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Streck e Giannakos: Pode o juiz dispensar prova para reduzir aluguel?

No dia 30 de abril de 2020, foi publicado artigo sobre a importância “cumprir a letra da lei”. Neste, sustenta-se que quando o judiciário se nega a cumprir um claro texto e não o declara inconstitucional, simplesmente lhe nega a validade. Como se fosse nulo, írrito, nenhum o texto da lei”.

Em outro texto publicado, em 26 de março de 2020, faz-se menção à decisão do juiz do Rio de Janeiro que permitiu os cultos da igreja de Silas Malafaia, mesmo no meio do estado de calamidade provocado pelo coronavírus.

Em momentos crise e extrema dificuldade (como o que vivemos), o Direito deve ser utilizado justamente para nos auxiliar a vencer a crise e não ser desvirtuado para criar ainda mais problemas.

Ou seja, não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Para não esquecer: Foram criados os artigos 489, §1º e 926, ambos do CPC/2015. No caso do primeiro, o legislador teve como intuito criar parâmetros para a decisão judicial e requisitos para que deveriam constar na decisão tomada pelo julgador. No caso do segundo, para exigir dos Tribunais e dos juízes a uniformização da sua jurisprudência mantendo-a estável, íntegra e coerente.

A integridade é a exigência de que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, em uma perspectiva de ajuste de substância. A integridade impede que o judiciário use dois pesos e duas medidas.

A coerência, por sua vez, é a necessidade de, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Da mesma forma, haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário.

O julgador não poderá utilizar-se de argumentos que não estejam coerentemente sustentados, o que inclui, como pode de partida, uma autovinculação com aquilo que antes se decidiu.

Neste sentido, pode-se dizer que no CPC/2015 não há espaço para decisões personalistas com que estivesse criando o direito a partir de um grau zero. O “livre convencimento” (que foi retirado do texto do CPC) não é o mesmo que decisão fundamentada. A segurança jurídica e a proteção da confiança e da isonomia somente fazem sentido se as decisões obedecerem à coerência e à integridade.

No entanto, é muito comum vermos na prática ambos os artigos serem negligenciados pelo julgador. O resultado disso é as diversas decisões sobre a mesma temática com resultados distintos.

Em pesquisa realizada recentemente ao analisar os volumes de processos ajuizados no Tribunal de Justiça de São Paulo entre janeiro e março de 2019 e no mesmo período de 2020, verificou-se o aumento em 20% no ajuizamento de ações judiciais na quinzena que imediatamente antecedeu o fechamento dos tribunais, indicando, já naquele momento, que o cenário de pandemia incitaria o maior volume de processos. Passada a fase inicial de isolamento absoluto, ou, com mais razão, prolongado o isolamento por mais dias, dilatando, em igual proporção, os efeitos nefastos à economia, os números voltam a crescer de modo absolutamente preocupante.

Em decisão recente proferida em comarca localizada na Serra Gaúcha, o juízo reconheceu que a pandemia instalada no país, com curva acentuada de contaminação em razão da Covid-19, teria desequilibrado contrato de locação comercial firmado em agosto de 2019, viabilizado a redução do locativo mediante via judicial.

Em sua conclusão, determinou que o valor locatício fosse reduzido de R$ 5.250 para R$ 1.100 pelo período de 05 meses. Uma redução temporária para 20,95% do valor locativo inicial.

Na sua fundamentação, o juízo sustentou a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19.

Em outras decisões judiciais já veiculadas pela mídia, por sua vez, o Poder Judiciário tem concedido reduções dos locativos nos mais diversos percentuais, como 60%, 50% e 70%. Em outros, em que os locatários requereram a isenção do pagamento, a justiça paulista negou o pedido. O TJ/SP já se manifestou sobre a temática, revertendo decisão que havia indeferido pedido de tutela de urgência em primeiro grau e concedendo a redução de 50% do locativo em segundo grau.

Mas, por qual motivo um juiz determina uma redução quase 80% de um aluguel? Qual é a prognose? Qual é a diferença deste caso para o outro em que houve uma redução de 50%? Ou uma redução de 60%?

Será que com a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19, por si só, justificaria o arbitramento da redução sem a produção de prova específica do prejuízo? Como o juízo deve estipular o percentual de redução? Tira de que lugar esse percentual? De seu subjetivismo?

Dito de outra forma, no momento em que o juiz arbitra um percentual de redução do locativo, sem a realização de prova específica pelo autor, ele não estaria agindo de forma discricionária-arbitrária? A resposta é (deveria) ser óbvia.

O juiz pode fazer coisas, mas não pode tudo. E as que pode, deve fundamentar. E essa fundamentação não pode ser qualquer uma. Ou nenhuma. Aliás, aqui basta que invoquemos os três primeiros incisos do artigo 489, parágrafo 1º. do CPC:

Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

Isto para começar!

Seguimos. Que a incidência do coronavírus nas relações contratuais não possui precedentes é indiscutível. Porém, o ponto crucial é em que medida e a profundidade em que o juiz pode modificar a relação contratual já existente e pré-estabelecida entre as próprias partes.

A racionalidade jurídica vem sendo substituída por “racionalidades instrumentais”, constituída de opiniões e juízos morais. Ou seja, quais os parâmetros para estabelecer o percentual? Seria o caso de ocorrência do famoso “decido conforme a minha consciência”?

No momento em que a coerência e integridade são ignorados, os incentivos judiciais tornam-se protagonistas.

Neste ponto, o que se propõe é a possível contribuição da AED (Análise Econômica do Direito) para com a CHD (Crítica Hermenêutica do Direito).

Este debate ocorreu, em 2015, entre os Professores Lenio Streck, Alexandre Moras da Rosa e Aury Lopes Junior.

Do ponto de vista econômico, no momento em as decisões judiciais veiculam a possibilidade de repactuação dos contratos de locação comerciais, ainda mais, sem critérios definidos, incentivam que boa parte dos locatários busquem este benefício mesmo que a sua situação fática específica não exija (“comportamento oportunista”). Do ponto de vista econômico, tais notícias dificultam justamente a cooperação pré-existente entre os envolvidos.

O que se cria na prática é uma reação em cadeia. Os locatários, incentivados pela ausência de coerência e integridade nas decisões judiciais, ajuízam ações revisionais dos contratos de locação com intuito de terem o mesmo benefício, mesmo que, em certos casos, o locatário sequer necessite da revisão. O Direito, que deveria pacificar e regular, acaba, por uma de suas pontas, incentivando o contrário.

O resultado de tudo isto é uma descrença no Judiciário. Alguns exemplos recentes demonstrar a concretização deste sintoma: i) um apelo à utilização da inteligência artificial nos processos judiciais, considerando, inclusive, a hipótese da substituição do juiz pela máquina; ii) a criação da figura dos negócios jurídicos processuais (art. 190, CPC).

Quanto ao primeiro, podemos trazer como exemplo os casos das ferramentas criadas pelos Tribunais de Justiça e Superiores, como o Radar (TJ/MG), que recentemente julgou um grande número de recursos de segundos; o Victor (STF), que ainda está em fase de aprimoramento; e o Poti (TJ/PE) que realizar bloqueios judiciais das contas de devedores em ações de execuções fiscais.

Quanto ao segundo, originário da experiência positiva tida pelas partes e advogados na arbitragem, possibilita uma maior participação das partes no processo, resultando numa comparticipação dos sujeitos processuais na construção da decisão que deva solucionar determinada ação judicial. A ideia é que as partes possam customizar o processo e readequá-lo para a maior adequação dos seus interesses. É possibilitado às partes estipulares mudanças no procedimento e convencionarem sobre seus ônus, poderes, faculdades, calendário processual, direito material e deveres processuais. O art. 190, parágrafo único, do CPC dispõe sobre as três hipóteses taxativas para impedir a validade dos negócios jurídicos processuais.

Portanto, a confiança no Judiciário já vem abalada. A legislação moderna já tem apresentado este sintoma e, pelo que se identifica na prática, a situação tende a piorar.

A solução: a volta dos juízes à fundamentação jurídica, ao Direito, à necessidade de uniformizar a sua jurisprudência (coerência e integridade viram para isso!!!), sob pena de, conforme dito no início do texto, negar validade à lei simplesmente pelo seu desuso proposital.


https://www.conjur.com.br/2020-abr-30/senso-incomum-tao-dificil-cumprir-letra-lei-art-212-cpp acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/senso-incomum-cada-cabeca-sentenca-tese-espantalho acessado no dia 10/05/2020.

STRECK, Lenio Luiz. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2014, p. 158.

https://www.conjur.com.br/2020-mai-11/leonardo-costa-achatemos-curva-acoes-judiciais

https://www.espacovital.com.br/noticia-37903-reducao-no-aluguel-valor-mensal-passa-r-5250-para-1100 acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-abr-27/juizes-proibem-reabertura-lojas-concedem-reducao-aluguel acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/interrupcao-atividades-nao-autoriza-suspensao-alugueis acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/liminar-permite-reducao-aluguel-pago-restaurante-epidemia

https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/interrupcao-atividade-nao-desobriga-empresa-pagar-aluguel?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook acessado em 10/05/2020

https://m.migalhas.com.br/quentes/326373/e-razoavel-reducao-de-50-no-aluguel-de-imovel-comercial-em-razao-da-pandemia acessado em 10/05/2020.

Oliver Williamson define-o utilizando uma célebre formulação: “By opportunism I mean self-interest seeking with guile”. O mesmo autor, ao conceituar o oportunismo, dispõe: “More generally, opportunism refers to the incomplete or distorted disclosure of information, especially to calculated efforts to mislead, distort, disguise, obfuscate, or otherwise confuse”. (WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. The Free Press, a Division of Macmillan Inc, 1985, p. 47).

https://www.conjur.com.br/2020-mai-01/santolim-giannakos-tomada-decisoes-momentos-crise

https://www.migalhas.com.br/depeso/319005/inteligencia-artificial-e-o-direito-uma-realidade-inevitavel

GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Negócios jurídicos processuais e análise econômica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 71.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

 é advogado, mestre e doutorando em Direito pela Unisinos. Sócio do escritório Giannakos Advogados Associados.

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Lenio Streck: Operar uma unha não exige anistia geral!

Resumo: Fazendo uma ironia, diria que o Estado de defesa ou de sítio são necessários somente se for com o objetivo de combater os fascistas que querem fechar o STF e o Congresso e que acampam na frente do STF. Mas nem para isso — com sarcasmo ou sem sarcasmo — essas medidas de exceção são necessárias. Basta um grito e eles saem correndo.

O jornalista Sergio Rodas produziu bela matéria sobre lockdown aqui na Conjur. Necessitamos de Estado de Defesa ou de Sitio para limitar atividades e restringir direitos de ir e vir?

No lockdown, em regra, as pessoas só podem ir à rua para fazer compras em supermercados e farmácias ou trabalhar em atividades essenciais. O primeiro caso ocorreu no Maranhão. A Justiça ordenou, em 30 de abril, que o estado e o município de São Luís implementassem o lockdown na região metropolitana da capital. Isso porque as medidas de isolamento social têm sido insuficientes para conter a propagação do coronavírus. Houve outras decretações.

O constitucionalista Pedro Serrano disse: Embora a Constituição só autorize expressamente a restrição dos direitos de ir e vir e de reunião nos estados de defesa e de sítio, não é necessário decretar um deles para instituir o lockdown, porque tais regimes excepcionais se aplicam melhor a situações de violência e comprometimento da ordem pública, e não são necessários em crises sanitárias.

Na visão dele, mecanismos como os estados de emergência e de calamidade pública — instituído pelo Congresso — são suficientes para combater o coronavírus. Serrano diferencia um momento de legalidade extraordinária — como o que vivemos devido à epidemia — de um estado de exceção. A legalidade extraordinária é a forma como o Estado Democrático de Direito reage a uma situação emergencial. Mas não há anomia (ausência ou suspensão de leis e direitos), como no estado de exceção. Na legalidade extraordinária, o Estado segue submisso à legislação e deve criar o mínimo possível de novas leis.

A ideia, pois, é solucionar os problemas com base no ordenamento jurídico em vigor. Concordam com Serrano os professores Gustavo Binebojm, Carolina Fidalgo. E eu também.

Não vejo a necessidade de tomarmos medidas drásticas como Estado de Defesa ou de Sítio, quando podemos resolver o problema com medidas menos rigorosas. Devemos reagir à emergência sanitária com, no máximo, aquilo que Pedro Serrano e eu estamos chamando de legalidade extraordinária.

Estado de Defesa e de Sítio são para outro tipo de situação. A ordem ou a paz social está em jogo no Brasil? Claro que não. Fazendo uma ironia, diria que o Estado de defesa ou de sítio são necessários somente se for com o objetivo de combater os fascistas que querem fechar o STF e o Congresso e que acampam na frente do STF. Mas nem para isso com sarcasmo ou sem sarcasmo essas medidas de exceção são necessárias. Basta um grito e eles saem correndo.

Ora, restrições a direitos são próprias e comuns das e nas democracias. Liberdades de ir e vir são a todo momento restringidas. Eventos cívicos, desportivos e coisas do gênero fazem com que as pessoas possam ser impedidas de circular por determinados lugares. Portanto, não parece difícil sustentar a tese da decretação de lockdown nos moldes em que vem sendo feito no Brasil. Ninguém pode ser compelido a fazer algo a não ser em virtude lei quer dizer também “por decreto”. De lockdown. Sim.

Adotar medidas drásticas sempre é arriscado. Vai que alguns aprendizes de ditador gostem… Portanto, o bicho não é tão feio quanto parece. Uma unha do pé, para ser arrancada ou tratada, por vezes nem necessita de anestesia, Por vezes, pequena anestesia local resolve. Não parece adequado arriscar a vida do paciente com uma anestesia geral quando meios alternativos de evitar a dor do paciente se apresentem suficientes dentro do protocolo.

O engraçado ou bizarro é que, muita gente que defende autoritarismo ou até mesmo AI5 — em que a liberdade é quase-nada (nula, nenhuma) — colocam-se, na discussão do lockdown, contra a sua decretação sem o Estado de Defesa ou de Sitio. Dizem, muitos, que isso é “totalitarismo”. Alguns dizem que é coisa de comunista. Ou seja, se for decretado Estado de Sítio, pode. Aí não tem problema de as liberdades serem restringidas. O ruim é restringir, em uma pandemia, o direito de as pessoas saírem na rua para se contaminarem. Talvez muita gente defenda um direito fundamental à contaminação.

Numa palavra: Em termos legais-constitucionais, não há qualquer exigência de Estado de sítio ou de defesa para restringir o direito de ir e vir. Todos os dias essas restrições são feitas até por portaria. Aeroportos restringem, estádios, ruas etc. Leis restringem liberdades. Então, qual seria o problema de, em meio a uma pandemia, via legalidade extraordinária, restringir direitos para salvar vidas? Aliás, decretar Estado de Sítio ou de Defesa seria desproporcional. No sentido mais cru da palavra “proporcionalidade” (lá do Código Prussiano).

Cartas para a redação.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

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Interpretações equivocadas sobre intervenção militar

Já havia criticado o jornalista Vladimir Safatle (ver aqui) há dois anos, quando este, em artigo na Folha de S.Paulo, errou na interpretação do artigo 142 da CF que trata da “intervenção das forças armadas”, assunto que voltou agora pela pena de Ives Gandra Martins (ver aqui), quem igualmente comete perigoso erro hermenêutico, só que não pelas mesmas razões de Safatle.

Safatle remete o leitor ao artigo 48 da Constituição de Weimar, e ao seguir no sentido do reforço das narrativas históricas daquelas mesmas pessoas que se voltaram contra a república alemã nos anos 30, chega a uma interpretação absurda do artigo 142 da Constituição brasileira.

De todo modo, a critica que aqui faço vale para as duas posições: a de Gandra soa quase que como uma ameaça ao STF, porque escrita logo após a decisão do ministro Alexandre Moraes no caso Ramagem. Vejamos com cuidado:

Não entro no mérito de quem tem razão (Bolsonaro ou Moro), mas no perigo que tal decisão traz à harmonia e independência dos poderes (artigo 2º da CF), a possibilidade de uma decisão ser desobedecida pelo Legislativo que deve zelar por sua competência normativa (artigo 49, inciso XI) ou de ser levada a questão — o que ninguém desejaria, mas está na Constituição — às Forças Armadas, para que reponham a lei e a ordem, como está determinado no artigo 142 da Lei Suprema”.

Com todo o carinho e respeito que merece o professor Ives Gandra, digo: se o artigo 142 pudesse ser lido desse modo, a democracia estaria em risco a cada decisão do STF e bastaria uma desobediência de um dos demais poderes. A democracia dependeria dos militares e não do poder civil. Explicarei isso na sequência.

No referido artigo que publiquei na Folha, critiquei fortemente a posição de Safatle, a qual, além de descabida, é estranha porque parte de um campo oposto ao da direita política. No específico, Safatle ignora o que seja interpretação sistemática. Faz um olhar textualista, algo sem sentido no Direito.

Ao tomar para si mesmo que o artigo autoriza intervenção militar interpretação essa que é feita pelos próprios setores a quem ele crítica —, Safatle contribui ele mesmo para essa verdadeira fraude à Constituição, que é fazer desse dispositivo uma espécie de “bomba relógio” ou botão de autodestruição. Sim, o texto de Safatle dá aos intérpretes, por ele criticados, foros de plausibilidade. No fundo, concorda com Gandra.

Bem, espero que Safatle tenha mudado de opinião. Com certeza, já o fez. De todo modo, a crítica que aqui faço vale, como disse, para toda e qualquer interpretação desviante que é feita ao artigo 142 da CF. À época, Safatle fez uma espécie de recuperação ideológica do que quis criticar.

Não, o artigo 142 da Constituição não autoriza que quaisquer poderes constitucionais possam requerer diretamente às Forças Armadas o seu emprego para “garantia da lei e da ordem” (sic), de tal modo que “o que virá depois” estaria “legalizado” de acordo com a própria Constituição. Essa leitura é rasa e errada.

O que diz o artigo 142?

“As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem”.

Assim, há de se ver que:

Primeiro, o artigo 142 determina que é o presidente da República a autoridade suprema sob a qual estão submetidas as Forças Armadas, consagrando o poder civil. Sim, poder civil.

Segundo, a lei e a ordem a serem garantidas são as das próprias instituições democráticas (Título V da CF). Esse é o ponto chave. As FAs não são o fiel da democracia. Ou seja, elas não podem intervir a qualquer momento. Uma leitura dessas é totalmente inconstitucional e antirrepublicana.

Terceiro, o parágrafo único do artigo 142 prevê que lei complementar estabelecerá as normas gerais a serem adotadas no emprego das Forças Armadas (a LC nº 97, artigo 15), que não apenas submete esse emprego a uma cadeia de comando, civil no seu topo, assim como estabelece um procedimento a ser estritamente cumprido para isso e, por fim, determina o caráter somente subsidiário desse emprego, para a garantia da segurança pública, termos em que “lei e ordem” devem ser corretamente interpretadas. “Lei e ordem” não significam “autorização para intervenção golpista”.

Por fim, todos sabemos que, em uma democracia, não há de se falar em autonomia da parte de quem porta armas, como polícias e forças armadas. Por essa razão é que somente um poder eleito poderá dispor da palavra final, como Constituição e lei aqui determinam.

Ou seja, as interpretações simplificadoras do artigo 142 devem ser abortadas ab ovo. Por isso a minha crítica a Safatle. A solicitação dos poderes é feita sempre ao presidente da República, que é o comandante das Forças Armadas e que deve determinar a atuação, nos casos e nos termos do previsto constitucionalmente para o estado de defesa e do estado de sítio e de acordo com a lei complementar. O fato de, circunstancialmente, o Poder Executivo estar ocupado por alguém que tenha simpatia por AI-5 e quejandos, não pode, nem de longe, dar azo a uma hermenêutica do retrocesso democrático.

Ainda à época em que Safatle escreveu o texto, os professores Marcelo Cattoni, Emilio Meyer e Tomas Bustamante produziram um alentado artigo para esta ConJur, intitulado “A Constituição protege o sistema político contra qualquer intervenção militar“, quando disseram, inclusive, que o texto de Safatle era um tiro no próprio pé.

Também o professor Bruno Galindo produziu certeiro texto ao dizer que, se observarmos pelo aspecto hermenêutico-jurídico, simplesmente não existe qualquer possibilidade de intervenção militar “constitucional” nos moldes que têm sido defendidos. O próprio teor literal se assim se quiser tomar um textualismo do artigo 142 afasta a possibilidade de ação autônoma das Forças Armadas sem a subordinação a um poder civil. Mas consideremos outros elementos hermenêutico-constitucionais. O princípio da unidade da Constituição e o elemento sistemático permitem ver na Constituição outros dispositivos como aqueles que estabelecem as regras da intervenção federal, estado de defesa e estado de sítio (artigos 34, 36, 136 a 141), bem como a existência de conselhos como o da República e o de Defesa Nacional (artigos 89 a 91), tendo os comandantes das FAs e o ministro de Estado da Defesa assento permanente neste último, mas função opinativa, cabendo a decisão superior ao presidente da República. Assim, por todos os ângulos, uma interpretação do artigo 142 que autorize uma intervenção militar é um arrematado absurdo (ver aqui).

Ao fim e ao cabo, resta alertar que artigos como o de Safatle, Ives Gandra e Jorge Zaverucha (aqui) dão azo às lendas urbanas. Já ouvi um general, radialistas e gente de TV dizendo a mesma coisa: a de que as Forças Armadas têm autorização para intervir “no caos”.

Pois é. Lendas se formam assim. Alimentemo-las e lá vem bomba.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).

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Streck: Moro e o paradoxo: todos os cretenses são mentirosos! Logo…

Tese (vinculante): Impossível sair de um paradoxo!

Não se fala de outra coisa. Oito horas de depoimento — uma montanha de palavras — produziram um ratinho (parafraseando Moro quando confrontado com os vazamentos do site The Intercept).

Moro, na verdade, caiu em um paradoxo. O que é um paradoxo? É algo sobre o qual não podemos decidir. O mais famoso é o “Paradoxo de Epimênides”: “Um cretense disse: ‘todos os cretenses são mentirosos’”. O Apóstolo Paulo (Atos, 17), usando-o, disse: se este enunciado é verdadeiro, é falso, já que um cretense mentiroso o fez.

O famoso Liar Paradox explica o ratinho produzido pela montanha de palavras. Afinal, como eu já havia profetizado em entrevista ao Estadão, se Moro prova o que denunciou de Bolsonaro, auto incrimina-se. Portanto, se vence, perde. Se Bolsonaro fez tudo o que Moro disse que fez, então Moro sabia. Se sabia, prevaricou, no mínimo. Consequência:  desdisse-se. Tergiversou. Eis o ratinho que se esgueirou por entre milhares de palavras.

Portanto, Bolsonaro pode ficar tranquilo: Rabbit does not come out of this bush (na minha terra se diz “desse mato não sai coelho”). Mas no meio de tanta letrinha, exsurgem algumas coisas. Apenas duas, porque, em termos de incriminação stricto sensu do presidente, parece unanimidade na comunidade jurídica que Moro disse nada (e eu insisto: não podia dizer, mesmo, justamente por causa do “fator Epimênedes”).

E quais são as duas questões? A primeira: ficou feio para a delegada da PF e para os procuradores da República, sempre tão ciosos com depoimentos, permitirem que o ex-juiz desse uma de “ainda juiz” durante o longuíssimo depoimento (em 28 anos de Ministério Público, nunca tive um depoimento de mais de duas horas).

Por exemplo, Moro disse que destruiu mensagens trocadas com Bolsonaro, dizendo-as desimportantes. Como lembrou Pedro Serrano, se algum depoente da Lava Jato falasse isso seria preso cautelarmente por obstruir a investigação. Afinal, trata-se de um telefone oficial e de trocas de mensagens com nada mais, na menos, do que o presidente da República, o que não é pouca coisa, pois não? E a delegada e os procuradores aceitaram tudo isso passivamente, reverenciando o depoente. Digam-me: é o depoente quem diz o que é importante para uma investigação? Criaram — ativisticamente — um inciso novo para artigo do CPP que trata do interrogatório? Algo como “o juiz pedirá ao réu que diga aquilo que, no seu entendimento, considera importante para o processo”.

E Moro complementou: “Que o Declarante esclarece que tem só algumas mensagens trocadas com o Presidente, e mesmo com outras pessoas, já que teve, em 2019, suas mensagens interceptadas ilegalmente por HACKERS, motivo pelo qual passou a apagá-las periodicamente (sic)”. Pronto. Então as mensagens interceptadas existiram? Ele então tinha no seu celular (ou era o celular do Estado?) mensagens dos tempos de juiz, certo? Em 2019 foram haqueadas. Sem querer fazer exercício de lógica, se isso, então aquilo…

O que se lê é que, passando por cima dos seus interrogadores e assumindo o comando da audiência, o depoente diz que não disponibilizaria mais mensagens de seu telefone porque (i) tem caráter privado (inclusive as eventualmente apagadas) ou (ii) se trata de mensagens trocadas com autoridades públicas, mas sem qualquer relevância para o caso, “no seu entendimento”.

“No seu entendimento?” Vamos tentar entender isso: Moro é o juiz do inquérito ou o depoente? E os Procuradores deixaram por isso mesmo?

Outra de cabo de esquadra foi a constante resposta “perguntem a ele, o Presidente”. Se Moro interrogasse Moro, imaginem o que aconteceria com um réu se assim falasse…

Se o Brasil não existisse, teria que ser inventado. Catilina patientia nostra, até quando os fins justificarão os meios?

O que dizer para os nossos alunos de processo penal e direito constitucional e de deontologia jurídica?

E pensar que Moro saiu do Ministério recitando o conceito de rule of law. Vejamos então o conceito de rule of law e comparar com os atos do Moro, como juiz e ministro. O rule of law, segundo o conceito clássico, é o que chamamos no mundo continental de Estado de Direito, o mecanismo, processo, instituição, prática ou norma que apoia (sustenta) a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, assegura uma forma não arbitrária de governo e impede o uso arbitrário do poder pelos órgãos estatais. Que tal?

Comecei com Paulo e termino com Paulo. Em Coríntios 15.33, Paulo cita a comédia de Menandro:as más conversações corrompem os bons costumes”.

 é jurista, professor de Direito Constitucional, titular da Unisinos (RS) da Unesa (RJ).