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Karina Ramalho: STF permite a homens homossexuais doar sangue

A decisão é importantíssima não apenas para o público LGBTQI+, mas, sim, para toda a sociedade, afinal, nunca se sabe quem será o próximo a depender de uma doação sanguínea nos hemocentros do país.

O trâmite legal
No início da década de 90, o Ministério da Saúde editou a Portaria nº 1.376, a qual restringia a doação de sangue por homossexuais. Na época, a justificativa decorria da preocupação com o vírus HIV, o qual se alastrou rapidamente na década de 80.

Em 2002, a Anvisa alterou essa restrição para temporária, pontuando que os homossexuais poderiam doar sangue, exceto os homens que mantiveram relações sexuais com outros homens nos últimos 12 meses. Essa restrição foi reiterada na Resolução nº 153 de 2004.

O texto foi bastante criticado e em 2011 o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº 1.353, a qual no seu §5º afirmava: A orientação sexual (heterossexualidade, bissexualidade, homossexualidade) não deve ser usada como critério para seleção de doadores de sangue, por não constituir risco em si própria”.

Essa redação foi um avanço nos direitos humanos, mas essa vitória durou por pouco tempo, já que em 2014 a ANVISA publicou a Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) nº 34, a qual mantinha a inabilitação de homens que se relacionaram sexualmente com outros homens nos 12 meses que antecediam a coleta de sangue.

Para sanar o aparente conflito entre as recomendações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária e o Ministério da Saúde, foi publicada a Portaria nº 158 de 2016, a qual tinha o intuito de redefinir o regulamento técnico dos procedimentos homoterápicos definidos pelo Ministério da Saúde.

Contudo, a redação da referida portaria foi incoerente e paradoxal ao manter a vedação a qualquer tipo de discriminação por orientação sexual e, posteriormente, excluir os homens homossexuais ativos da habilitação para doar sangue.

No mesmo ano, começou a tramitar no STF uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) dessas normas da Anvisa e do Ministério da Saúde. Contudo, em 2017 o julgamento foi suspenso e retomado em maio de 2020.

A restrição
A retomada do julgamento ocorreu a pedido da Defensoria Pública da União, a qual solicitou ao STF agilidade para a votação dessa pauta, visto que em razão da pandemia do novo coronavírus o número de doadores de sangue reduziu drasticamente nos homocentros ao redor do Brasil.

Uma pesquisa realizada em 2017 pela ONG All Out divulgou que cerca de 19 milhões de litros de sangue eram desperdiçados anualmente no país. Essa pesquisa considerou todos os homens que atendem a todos os requisitos para a doação, mas por terem relações sexuais com outros homens são considerados inabilitados.

Mas, afinal, qual a origem dessa restrição? Explico. Voltemos ao final da década de 70. Após a revolução sexual e sem o risco de gravidez, os homossexuais, especificamente os do sexo masculino, eram os indivíduos que mais tinham relações desprotegidas.

Na década seguinte, com o avanço da AIDS, os homens homossexuais compunham o grupo mais atingido pela doença, o que os colocava em grupo de risco naquela época. Mas, com o avanço da doença, várias outras pessoas foram contaminadas independentemente de serem crianças, homens, mulheres, etc.

Ainda há pessoas que se esquecem do óbvio: nenhum vírus escolhe contaminar alguém devido à orientação sexual! O avanço da medicina e da tecnologia comprovou que o HIV pode ser transmitido por sangue, secreção vaginal, leite materno e sêmen, sendo que o risco de transmissão no sexo anal (que não é restrito às relações homossexuais) é muito maior.

Visto que o sangue é um meio de transmissão do vírus e de tantas outras doenças, é, sim, muito importante realizar uma triagem séria com todos os possíveis doadores. As perguntas que buscam identificar um comportamento de risco são necessárias, como por exemplo quanto ao uso de preservativo. Assim como é importante testar o sangue de qualquer possível doador, como dispõe a lei.

É importante relembrar que se deve averiguar um comportamento de risco, o que nada tem a ver com a orientação sexual da pessoa. Uma pessoa que está apta para doar sangue após passar por todas a triagem, responder todas as perguntas feitas e ainda ter o seu sangue testado não pode ser considerada uma pessoa de risco apenas pela sua orientação sexual.

Essa restrição ofendia direitos fundamentais assegurados a todos na Constituição Federal, tal como o direito à igualdade, e, mais do que isso, ofendia princípios de um Estado Democrático de Direito que visam a proteger a dignidade da pessoa humana, além de tratados internacionais que o país assinou e se comprometeu a cumprir.

Conclusão
A orientação sexual homoafetiva não coloca ninguém em grupo de risco para doar sangue ou para ser mais propensa a passar determinada doença. O maior risco oferecido a esse grupo é ter que lidar com tanta ignorância que grande parte da sociedade ainda tem.

Não é o sangue de um homem sexualmente ativo, independentemente de quem seja a companhia dele. O que adoece é esse preconceito que ainda existe na nossa sociedade e que infelizmente ainda é sustentado por normas discriminatórias que ainda existem no nosso ordenamento jurídico.

Essa decisão do Supremo Tribunal Federal deve, sim, ser comemorada, mas é uma pena que tenha chegado somente neste ano de 2020.

 é advogada, especialista em segurança pública e atuante na área de Direito homoafetivo e de Direito das mulheres, com ênfase nas questões de gênero sob a perspectiva criminal.

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Interpretações equivocadas sobre intervenção militar

Já havia criticado o jornalista Vladimir Safatle (ver aqui) há dois anos, quando este, em artigo na Folha de S.Paulo, errou na interpretação do artigo 142 da CF que trata da “intervenção das forças armadas”, assunto que voltou agora pela pena de Ives Gandra Martins (ver aqui), quem igualmente comete perigoso erro hermenêutico, só que não pelas mesmas razões de Safatle.

Safatle remete o leitor ao artigo 48 da Constituição de Weimar, e ao seguir no sentido do reforço das narrativas históricas daquelas mesmas pessoas que se voltaram contra a república alemã nos anos 30, chega a uma interpretação absurda do artigo 142 da Constituição brasileira.

De todo modo, a critica que aqui faço vale para as duas posições: a de Gandra soa quase que como uma ameaça ao STF, porque escrita logo após a decisão do ministro Alexandre Moraes no caso Ramagem. Vejamos com cuidado:

Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema”.

Com todo o carinho e respeito que merece o professor Ives Gandra, digo: se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Explicarei isso na sequência.

No referido artigo que publiquei na Folha, critiquei fortemente a posição de Safatle, a qual, além de descabida, é estranha porque parte de um campo oposto ao da direita política. No específico, Safatle ignora o que seja interpretação sistemática. Faz um olhar textualista, algo sem sentido no Direito.

Ao tomar para si mesmo que o artigo autoriza intervenção militar interpretação essa que é feita pelos próprios setores a quem ele crítica —, Safatle contribui ele mesmo para essa verdadeira fraude à Constituição, que é fazer desse dispositivo uma espécie de “bomba relógio” ou botão de autodestruição. Sim, o texto de Safatle dá aos intérpretes, por ele criticados, foros de plausibilidade. No fundo, concorda com Gandra.

Bem, espero que Safatle tenha mudado de opinião. Com certeza, já o fez. De todo modo, a crítica que aqui faço vale, como disse, para toda e qualquer interpretação desviante que é feita ao artigo 142 da CF. À época, Safatle fez uma espécie de recuperação ideológica do que quis criticar.

Não, o artigo 142 da Constituição não autoriza que quaisquer poderes constitucionais possam requerer diretamente às Forças Armadas o seu emprego para “garantia da lei e da ordem” (sic), de tal modo que “o que virá depois” estaria “legalizado” de acordo com a própria Constituição. Essa leitura é rasa e errada.

O que diz o artigo 142?

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Assim, há de se ver que:

Primeiro, o artigo 142 determina que é o presidente da República a autoridade suprema sob a qual estão submetidas as Forças Armadas, consagrando o poder civil. Sim, poder civil.

Segundo, a lei e a ordem a serem garantidas são as das próprias instituições democráticas (Título V da CF). Esse é o ponto chave. As FAs não são o fiel da democracia. Ou seja, elas não podem intervir a qualquer momento. Uma leitura dessas é totalmente inconstitucional e antirrepublicana.

Terceiro, o parágrafo único do artigo 142 prevê que lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas no emprego das Forças Armadas (a LC nº 97, artigo 15), que não apenas submete esse emprego a uma cadeia de comando, civil no seu topo, assim como estabelece um procedimento a ser estritamente cumprido para isso e, por fim, determina o caráter somente subsidiário desse emprego, para a garantia da segurança pública, termos em que “lei e ordem” devem ser corretamente interpretadas. “Lei e ordem” não significam “autorização para intervenção golpista”.

Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e lei aqui determinam.

Ou seja, as interpretações simplificadoras do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. Por isso a minha crítica a Safatle. A solicitação dos poderes é feita sempre ao presidente da República, que é o comandante das Forças Armadas e que deve determinar a atuação, nos casos e nos termos do previsto constitucionalmente para o estado de defesa e do estado de sítio e de acordo com a lei complementar. O fato de, circunstancialmente, o Poder Executivo estar ocupado por alguém que tenha simpatia por AI-5 e quejandos, não pode, nem de longe, dar azo a uma hermenêutica do retrocesso democrático.

Ainda à época em que Safatle escreveu o texto, os professores Marcelo Cattoni, Emilio Meyer e Tomas Bustamante produziram um alentado artigo para esta ConJur, intitulado “A Constituição protege o sistema político contra qualquer intervenção militar“, quando disseram, inclusive, que o texto de Safatle era um tiro no próprio pé.

Também o professor Bruno Galindo produziu certeiro texto ao dizer que, se observarmos pelo aspecto hermenêutico-jurídico, simplesmente não existe qualquer possibilidade de intervenção militar “constitucional” nos moldes que têm sido defendidos. O próprio teor literal se assim se quiser tomar um textualismo do artigo 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver na Constituição outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de conselhos como o da República e o de Defesa Nacional (artigos 89 a 91), tendo os comandantes das FAs e o ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas função opinativa, cabendo a decisão superior ao presidente da República. Assim, por todos os ângulos, uma interpretação do artigo 142 que autorize uma intervenção militar é um arrematado absurdo (ver aqui).

Ao fim e ao cabo, resta alertar que artigos como o de Safatle, Ives Gandra e Jorge Zaverucha (aqui) dão azo às lendas urbanas. Já ouvi um general, radialistas e gente de TV dizendo a mesma coisa: a de que as Forças Armadas têm autorização para intervir “no caos”.

Pois é. Lendas se formam assim. Alimentemo-las e lá vem bomba.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).