Categorias
Notícias

Órgãos de controle têm dever de zelar pela transparência do Estado

“Manipulação de estatísticas é manobra de regimes totalitários!”

Gilmar Ferreira Mendes

O legado institucional do período dos governos Lula e Dilma ainda deverá ser apurado pelas gerações futuras. Infelizmente, uma das marcas mais lembradas fixadas para este período do Brasil acabaram sendo as investigações criminais denominadas mensalão e lava jato e o processo de impeachment derivado da acusação de pedaladas fiscais. Todavia, existe uma grande herança deste período que resultou no aperfeiçoamento institucional e político do Estado Brasileiro, contando com intensa participação da própria sociedade.

E não estou falando das políticas públicas de redução da pobreza (Bolsa Família), do combate ao racismo (Estatuto da Igualdade Racial) ou da redução do déficit habitacional (Programa Minha Casa Minha Vida), mas referindo ao conjunto legislativo que tocou na estrutura do Estado, modernizando e democratizando a sua realidade. São alguns exemplos a Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar 135, d3e 2010); a Lei de Conflito de Interesses (Lei 12.813, de 2013); a Lei de Combate às Organizações Criminosas (Lei 12.850, de 2013); a Lei de Combate à Corrupção de Empresas (Lei 12.846, de 2013); a implementação da Defensoria Pública da União; e a Reforma do Judiciário (Emenda Constitucional 45, 2004), esta resultante de um inédito pacto entre os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. que resultou, entre outras medidas, na criação do Conselho Nacional de Justiça e do Conselho Nacional do Ministério Público.

Mas de todas estas medidas citadas e outras aqui não referidas, nenhuma é mais importante do que a Lei de Acesso à Informação`(Lei 12.527, de 2011). Karl Popper (1902 – 1994), filósofo liberal austro-inglês já defendia em “Sociedade Aberta e seus Inimigos” (1945 e “Conjecturas e Refutações” (1963) que somente em sociedades abertas era possível o verdadeiro desenvolvimento científico, pois somente nelas as conjecturas científicas poderiam ser objeto de um verdadeiro escrutínio e, portanto, capazes de tornarem-se enunciados verdadeiramente científicos. Similarmente, vamos encontrar em Peter Häberle, particularmente em seu “Hermenêutica Constitucional: Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição — contribuição para a Interpretação Pluralista e Procedimental da Constituição” (2003), a defesa da formação de uma jurisprudência constitucional aberta à participação da sociedade. A sociedade aberta, no caso, é aquela em que as informações que a afetam são disponibilizadas pelo Estado, que se constitui em um ator responsável e transparente que não mantém segredos para sim mesmo.

Portanto, a transparência do Estado e o acesso às informações tornam-se indispensáveis ao convívio social e à administração da Justiça. Neste contexto, a Lei de Acesso à Informação é um instrumento que confronta a tradição do sistema brasileiro de segredos e conspirações de Estado. É o verdadeiro instrumento de cidadania, ao dar realidade o que dispõe o art. 5º, inciso XXXIII, da Constituição Federal: “todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

A regra constitucional para o Estado, então, é o da publicidade e transparência. O segredo é exceção (art. 3º, inciso I, da Lei 12.527). A Lei de Acesso à Informação também introduz diversos procedimentos novos a serem observados pelo Estado no cumprimento da regra constitucional de transparência. Um dos principais, a transparência ativa, que consiste na obrigatoriedade do Estado prover, independente de requerimento, as informações de interesse coletivo que são por ele custodiadas (Capítulo III do Decreto nº 7.724, de 2012).

Igualmente foi firme o legislador em impor sanções àquele que recusar-se a fornecer informação requerida, retardar deliberadamente o seu fornecimento ou fornecê-la intencionalmente de forma incorreta, incompleta ou imprecisa (art. 32, inciso I), bem como quem utilizar indevidamente, bem como subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, alterar ou ocultar, total ou parcialmente, informação que se encontre sob sua guarda ou a que tenha acesso ou conhecimento em razão do exercício das atribuições de cargo, emprego ou função pública (art. 32, inciso II).

No nosso complexo sistema jurídico institucional, quando o Ministério da Saúde resolveu alterar as informações sobre a pandemia que assola o Brasil, surge para os órgãos de controle o dever de implementar esta legislação tão inovadora e importante para a modernização do Estado brasileiro. Não é possível conviver mais com mecanismos de informação que na infeliz declaração de um ex-Ministro da Fazenda, “o que é bom a gente mostra, o que é ruim a gente esconde”. Tal forma de agir não é tolerado na lei. Resta saber se ela ainda é tolerada por aqueles que tem que a fazer cumprir.

Luís Inácio Adams é advogado, ex-procurador da Fazenda Nacional, foi Advogado-Geral da União (2009 a 2016).

Categorias
Notícias

Tânia Reckziegel: As fake news no Judiciário e na sociedade

Opinião

O impacto das fake news no Poder Judiciário e na sociedade

Por 

A crescente desinformação e a propagação de falsas notícias em mídias e redes sociais vêm acarretando à sociedade uma alienação preocupante. A conscientização da população e a educação da sociedade acerca dos prejuízos trazidos pela desinformação e a propagação de notícias falsas motivou o Conselho Nacional de Justiça a ampliar a mobilização para combater essas práticas, buscando garantir a integridade da sociedade e a credibilidade das instituições jurídicas a partir do enfrentamento das distorções das decisões judiciais e a duplicação dessas deturpações.

As práticas de desinformação hoje constituem atividade cada vez mais organizada, sofisticada, e que vêm contando com mais recursos, tanto financeiros como tecnológicos. O resultado é o aumento do desafio para quem queira combater as fake news, que não só aumentam em termos de quantidade, mas em novos formatos que vêm sendo utilizados.

É possível perceber uma preocupação na população como um todo relativamente às notícias que se espalham. Nos grupos de aplicativos de comunicação, já se denota uma maior conscientização em analisar a veracidade de determinado relato para seu compartilhamento. Com efeito, essa consciência coletiva que se pretende alcançar acerca da busca pela informação de qualidade e verdadeira deve, sobretudo, abarcar os magistrados. Cabe ao juiz, portanto, como autoridade representativa da Justiça, buscar o aclaramento de questões distorcidas, fortalecendo a credibilidade da instituição judiciária.

É necessário, tanto para a população quanto para o magistrado, desenvolver um espírito crítico em relação a toda e qualquer informação ou conteúdo que se receba, analisando o contexto e verificando se o texto apresenta qualidade de redação, quem é o autor, se foi reproduzido na imprensa tradicional, enfim, o que chamo de checagem da notícia.

Os avanços tecnológicos se dão numa velocidade absurdamente maior do que a capacidade de adequação do Poder Judiciário para coibir os abusos. Como a desinformação é multissetorial, transversal e, pois, afeta todos os setores da sociedade, enfrentá-la é responsabilidade de todos. Todos os segmentos, inclusive o dos meios de comunicação, devem criar mecanismos que, aliados às normas jurídico-administrativas, sejam mais eficientes no combate a esse mal.

O CNJ e o STF, principalmente, têm se debruçado incessantemente sobre esse problema por meio da campanha #FakeNewsNão e do Painel de Checagem de Fake News, que traduzem exemplos das principais medidas hoje disponíveis a quem se propõe a enfrentar a desinformação, qual seja, a educação midiática da população, para conscientizá-la sobre a existência do problema e informá-la sobre maneiras de não se tornar meio de propagação de desinformação e de não ser prejudicada por ela.

 é desembargadora do TRT-4, conselheira do CNJ, presidente da Comissão Permanente de Comunicação do Poder Judiciário do CNJ, mestre em Direitos Sociais e Políticas Públicas pela UNISC e doutoranda em Ciências Jurídicas pela Universidad del Museo Social, UMSA, Argentina.

Revista Consultor Jurídico, 19 de maio de 2020, 13h06

Categorias
Notícias

Barreto e Flores: A relação entre racismo, violência e ensino jurídico

Buscaremos responder a essa pergunta a partir de um episódio ocorrido no dia 11 de maio envolvendo a postagem de uma conhecida escola preparatória para concursos públicos na rede social Instagram. Essa escola, contando com cerca de 1,2 milhão de seguidores somente nessa rede social, utilizou-se de uma questionável estratégia de marketing. O post, já apagado da página oficial da escola, trazia um vídeo no qual um homem negro, sem camisa, carregava uma jovem, branca, aparentemente também sem roupa, em seus ombros. O sujeito aparecia seguido por diversos homens, todos negros, todos descamisados. Na captura da imagem aparecia, como legenda, sobre a cabeça da jovem, a expressão “concurseiro”. Os homens, por sua vez, apareciam identificados com a legenda “Examinadores do Cespe”. A imagem parecia assim sugerir que os homens a levavam para um quarto para violentá-la. Depreende-se a violência não apenas pelo conteúdo do vídeo, mas pelo nome do local atribuído pela escola no Instagram: “Casa da Dor e do Sofrimento” [1].

O racismo é perpetrado diariamente de diferentes modos, revestindo-se dos mais variados formatos. Este lamentável episódio, por exemplo, representa um caso típico de “racismo recreativo”, expressão utilizada por Adilson Moreira para denominar aquelas práticas que expressam o desprezo por minorias raciais sob a forma de humor [2]. Moreira, ao longo dessa obra, vai nos mostrar como o racismo é um fenômeno complexo, marcado por diversas dimensões (social, psicológica, comunicacional…) que não devem ser ignoradas.

Ora, postagens como essa buscam normalizar e naturalizar, por meio do recurso ao humor, as mais diversas representações discriminatórias. Nesse caso em particular, na descrição do vídeo, a escola sugere que o concurseiro estabeleça aquilo que denomina de “retaguarda de conhecimentos” (retaguarda, no caso, sublinhe-se, como sinônimo de bunda, traseira) para que “aguente a profundidade com que a banca introduz os conteúdos e as diversas posições doutrinárias”  banca de examinadores representada pelos homens negros. “E aí”, dizem os autores do post, “…a situação fica preta”. E, para o concurseiro, “não passar por isso e nem levar trolha na prova”, a escola sugere que seus alunos compareçam à live marcando aqueles amigos que já passaram por este “momento tão doloroso”.  

Vale observar como, em uma única postagem, a escola traz diversas representações problemáticas. De um lado, discrimina gênero, ao retratar a mulher como um ser frágil, indefeso, simbolizado pela jovem branca. De outro, discrimina raça, ao relacionar a presença de negros a dificuldades (“a situação fica preta…”) e à dor perpetrada pelos estupradores na “casa da dor e do sofrimento”. Assim, a escola recomenda que, para que não sejam violentados e sucumbam (“levar trolha na prova”), os concurseiros assistam às lições ministradas pelos professores. “Trolha” é uma colher utilizada para rebocar paredes, muros, remetendo, assim, ao ofício de pedreiros. E, embora possua outros nobres e louváveis significados, trolha, nesse contexto, possui uma conotação negativa: remete a surra, briga e dor.

Como fica estranho uma escola preparatória para concursos dirigida que está à formação de futuros delegados, juízes, etc. ser enquadrada no crime de racismo (Lei Nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989), a postagem foi rapidamente apagada após a repercussão negativa em meio aos usuários do Instagram. Contudo, sabemos, a internet é um bom repositório de lembranças. Sejam boas ou más.

No caso em análise, mesmo depois de apagado o infeliz post, o episódio foi mitigado por meio de deboche dos administradores do Instagram da escola ante os comentários inflamados de usuários e usuárias que viam, na postagem, expressões claras de racismo e sexismo. Mitigações, do ponto de vista dos “Estudos Críticos do Discurso” de van Dijk [3], podem ser entendidas como formas de negação do racismo. Ou seja, amenizam-se, minimizam-se ou empregam-se eufemismos para descrição das próprias ações negativas. As críticas dos membros do Instagram foram, assim, classificadas como “mimimi” pela própria escola [4].

Segundo Joana Plaza Pinto, a expressão “mimimi” pode facilmente ser “substituída por diminuir o ato de fala de uma pessoa'”, se não aceitamos o mentalismo internalista da expressão “manifestação de ideias” [5]. Ou seja, práticas de racismo e sexismo são muitas vezes entendidas como choro ou ranço dos descontentes. Mas não se trata disso, naturalmente. Estamos diante de claras violações a direitos humanos embora saibamos que os direitos humanos também são entendidos como “mimimi” por muitas pessoas, inclusive juristas. Porém, não podemos esquecer que estratégias de mitigação entram em campo geralmente naquelas “situações sociais nas quais as normas relevantes são mais fortes. Desse modo, podemos presumir que quanto mais rígidas forem as normas contra a discriminação e o racismo mais pessoas tenderão a recorrer a negações e também a mitigações” [6].

Mas o que leva um fato como esse ocorrer em um estabelecimento educativo, que deveria dar exemplo em termos de educação? Trata-se de um fenômeno psico-social que revela um grave problema educacional, que afeta todas as suas modalidades. Nessa perspectiva, talvez dois dos principais aspectos dessa problemática sejam a banalização da importância da educação e a banalização das manifestações autoritárias, discriminatórias e preconceituosas [7].

A banalização da educação se revela na medida em que ela não é explorada em sua íntegra. Desde os gregos, pode-se conceber a educação basicamente em três perspectivas complementares: a) a educação técnica; b) a educação ética; e c) a educação política.

Em pleno século XXI, um dos principais equívocos é a educação ser simplificada e reduzida predominantemente aos seus aspectos técnicos. Ao acentuar basicamente um aspecto parcial, a técnica, a tendência é de se instrumentalizar processos, desumanizando as relações, do ponto de vista de reconhecer o outro como um igual na relação.

A filosofia, através da qual se poderia pensar as perspectivas éticas e políticas, é muitas vezes menosprezada e esvaziada em sua importância. Essa instrumentalização afasta todos os questionamentos que eventualmente poderiam revelar as insuficiências e distorções no processo de ensino, como no caso relatado, as diversas manifestações de violências simbólicas contra negros e mulheres [8].

O problema é que qualquer processo de ensino que careça de um suporte reflexivo filosófico não permite nem que se compreenda as implicações de uma questão mais complexa. O que muitas vezes ocorre são tentativas de minimizar a gravidade das questões, como sinalizamos anteriormente. Isso, além de revelar traços de discursos marcadamente autoritários, também demonstra uma grande incapacidade compreensiva, observada na tentativa de normalização e naturalização de posturas absurdas, preconceituosas e autoritárias.

Convém recordar aqui à famosa frase de Bertold Brecht “a cadela do fascismo está sempre no cio”, chamando atenção sobre o fantasma do fascismo que pode sempre estar rondando silenciosamente as consciências exaustas pelas crises políticas e sociais, que aprisionam as suas insatisfações, aguardando alguém para culpar e descarregar toda energia de ódio e agressividade. Da mesma forma, Umberto Eco nos chama atenção mencionando que “o Ur-Fascismo ainda está ao nosso redor, as vezes em trajes civis” [9]. E continua alertando que “o Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas novas formas a cada dia, em cada lugar do mundo” [10].

Apesar dos avanços em legislações sobre direitos humanos, tanto em âmbito nacional como internacional, o ser humano parece ainda estabelece uma animalidade que volta e meia emerge e se expressa através das mais diversas formas de violência, paradoxalmente revelando uma estranha atração pelo prazer com a dor do outro. Isso é mais um indicativo de que vivemos um contexto autoritário, que gera empoderamento de personalidades violentas desencadeando as mais variadas manifestações de ódio e descaso com as diferenças [11].

Para enfrentar esses desafios, convém também recuperar as reflexões trazidas por Theodor Adorno em sua obra “Educação e Emancipação”, que traz o texto cujo título é: “Educação após Auschwitz“. Já no início do texto, Adorno afirma que “qualquer debate acerca de metas educacionais carece de significado e importância frente a essa meta: que Auschwitz não se repita” [12]. Sugere a importância de pensar a educação concebendo toda a conjuntura e estrutura social, que por sua vez compreende inclusive condições materiais e estruturais.

Nesse sentido temos a oportunidade de constatar que uma educação meramente técnica pode em si ser uma violência ao desenvolvimento humano por negligenciar outras dimensões da educação e condenar o aluno a uma educação para manter certa ignorância, que, por sua vez, impede o desenvolvimento mais pleno e complexo, algo que fará falta no futuro. Mas talvez possa ser tarde.

Para tanto, é preciso de um ensino jurídico comprometido com o verdadeiro conhecimento (e não com fórmulas prontas, decorebas e piadas) a fim de esclarecer tanto sobre direitos e deveres do cidadão, como também sobre aspectos éticos e morais.

Assim, pode ser possível se superarem eventos cada vez mais frequentes de demonstração daquilo que Hannah Arendt definiu como a banalidade do mal [13]. É preciso, pois, de uma educação em geral e, sobretudo, de um ensino jurídico capaz de ensinar para o desenvolvimento de cidadão emancipado, que possa se comprometer tanto com a valorização dos direitos fundamentais, como com a melhoria de estruturas e instituições que não admitem em seus quadros apenas bons técnicos, mas cidadãos com boas noções sobre valores éticos e morais.

Para que não precisemos ver violência, discriminações e violações de direitos justamente por parte de quem deveria evitá-las, devemos alertar para o perigo da banalização do ódio. Devemos exigir a responsabilidade e o respeito com as diferenças. Essa é uma condição fundamental e básica quando se pensa em desenvolver a necessária capacidade de conviver com o outro em um contexto civilizatório.

 é professor convidado da Escola de Direito da Universidade do Minho, Portugal, e doutor em Direito.