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Corregedor nacional institui sistema eletrônico de apostilamento

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Corregedor nacional institui sistema eletrônico de apostilamento

O corregedor nacional de Justiça, ministro Humberto Martins, editou, nesta quarta-feira (17/6), normativo que institui o Sistema Eletrônico de Apostilamento (Apostil), voltado para a confecção, consulta e gestão de apostilamentos em documentos públicos, realizados em todas as serventias extrajudiciais do país.

123RFCorregedor nacional edita provimento que institui sistema eletrônico de apostilamento

De acordo com o Provimento 106, o sistema será disponibilizado, gratuitamente, pelo Conselho Nacional de Justiça, dotado de infraestrutura tecnológica necessária para a confecção, consulta e aposição de apostila, em documento público brasileiro.

Ao editar o ato normativo, o ministro Humberto Martins considerou a necessidade constante de aperfeiçoamento dos serviços extrajudiciais nos estados e no Distrito Federal para proporcionar a melhor prestação de serviço ao cidadão e destacou que foram realizados 73.392 apostilamentos durante o período de testes do sistema.

Cadastro

O cadastro no sistema Apostil deverá ser feito pela internet. É obrigatório o uso de certificado digital, de acordo com a Infraestrutura de Chaves Públicas Brasileira (ICP).

Somente será admitida como autoridade apostilante aquela devidamente cadastrada no sistema até o dia 3/8/20. Os apostilamentos realizados fora do sistema eletrônico, após o decurso do prazo, serão considerados inválidos.

Entretanto, os apostilamentos realizados até o dia 3 de agosto, fora do sistema Apostil, serão considerados válidos e poderão ser consultados no endereço eletrônico indicado na própria apostila. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.

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Revista Consultor Jurídico, 17 de junho de 2020, 14h51

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Marcelo Buhatem: Ministro Marco Aurélio, 30 Anos no STF

Tempos estranhos… É assim que começo este texto de homenagem ao nosso Ministro Marco Aurélio, que completou 30 anos no Supremo no último sábado, dia 13 de junho de 2020.

Essa frase, que já se tornou quase uma marca registrada do ministro, presente em várias de suas manifestações, é hoje talvez a que melhor retrate o grave momento de crise sanitária e de desarranjo político-institucional vivido em nosso país.

Não há espaço para retrocesso. Os ares são democráticos e assim continuarão. Visão totalitária merece a excomunhão maior”, afirmou Mello em entrevista a Rafael Moraes Moura, de O Estado de S. Paulo.

Polêmico, sábio, destemido, crítico, mas sempre elegante em suas manifestações e com os colegas, Marco Aurélio gosta de divergir e assim o faz não por capricho, mas por não ter compromisso com nada além de suas ideias. É da sua essência questionar o óbvio.

Tive o prazer de conhecer o Ministro Marco Aurélio por meio do saudoso desembargador Enéas Machado Cotta, do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, ainda nos primeiros anos de vigência da Constituição Cidadã de 1988.

De cada três ações que o Supremo Tribunal Federal julga, o Ministro Marco Aurélio fica vencido em uma, o que lhe rendeu o apelido, que tanto preza, por sinal, de “senhor voto vencido”.

Em voto memorável, em que ficou vencido, ele cita Hans Kelsen e explica uma vez mais por que ficar vencido não é uma derrota pessoal, mas uma vitória da democracia: “É bom sempre lembrarmos Hans Kelsen quando afirma que a democracia se constrói sobretudo quando se respeitam os direitos da minoria, mesmo porque esta poderá um dia influenciar a opinião da maioria. E venho adotando esse princípio diuturnamente, daí a razão pela qual, muitas vezes, deixo de atender ao pensamento da maioria, à inteligência dos colegas, por compreender, mantida a convicção, a importância do voto minoritário”. O recado foi dado no julgamento do HC 82.424/RS, do editor gaúcho Siegfried Ellwanger, contra condenação imposta pela Justiça gaúcha por ter ele publicado livros considerados antissemitas.

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello nasceu em 12 de julho de 1946, natural do Rio de Janeiro, filho de Plínio Affonso de Farias Mello e Eunice Mendes de Farias Mello.

Bacharelou-se em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da UFRJ, em 1973. Membro junto à JT da 1ª região, no período de 1975 a 1978, tornou-se juiz togado, de 1978 a 1981, tendo sido presidente da 2ª turma do TRT da 1ª região. No TST, assumiu a cadeira de ministro em setembro de 1981, onde atuou até ser nomeado para o STF.

Marco Aurélio Mello também foi ministro no TSE, corte que presidiu durante duas eleições: a municipal de 1996 e a presidencial de 2006. Em sua primeira gestão, o ministro esteve à frente das primeiras eleições informatizadas do país, realizadas em outubro de 1996, quando 57 municípios brasileiros todas as capitais e as cidades com mais de 200 mil eleitores utilizaram urnas eletrônicas. Já em 2006, ele comandou as eleições presidenciais com o processo de totalização de votos, até então o mais rápido registrado pela Justiça Eleitoral.

No Supremo, foi presidente da corte no biênio 2001/2003, tendo inclusive exercido a presidência da República interinamente. Sob seu comando, foi aprovada a criação da TV Justiça, símbolo da transparência no Judiciário e da aproximação do Poder com a sociedade.

O Ministro Marco Aurélio foi o relator de um dos casos mais marcantes julgados pelo Supremo: a ADPF 54, na qual se discutiu a possibilidade de interrupção da gravidez de fetos anencéfalos. Numa decisão emblemática, em 2004, concedeu liminar para autorizar a antecipação do parto de fetos anencéfalos por gestantes que assim decidissem, quando a deformidade fosse identificada por meio de laudo médico. Três meses depois, a liminar foi cassada, mas, no julgamento do mérito da ação, em 2012, por maioria de votos, o plenário decidiu pela possibilidade de interrupção da gestação nesses casos.

Ao completar 25 anos como integrante do Supremo Tribunal Federal, o Ministro Marco Aurélio Mello disse que não se vê deixando o tribunal. “Não me vejo virando as costas para essa cadeira. O que mais quero na vida é manter o mesmo entusiasmo, examinando o processo como se fosse o primeiro de minha vida judicante”, afirmou o ministro, ao ser homenageado, na ocasião, pelos colegas.

Não há dúvidas de que quando deixar a honrosa cadeira que ocupa na Suprema Corte, uma luz certamente se apagará e a jurisdição constitucional sentirá saudade dos distintos pontos de vista do ministro, muitas vezes divergentes, mas que sempre engrandecem o debate.

Os votos vencidos proferidos pelo Ministro Marco Aurélio ao longo da sua carreira são emblemáticos de que o exercício do poder somente se legitima com o diálogo, com o respeito à diferença, com o acolhimento do pluralismo de ideias e com a coexistência harmoniosa entre as diversas correntes de ação e de pensamento.

Talvez o maior legado que o ministro deixará, com sua saída da Corte Suprema, prevista para julho de 2021, quando completará 75 primaveras, é que as dissensões fazem parte do jogo democrático. A lógica adversarial deve ceder lugar ao culto pelo respeito a visões diferentes, pois é da essência da democracia e de uma sociedade aberta o pluralismo de ideias.

Parafraseando o ministro Barroso, em recente e sábia manifestação, “quem pensa diferente de mim não é meu adversário, muito menos meu inimigo. É meu parceiro na construção de um mundo plural, de uma sociedade aberta”.

Em tempos estranhos, de democracias em vertigem, porém, na certeza de que as instituições fluem com normalidade, o respeito pela diferença, tão emblemático nos votos vencidos do Ministro Marco Aurélio, deve servir de bússola, indicando os caminhos que seguiremos na construção de uma sociedade mais justa, solidária e paciente na edificação de um Estado fundado em bases democráticas.

Marcelo Buhatem é desembargador do TJ-RJ e presidente da Andes (Associação Nacional dos Desembargadores).

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Roger Rios: Direitos civis, discriminação por sexo e homotransfobia

Conforme a Suprema Corte dos Estados Unidos (USSC), a proibição de discriminação por sexo abrange orientação sexual e identidade de gênero. Em um importante e expressivo conjunto de decisões [1], o tribunal de cúpula estadunidense não só reafirmou a força da igualdade e afastou discriminações contra homossexuais (como fizera ao decidir pelo direito ao casamento civil a pessoas do mesmo sexo [2]), mas também deixou claro que a proteção contra discriminações por sexo também alcança pessoas trans.

A relevância desse julgamento é, por várias razões, indisputável. A projeção global da USSC e o impacto de suas decisões na arena internacional e no Direito comparado são inegáveis; ao mesmo tempo, o decidido traz contribuições significativas para o debate brasileiro, não só no diálogo com precedentes do Supremo Tribunal Federal, mas em especial para engendrar medidas legislativas, executivas e judiciais mais justas e livres de homotransfobia em matéria de igualdade, de liberdade e de respeito à dignidade.

Notas sobre a decisão da Suprema Corte dos EUA: discriminação por sexo e homotransfobia
Ao examinar a proibição de discriminação por raça, religião, origem nacional e sexo nas relações de trabalho, a USSC decidiu que demitir alguém pelo simples fato de ser gay ou transgênero ofende a Lei de Direitos Civis, de 1964. Para chegar a esta conclusão, o tribunal examinou quatro alegações: a) de que a compreensão do termo “sexo”, quando da promulgação da lei pelo Congresso, só tinha em mente o sexo biológico de homens e de mulheres; b) de que o motivo das demissões não foi o sexo, mas sim a condição homossexual e transgênero, critérios que não se confundem com a proibição de discriminação sexista; c) de que a lei, ao nada dizer sobre orientação sexual e identidade de gênero, não objetivou proteger tais condições e d) de que a simetria de tratamento entre homens e mulheres homossexuais ao lado de homens e mulheres transgêneros demonstra inexistir discriminação por sexo.

a) Proibição de discriminação por sexo e “sexo biológico”. Logo de partida, o julgamento anotou que o termo “sexo”, na dicção da lei, referia-se a distinções biológicas entre homens e mulheres; a seguir, admitida e respeitada essa premissa, a USSC explicitou, como fez em outros precedentes, que há discriminação por motivo de sexo sempre que o fator sexo seja determinante para o tratamento prejudicial, ainda que isoladamente ou em conjunto com outros fatores. Daí que, ocorrendo despedida baseada, mesmo que parcialmente, no sexo, constata-se a discriminação sexista. Quanto a esse ponto, o tribunal foi muito claro: não faz diferença se o discriminador levou em conta outros fatores além do sexo, nem se o empregador trata mulheres, como grupo, do mesmo modo que trata homens, como grupo. Havendo consideração do sexo na despedida, ainda que ao lado de outros motivos, está configurada a ofensa. Assentada essa premissa, examinou-se a segunda questão: as demissões foram motivadas pela condição homossexual ou transgênero, e não pelo sexo.

b) Diferença entre “sexo biológico”e condição homossexual ou transgênera. Também nesse ponto, a decisão foi clara e direta: “Porque a discriminação com base no status homossexual ou transgênero requer que um empregador intencionalmente trate empregados individuais diferentemente em função do sexo, um empregador que intencionalmente penaliza um empregado por ser homossexual ou transgênero também viola o Título VII. Não há escapatória para o papel que a intenção toma: como o sexo é necessariamente uma condição sine qua non quando o empregador discrimina contra empregados homossexuais ou transgêneros, um empregador que discrimina com base nestes critérios inescapavelmente se vale do sexo em sua decisão” (p. 2, tradução livre).

De modo mais concreto, “…quando um empregador demite uma empregada porque ela é homossexual ou transgênero, dois fatores causais podem estar em jogo ambos o sexo do indivíduo e também algo mais (o sexo pelo qual o indivíduo tem atração ou com o qual o indivíduo se identifica). Para o Título VII não faz diferença. Se o empregador não demitiria o empregado senão pelo sexo, o standard de causalidade está presente, e a responsabilidade pode ser determinada” (p. 11, tradução livre).

c) Ausência de previsão legal de orientação sexual e identidade de gênero. A proteção antidiscriminatória por “orientação sexual” e “identidade de gênero” foi posta em causa pelo silêncio legislativo sobre estes fatores. Rejeitando a alegação, a USSC reafirmou e desenvolveu as respostas anteriores. “Nós concordamos que homossexualidade e transgeneridade são conceitos distintos de sexo”, disse o tribunal. E prosseguiu: “Mas, como visto, discriminação baseada na condição homossexual ou transgênero necessariamente implica discriminação baseada em sexo; a primeira não pode ocorrer sem a segunda. Nem há tal coisa como ‘um canhão de rosquinhas’, no qual a falta do Congresso em apontar diretamente para um caso específico que se subsume dentro de um dispositivo legal mais genérico cria uma exceção tácita. Em vez disso, quando o Congresso opta por não incluir exceções em uma regra ampla, os tribunais devem aplicar a regra ampla. E isso é exatamente como esta corte tem sempre abordado o Título VII. ‘Assédio sexual’ é conceitualmente distinto de discriminação sexual, mas se subsume dentro da seção Título VII. (…). Como promulgado, o Título VII proíbe todas as formas de discriminação por sexo, não importa como elas se manifestem ou quais sejam os rótulos que a elas possam se inculcar” (p. 19, tradução livre).

d) Tratamento igual dado a homens e mulheres homossexuais e a homens e mulheres transgêneros. Por fim, a USSC refutou a alegação de que não haveria discriminação, dado que homossexuais e transgêneros, sejam homens ou mulheres, são tratados de forma igual. Com efeito, tal “paridade discriminatória” não faz desaparecer o fato de que o tratamento prejudicial aos grupos listados (homens homossexuais, mulheres homossexuais, homens trans e mulheres trans) decorre do fator sexo.

A par da centralidade desses fundamentos, o julgado foi robustecido pela invocação de outras situações em que a própria Suprema Corte se deparou com discriminação sexista conglomerada com o pretexto de motivos diversos, como ocorreu no assédio sexual, na participação da mulher no mercado de trabalho e no custeio de sistema previdenciário. Em todos eles, já fora identificada discriminação sexista, pois o fator sexo foi, ao lado de outros pretextos, decisivo para o tratamento prejudicial. No primeiro, alegava-se inexistir assédio praticado contra homossexual pela circunstância de os perpetradores terem sido colegas também homossexuais; no segundo, restringia-se a contratação de mulheres com filhos jovens, como se a suposta proteção da maternidade fosse apagar a discriminação sexual; no terceiro, fundo de pensão exigia maior contribuição financeira por parte das mulheres, sob o argumento de maior expectativa de vida feminina. Em suma, disse a Suprema Corte, motivações adicionais, invocadas como justificação, não são pretextos capazes de dissipar a discriminação sexual.

Além de esclarecedores, tais precedentes trazem relevantes contribuições para o debate brasileiro, que requer o enfrentamento de discriminações crescentes e o aperfeiçoamento de respostas jurídicas.

A decisão da USSC: diálogo com o STF e deveres estatais
Ainda que breves, essas notas sintetizam aportes valiosos para o debate brasileiro. Numa mirada retrospectiva, elas permitem dialogar com os marcos do Supremo Tribunal Federal sobre orientação sexual e identidade de gênero; prospectivamente, apontam exigências democráticas e razões constitucionais para a atividade legislativa, executiva e judiciária.

Antes de pincelar possíveis diálogos entre as cortes e de anotar repercussões no porvir legislativo, executivo e judiciário, importante lembrar: no sistema jurídico de que faz parte, a USSC é ao mesmo tempo corte constitucional e intérprete final da legislação infraconstitucional. No caso aqui comentado, ela interpretou a lei dos direitos civis, ao passo que em outras oportunidades protegeu direitos constitucionais (direito ao casamento de homossexuais [3], igual proteção da lei sem exclusão de gays, lésbicas e transgêneros [4] e direito à privacidade[5]). Ter isso presente é muito relevante na medida em que proibição de discriminação sexista é direito fundamental entre nós, vinculante de toda atividade estatal.

Quanto à atividade legislativa, a contribuição da USSC exige que, tanto emendas constitucionais, quanto iniciativas infraconstitucionais, não só não podem restringir o alcance da norma antidiscriminatória, como devem reforçar esta proteção. No cenário parlamentar contemporâneo, é inegável a relevância desse aporte, o que projetos de lei sobre a suposta “ideologia de gênero” ilustram.

Na esfera executiva, por sua vez, a compreensão da discriminação sexista torna insubsistentes iniciativas, políticas e decisões sempre que o sexo, total ou parcialmente, tenha o efeito de prejudicar não só mulheres pelo sexo biológico, com também a homossexuais e transgêneros. Haverá, portanto, discriminação sexista inconstitucional contra mulheres, homossexuais e transgêneros, quando houver prejuízo ao reconhecimento e ao exercício de direitos, relacionado ao fator sexo, nos diversos campos da atuação administrativa, seja por ação ou omissão, de modo direto ou indireto [6].

Por fim, antes pela qualidade substancial do que mesmo pelo argumento de autoridade, a decisão da USSC é valiosa para a atividade judicial. Os fundamentos colaboram, sem dúvida, para fazer desvanecer a cegueira diante da homotransfobia como discriminação sexista, bem como para análise do sexismo como fator causal na sanção jurídica do ato ilícito discriminatório. Cada vez mais límpidos, esses elementos jurídicos são balizas técnicas para respostas judiciárias, seja na concretização de dispositivos legais [7], seja na aplicação de precedentes vinculantes em matéria de sexo, orientação sexual e identidade de gênero.

A propósito, a menção a precedentes vinculantes oportuniza a sugestão de estudos retrospectivos de direito comparado e sobre o fenômeno do diálogo das cortes. Fica aqui o registro, em apressadas e incompletas anotações, sem qualquer pretensão de exaustividade, nem de exaurir a amplitude dos julgamentos, de possíveis relações entre: a) a liberdade sexual como direito à privacidade em Lawrence v. Texas e como alicerce na ADPF n. 132 [8]; b) a proteção antidiscriminatória como âmago do direito de igualdade em Romer v. Evans e na ADPF nº 291; e c) o reconhecimento da dignidade em Obergeffel v. Hodges e na ADIN 4.275.

Sobre discriminação sexista e homotransfobia, objeto destas notas, não há dúvida de que o contraste, as aproximações e as distinções entre a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal e a decisão da Suprema Corte dos EUA terão valor inestimável para o aperfeiçoamento dos respectivos ordenamentos jurídicos. Basta colocar lado a lado a decisão da USSC e aquelas do STF sobre a criminalização da homotransfobia [9] e sobre a inconstitucionalidade de censura, silêncio e obscurantismo em matéria de diversidade sexual no sistema de ensino [10]. Com diferentes modos e graus de repreensão constitucional à homotransfobia, os tribunais adentraram na consideração e na relação do sexo, da orientação sexual e da identidade de gênero como critérios proibidos de discriminação, bem como sobre a proteção jurídica propiciada pelos diversos dispositivos constitucionais e infralegais.

Considerações finais
A decisão da Suprema Corte dos EUA afirmando a proteção constitucional diante homotransfobia como discriminação por motivo de sexo, mesmo que desprovida de ineditismo [11], é marco jurisprudencial de enorme importância. Com seu inegável prestígio e influência globais, ela se soma a vários tribunais nacionais e internacionais quanto à injustiça e à antijuridicidade da homotransfobia. Mais ainda, ela deixa claro o alcance da proibição de discriminação por sexo e seu impacto na estrutura do raciocínio jurídico antidiscriminatório, abrindo caminho para um frutífero diálogo jurisprudencial comparado com o Supremo Tribunal Federal.

Em especial nos dias de hoje, em que as garantias constitucionais e os direitos fundamentais nos Estados Unidos, no Brasil e mundo afora são desafiadas pelo recrudescimento de intolerância, discriminação e violência, esse precedente jurisprudencial é alerta e convocação para a responsabilidade jurídica, democrática e cidadã de tribunais e operadores jurídicos em todos os quadrantes e latitudes.

Roger Raupp Rios é desembargador federal do TRF-4, professor do PPGD Unisinos, mestre e doutor em Direito (UFRGS).

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Projeto oferece apoio a famílias e evita abandono de crianças

Evitar que crianças recém-nascidas sejam abandonadas em terrenos baldios, em condições precárias ou sejam entregues à revelia da lei para outras pessoas é o objetivo do projeto “Entregar de forma legal é proteger”, desenvolvido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Por meio do acolhimento, acompanhamento de equipes técnicas e parceria com a rede de proteção à infância, a iniciativa privilegia a conscientização da sociedade sobre a legalidade da entrega de crianças à Justiça.

Dollar Photo ClubProjeto do TJ-RJ oferece apoio a famílias e evita abandono de crianças

A entrega voluntária da criança à Vara da Infância é prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesses casos, o Poder Judiciário e a Rede de Atendimento promovem o apoio e orientação psicossocial pela equipe interdisciplinar. “A ideia é mostrar aos genitores, especialmente às mães, que não há julgamento moral por parte da Justiça para quem pretende entregar o filho para adoção. Às vezes, o que falta a ela é apoio e ela encontra isso no trabalho de nossa equipe e pode até voltar atrás”, afirmou o presidente da Coordenadoria Judiciária de Articulação das Varas da Infância, da Juventude e do Idoso (CEVIJ/TJRJ), Sérgio Luiz Ribeiro de Souza.

Terceiro colocado entre as iniciativas avaliadas na chamada pública realizada pelo Conselho Nacional de Justiça para seleção de boas práticas voltadas para a proteção dos diretos de crianças com até seis anos, o projeto desenvolvido pelo tribunal fluminense defende que a entrega voluntária “concretiza o direito fundamental à vida, pois inibe o aborto e desestimula a adoção irregular”. Segundo Sérgio Souza, a CEVIJ/TJRJ pretende propagar a mensagem de que as famílias terão acolhimento, direito ao sigilo, serão ouvidas pela equipe técnica e as crianças serão encaminhadas para pessoas habilitadas no Sistema Nacional de Adoção e Acolhimento (SNA).

Acompanhamento multidisciplinar

O TJ-RJ trabalha com quatro Varas de Infância e Juventude na capital, todas com plantão diário e equipes técnicas com psicólogos e assistentes sociais. A campanha sobre a entrega voluntária contempla todo o estado. Por meio da divulgação no site da CEVIJ/TJRJ, muitas mães têm entrado em contato com o tribunal, buscando orientação ou mesmo para declarar sua intenção.

Além disso, a parceria com a rede de proteção à criança, formada por igrejas, hospitais, ONGs, escolas e outros, tem contribuído para orientar genitores sobre como proceder nesses casos. “Temos assento no Fórum das Maternidades no estado, o que nos permite contato permanente com a rede. Essa participação é fundamental para ajudar os genitores que acreditam não ter condições para criar o filho”, explicou a psicóloga da CEVIJ/TJRJ, Eliana Olinda Alves.

Dessa forma, as mães que informam na maternidade que pretendem entregar a criança à adoção são encaminhadas à Vara da Infância. Depois de acompanhada pela equipe técnica do Judiciário, a mãe terá ainda um mês para decidir se realmente vai desistir da guarda do filho.

“Muitas mães desistem da entrega ou, quando mantêm a decisão, é possível preparar a família extensa para cuidar da criança, ao invés de colocá-la em abrigo. Para a rede de proteção, a participação do Judiciário nessa questão é um alívio, pois há uma orientação de como proceder, sem julgamento à mãe e sem traumas para a criança, além de ser um processo dentro da lei”, afirmou Eliana.

O tribunal também dispõe de uma cartilha sobre a entrega legal, explicando os motivos que podem levar os genitores a desistirem da guarda, como proceder e as garantias à família genitora e extensa, caso se disponham a cuidar da criança. “Queremos conscientizar a sociedade que esta não é apenas uma questão social, mas também uma forma de proteção à mulher e à criança”, ressaltou a psicóloga.

O próximo passo previsto pelo Prêmio de Boas Práticas é a disseminação das iniciativas. Para o TJ-RJ, o reconhecimento do trabalho será coroado com a implantação do projeto também em outros estados e órgãos. Com informações da assessoria de imprensa do CNJ.

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Souza Mello: As suspensões de prazo sem análise do juízo

No dia 25 de maio, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) decidiu, interpretando o artigo 3º, § 2º, de sua Resolução 314 de 2020 que basta a comunicação pelo advogado da impossibilidade de cumprir um prazo para impedir a preclusão temporal [1]. O relator concluiu que se trata de comunicação, não de pedido. O juízo não pode, portanto, apreciar a razoabilidade da justificativa. O pedido de providências foi formulado pela Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB-DF) e comemorado por ela como vitória da advocacia [2].

Em tempos normais, em que se procura aplicar o Código de Processo Civil, a justa causa para não praticar o ato processual também evita a preclusão. É o disposto no artigo 223 e parágrafos. A parte tem o ônus de provar esse fato, alheio à sua vontade, que a impede de cumprir o prazo. O juízo deve, por consequência, indeferir o pleito de novo prazo e declarar a preclusão temporal em três hipóteses: a) quando a parte não se desincumbir do ônus de provar o evento; b) quando o evento não for alheio à vontade da parte; e c) quando o evento não impedir efetivamente a prática do ato.

A regra de crise instituída pelo CNJ exclui a possibilidade de indeferimento: a comunicação do evento impeditivo pelo advogado basta. Exclui, portanto, a necessidade de provar. Mais: como esses elementos também não estão sujeitos à apreciação judicial, os requisitos de que o fato seja externo e efetivamente impeditivo também desapareceram. Basta a comunicação. Mas, como seu conteúdo não pode ser analisado, é uma comunicação sem referente. O requisito da suspensão do prazo, na prática, é apenas o ato volitivo do advogado. Por fim, se o indeferimento é vedado, o Poder Judiciário não poderá apreciar nem sequer os casos de má-fé e abuso de direito. A resolução, na sua mais recente interpretação, cria ainda outro requisito divergente do CPC, e curiosamente mais restrito: a comunicação precisa ser feita antes do fim do prazo.

É evidente que o CNJ criou um poderosíssimo instrumento protelatório. Nenhum advogado ignora que algumas partes têm interesse na inefetividade da Justiça. No processo, como muitos autores têm apontado [3], o tempo é um ônus: quem o suporta — em regra, o autor — é privado de usufruir do bem-da-vida em disputa enquanto o litígio durar. A duração excessiva do processo de qualquer natureza costuma beneficiar o demandado que não tem razão. Pior: o demandado, quando sabe que não tem razão, não raro lança mão de todos os expedientes suspensivos e impeditivos que puder para adiar a solução do caso. Nos processos de natureza cível, em particular, o demandante que tem razão, que tem direito ao bem-da-vida, mas não pode gozá-lo, é o prejudicado pelo curso do tempo.

Com a regra de crise, o réu sem razão, o executado que não quer pagar (algum executado quer pagar?), aqueles, enfim, que têm o ônus do tempo em seu favor poderão adiar indefinidamente a solução dos conflitos e a efetivação dessas soluções pela simples prática de atos potestativos por seus advogados.

Isso é bom para a advocacia? Talvez para aquela com clientes que ocupam com mais frequência a posição de demandados do que a de demandantes — como é o caso de vários agentes econômicos de maior expressão, como companhias telefônicas, companhias aéreas e instituições financeiras. E isso apenas até que precise ir à Justiça cobrar seus honorários. Para a advocacia que patrocina quem tem o ônus do tempo contra si, vitória são processos rápidos e efetivos, sem dilações indevidas.

Do ponto de vista normativo, a interpretação atribuída pelo CNJ à sua resolução viola a Constituição Federal. Formalmente, porque cria hipótese inovadora de suspensão de prazo, violando a competência privativa da União para legislar sobre Direito Processual (artigo 22, I, da Constituição). Materialmente, porque a garantia da razoável duração do processo (artigo 5º, LXXVIII) não é compatível com um instrumento de protelação processual segundo o arbítrio de uma das partes. Ou, por outra, se um processo sem dilações indevidas é direito do jurisdicionado, excluir da apreciação jurisdicional a avaliação de se a dilação provocada por seu adversário é indevida viola a própria garantia de acesso à Justiça (artigo 5º, XXXV).

Para garantir a efetividade da Justiça diante da decisão do CNJ, o juiz tem três opções: a) afirmando sua independência, dar à resolução interpretação diversa daquela atribuída e apreciar a adequação da justificativa no caso concreto; b) admitindo a interpretação dada pelo CNJ, fazer a declaração incidental de inconstitucionalidade da resolução e apreciar a adequação da justificativa no caso concreto; ou c) inverter o ônus do tempo mediante a concessão de tutela provisória, retirando o incentivo para as manobras protelatórias. Nos tribunais, em que o controle difuso se submete à reserva de plenário (artigo 97 da Constituição), as duas providências são necessárias: a declaração de inconstitucionalidade e a tutela provisória enquanto o jurisdicionado aguarda a manifestação do colegiado.

Com os inconvenientes da pandemia, os eventos que impedem o cumprimento dos prazos se tornaram, é claro, mais numerosos. Mas para essas situações a regra dos tempos normais dá solução: se a justificativa for adequada, o juiz poderá afastar a preclusão ou estender o prazo. Se não, não. A crise mudou muitas coisas, mas não é preciso inventar sempre um novo Direito. Em época de calamidade, mais do que nunca a sociedade precisa de um Direito efetivo. E se o sistema é o da vedação da autotutela, não há efetividade do Direito fora do Poder Judiciário. Em tempos como estes é que as ideias que tornam a Justiça inefetiva mais devem ser rechaçadas.

 


[3] Ver, por exemplo, MARINONI, Luiz Guilherme. La necesidad de distribuir la carga del tiempo en el processo. THEMIS: Revista de Derecho. n. 43, 2001, p. 45-51.

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Faccini Neto: A pandemia e o Direito Penal

1. Estamos vivendo um tempo completamente inusitado. Há, em curso, uma pandemia e praticamente todos nós estamos experimentando um período de reclusão difícil. Os sentimentos se apresentam de uma maneira completamente distinta daquela que normalmente acontece, na medida em que estamos oprimidos por uma realidade que nunca vivenciamos. Somam-se ao medo, o tédio, a angústia, na medida em que a nossa própria liberdade de trânsito é, com amplas justificativas, comprimida.

Numa situação complexa como essa, é importante discutir algumas questões jurídicas, mormente no campo do Direito Penal. Isto porque há alguns tipos penais que sobressaem, que tem sua incidência, por assim dizer, mais pertinentes a esse momento, e, além disso, há corolários em termos de dogmática, ou de teoria do Direito Penal, que se revelam importantes. De maneira que a ideia deste texto é tratar das figuras típicas correlacionadas com esse momento.

2. De início, porém, realizarei uma abordagem geral, e, depois, pretenderei ir especificando os termos dessa discussão, para, finalmente, ingressar na temática mais particular dos tipos penais que se poderiam revelar numa situação de pandemia.

A primeira vertente dessa abordagem mais ampliada revela o seguinte: que neste período de pandemia, pelo menos três categorias do Direito Penal, muitas vezes rechaçadas por alguma doutrina, adquirem novo significado e mostram a importância que têm.

A primeira delas alude à temática dos bens jurídicos coletivos.

Sabemos que a trajetória da teoria do bem jurídico começa no século 19, com a perspectiva de que o bem jurídico haveria de ser considerado em termos de lesões aos interesses das pessoas. Isto tinha uma dimensão importante, já era uma espécie de densificação teórica do conceito, mas não respondia, sobretudo, a um questionamento pertinente àquela época, e que dizia respeito aos crimes contra os sentimentos religiosos. Muito em função disso, a evolução da ideia de bem jurídico passou a abarcar as lesões coletivas e, até o presente, vimos assistindo a uma espécie de reforço muito consistente na temática da criminalização de condutas que afrontem interesses não individualizáveis. Os exemplos são vários, como o meio ambiente, o sistema financeiro, o patrimônio público, para ficar apenas nisso.

Quando se vive um período como este, de pandemia, aqueles que são críticos à criminalização de condutas que violam interesses coletivos têm o ônus de explicar de que maneira se poderia cuidar desse tipo de situação. Há autores muito relevantes que defendem a ideia de que o Direito Penal deveria seguir aferrado ao seu chamado padrão clássico, ou seja, aquele Direito Penal cuja tutela estivesse concentrada na propriedade, no patrimônio, e, consequentemente, que aludisse exclusivamente à proteção dos interesses individuais. Se essa é uma visão aparentemente elitista, na medida em que retira do Direito Penal exatamente aquelas condutas praticadas pelas classes sociais mais abastadas, e relega o Direito Penal unicamente para que tenha sua incidência naqueles casos de delitos praticados pelas pessoas mais pobres, além disso, a verdade é que, quando se fala de proteção da saúde pública, ou seja, da incidência criminal na proteção deste interesse coletivo, máxime em tempos de pandemia, efetivamente estamos a reconhecer a importância dessa categoria, qual seja, a dos bens jurídicos coletivos.

De maneira que quem recusa a ideia dos bens jurídicos coletivos acaba deixando a saúde pública e, consequentemente, os interesses mais expressivos das pessoas, desprotegidos numa situação como essa.

A segunda categoria que é resgatada, neste momento de pandemia, é a dos chamados crimes de perigo. Tais crimes, como cediço, são alvo de diversos ataques doutrinários, no sentido da sua ilegitimidade, porquanto o Direito Penal haveria de incidir somente quando houvesse dano, ou seja, resultado lesivo ao bem jurídico. A questão, entretanto, é que vivemos numa época em que a dimensão do risco, ou seja, da probabilidade de dano, é significativamente importante, e, muitas vezes, evitável. Atualmente, é possível prevermos situações que, em ocorrendo, terão uma gravidade brutal, de consequências tremendas. Quando isso sucede, é natural que se antecipe a tutela penal, de modo que, antes mesmo de que a lesão ocorra, e com o desiderato de inibi-la, o Direito Penal já atua para tutelar e proteger o bem jurídico.

A terceira categoria que se afigura importante neste quadro é a das chamadas normas penais em branco. Não é necessário ingressar em sua classificação, que alguma doutrina realiza, sobre serem as normas penais em branco lato sensu ou stricto sensu. A nomenclatura não se revela importante, pois o certo é que as normas penais em branco, que são aquelas cujo conteúdo carece de complemento e, sobretudo, cujo conteúdo carece de um complemento não legislativo, mormente em termos de atos administrativos, afeiçoam-se com o princípio da legalidade, visto que o conteúdo da proibição já vem expresso pela lei. Sucede que determinadas situações carecem de uma espécie de velocidade normativa que o parlamento não é capaz de dar, seja no sentido do preenchimento do conteúdo, seja no sentido de alterações que, eventualmente, se afigurem necessárias. Quer dizer, os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo, por seus diversos órgãos, como o Ministério da Saúde, têm a possibilidade de regular muito mais adequadamente os meios de combate e os efeitos da pandemia.

Para além disso, embora não seja exatamente um tópico de Direito Penal, parece importante referir que o momento atual também nos faz pensar a respeito do chamado confronto entre o interesse público e o interesse particular. O Direito Constitucional e o Direito Administrativo de outrora consagraram a parêmia cediça da preponderância do interesse público sobre o interesse particular, mas, como se sabe, isso foi sendo alterado ao longo do tempo, principalmente por algumas decisões judiciais. A situação que vivenciamos mostra, contudo, que a Carta Constitucional não é formada somente de direitos, visto que também estabelece deveres. Isso significa que o interesse público, sobretudo em situações dramáticas de crise, fala mais alto do que o interesse particular, e, portanto, devemos nos submeter às variadas determinações que, no fim das contas, têm muito menos um sentido paternalista, de proteger o indivíduo de si próprio, e mais de proteger a coletividade. Noutras palavras, isso quer dizer que quando somos tolhidos da possibilidade de sair às ruas do modo como fazíamos há alguns meses, isto não é, exclusivamente, para garantir que não nos contaminemos, mas, sim, para evitar que nos tornemos um vetor de contaminação de outras pessoas, em especial daquelas pessoas mais frágeis e situadas em grupos de risco. Ou seja, busca-se evitar que nos tornemos uma “fonte de perigo”, uma espécie de bomba relógio, e que vai levar o vírus e as suas consequências a uma infinidade de outros indivíduos.

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 é juiz de Direito, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul.