência da Lei 13869/19, sem resultado material e sem qualquer das hipóteses previstas nos incisos do artigo 13, estando a conduta enquadrada tão somente na Lei 4898/65, salvo engano, é de se reconhecer a abolitio e, por consequência, aplicar o artigo 107, III, do CP. Ou, havendo resultado material, mas sem estar delineada qualquer das hipóteses acima, continua com o termo (seja na fase investigatória, instrutória ou executória), mas tão somente com relação ao crime conexo.

Por fim, se presente na conduta qualquer das finalidades do artigo 13 e incisos, continua com o termo, mas tendo por baliza o sancionamento anterior (detenção, de dez dias a seis meses, enquanto aqui se tem de um a quatro anos).

Doutra banda, encontram paralelo, sempre a depender da criteriosa análise do caso concreto, na Lei 13.869/19, as alíneas do artigo 3º, sendo de se prosseguir o feito, observadas as normas punitivas da legislação anterior as alíneas do artigo 3º da Lei 4898/65:

“a”  atentado à liberdade de locomoção nos artigos 9º, 10, 18, 19 e 37;

“b”  à inviolabilidade de domicílio no artigo 22;

“d”  à liberdade de consciência e de crença no artigo 15;

“i”  à incolumidade física do indivíduo no artigo 13.

Do artigo 4º, sem pretensão exauriente e lembrando da inafastável análise à vista do caso concreto, pode-se dizer da continuidade normativo-típica das alíneas:

“a”  ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder nos artigos 16 e 20;

“b”  submeter pessoa sob sua guarda ou custódia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei  nos artigos 13, 31 e 38;

“c”  deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa nos artigos 12 e 19;

“d”  deixar o juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada nos artigos 12, IV, e 19, parágrafo único;

“f”  cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor no artigo 33;

“h”  o ato lesivo da honra ou do patrimônio de pessoa natural ou jurídica, quando praticado com abuso ou desvio de poder ou sem competência legal no artigo 36;

“i”  prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade nos artigos 12 e 19.

Esses seriam, em tese, os tipos penais sobreviventes da Lei 4898/65, a serem considerados em cotejo com os trazidos pela Lei 13869/65. Superado esse exercício quanto aos procedimentos em curso (delitos praticados antes de 26 de março), e mantendo a vista na “incolumidade física do indivíduo”, como tratar, a partir dali, os abusos de autoridade (uso de violência, de regra) contra os detentos que não se encaixem nas hipóteses do artigo 13?

Pensamos que, havendo prova da materialidade do delito e indícios bastante de autoria, o socorro vai para o Código Penal (por exemplo, artigos 121, 129 e 132, observada a agravante genérica do artigo 61, II, “f”) ou, para a Lei de Tortura, se presente qualquer das hipóteses do artigo 1º [5] da Lei 9.455/97, que escape àquelas do artigo 13 da Lei 13869/19.

 é promotora de Justiça titular da 9ª PJ da comarca de Ponta Grossa (PR) e mestre em Direito Penal Econômico pela PUC–PR.