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Superendividamento dos consumidores: Vacina é o PL 3.515 de 2015 (página 1 de 3)

A pandemia de Covid 19, além de acarretar o colapso nos sistemas de saúde de diversos países, tem trazido diversos efeitos colaterais derivados da crise econômica a ela associada. No Brasil, infelizmente, a situação não é distinta e já mergulhamos em recessão econômica, com o consequente incremento do já alto índice de desemprego[1].

O cenário tende, inexoravelmente, a deteriorar ou — em um número cada vez mais intenso de casos — inviabilizar a capacidade dos consumidores quitarem as suas dívidas em razão da perda de renda ocasionará por um evento absolutamente imprevisível. E se o consumo das famílias é responsável por 65% do PIB da economia brasileira[2] (algo em torno de 4,5 trilhões de reais!),[3] é preciso agir rápido para assegurar um mercado de consumo saudável no pós-pandemia causada pela Covid-19.[4]

A realidade é ainda mais dramática ao se verificar que o endividamento das famílias brasileiras já vinha experimentando uma efetiva ascensão e alcançou o recorde histórico ao atingir o percentual de 66,6% em abril de 2020, segundo a Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor (Peic), elaborada pela Confederação Nacional do Comércio. O nível de inadimplemento por seu turno alcançou o patamar de 25,9%, o mesmo de março do corrente ano, mas superior ao de abril de 2019, que foi de 23,3%.[5]  Antes da Pandemia causada pela Covid-19, o Idec estimava que destes, cerca de 30 milhões de pessoas seriam superendividados.[6]

Ademais há tendência de aumento do nível de endividamento, pois uma das medidas tomadas foi justamente o aumento da liquidez dos bancos para que fosse possível aumentar empréstimos e conceder suspensões temporárias de pagamentos de determinados contratos de mútuos[7]. Segundo o Instituto ‘Locomotiva’, 91 milhões de brasileiros deixaram de pagar pelo menos uma conta em abril de 2020.[8]

Os “acidentes de vida” mais comuns que motivam o superendividamento são doenças, redução de renda e desemprego[9]. A atual crise combina as duas causas e assim há a potencialização do risco de que haja um substancial aumento do superendividamento, principalmente tendo em vista que a crise econômica tende a ser mais duradoura do que a crise sanitária[10].

Portanto, o país tem que estar preparado para lidar com o aumento do superendividamento. E infelizmente não está, ao contrário do que ocorre com os Estados Unidos[11] e a Europa[12] – justamente as duas regiões mais afetadas pelo Coronavírus.

A necessidade de lidar com os efeitos do superendividamento não reverte exclusivamente em benefício do consumidor. Muito pelo contrário, os credores também são beneficiados se a lei for bem concebida. Sem a lei — e o consequente plano de pagamento dos débitos — há o sério risco de diversos credores (os com menores garantias) ou até mesmo a totalidade deles (tendo em vista que muitas vezes são credores sem garantia) nada receberem.

Ademais, restrições acessórias possuem um efeito devastador para a retomada da viabilidade econômica do consumidor. Pensemos na principal delas, a inscrição em cadastros de proteção ao crédito. A negativação importa em dificuldades efetivas para conseguir um emprego (já que normalmente as empresas consultam os cadastros antes da contratação e nada indica, muito pelo contrário, que deixarão de dar preferência a contratação de pessoas não negativadas.

A medida em que o consumidor não consegue o emprego, aumenta exponencialmente a dificuldade não apenas de quitação da dívida (o que se tornará absolutamente improvável), como de consumo até mesmo do mínimo existencial.

Assim o superendividamento afeta não apenas o consumidor e sua família, com fortes privações do mínimo existencial e abalos morais e psicológicos, mas também aos credores e a economia como um todo, pois o aumento do patamar de consumo é essencial para a retomada da economia, o que é impossível para o superendividado.

Há ainda o aspecto preventivo absolutamente essencial para os tempos atuais. O aumento de liquidez induz agressividade das instituições financeiras na oferta de novos empréstimos e novos produtos e, assim, a ampliação da educação para o consumo e de regras de vedação de publicidade e oferta enganosa são essenciais para evitar acesso insustentável ao crédito, que por ser concedido a quem não necessitaria ou não teria condições de adquirir novo crédito, acaba redundando em superendividamento[13].

Ainda que haja algumas normas esparsas, acórdãos de tribunais superiores[14] e iniciativas de programas de tratamento de superendividamento[15]  há intensa necessidade de uma norma sistematizadora, sendo a atualização do Código de Defesa do Consumidor, por intermédio do Projeto de Lei  nº 3515/2015 o veículo ideal para tal desiderato.

Podemos dividir em três âmbitos a proteção efetivada no âmbito do Projeto de Lei nº 3515/2015: normas de natureza preventiva, repressiva e de tratamento. Assim são vacina (prevenção) e tratamento/remédio (repressiva e de cura) do superendividamento do consumidor pessoa física, excluídos das possibilidades da falência e recuperação extrajudicial. As normas do PL 3515,2015 forma inspiradas no modelo francês de conciliação em bloco do consumidor com todos seus credores e a elaboração de um plano de pagamento, não havendo no caso brasileiro, perdão de dívidas, mas sim um plano compulsório para os que não conciliarem.[16]

No âmbito preventivo destacamos as normas do PL 3515,2015 que ampliam a educação para o consumo consciente e que aprofundam a exemplificação a informação a ser prestada pelas instituições para a concessão de crédito responsável, sempre pautados pela preservação do mínimo existencial. [17]

Destacamos, inclusive a expressa previsão da obediência ao princípio da boa-fé no conceito de superendividamento, que, seguindo exemplos de direito comparado[18] e adaptando-os à realidade nacional, é definido da seguinte forma pelo Projeto de Lei nº 3515/2015: “a impossibilidade manifesta de o consumidor, pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação (art. 54-A,  § 1º)”. [19]

 é professora titular de Direito Internacional Privado na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), doutora pela Universidade de Heidelberg (Alemanha) e mestre em Direito (L.L.M.) pela Universidade de Tübingen (Alemanha). É presidente do Comitê de Proteção Internacional dos Consumidores e da International Law Association (Londres). Ex-presidente do Brasilcon e da Asadip (Paraguai).

Roberto Castellanos Pfeiffer é professor da USP, procurador do Estado de São Paulo e ex-Presidente do Brasilcon — Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasília)

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Hermann Hackradt: Justiça do Trabalho na pandemia

Em tempos de pandemia muito tem se discutido sobre atos processuais e análise de decisões judiciais que se vinculam ao período de regulamentação excepcional sobre o trabalho, objeto das medidas provisórias editadas sob os números 927 e 936. Entre tantas questões, o Judiciário mantém plena atividade diante de um incremento e constatação de novos pedidos sobre processos em curso, sobre novas postulações e interpretações oriundas das respectivas medidas transitórias, ou sobre a continuidade de atividades que são essenciais para a atividade de Justiça.

A Justiça do Trabalho retoma sua centralidade como destino final de questões diversificadas de Direito, economia e sociedade, cuja diversificação, entre tantos e inúmeros pedidos, buscam revisar acordos e obrigações, ao passo que também eclodem pedidos de continuação e andamento processual através das ferramentas eletrônicas. Esses aspectos reportam, obrigatoriamente, a um dos pontos mais característicos do processo do trabalho, que é a proximidade com as partes em litígio através de audiências e conciliações presenciais. O cenário apresenta universo novo, abrangente e de múltiplas questões, porém algumas delas precisam de reflexão mais apurada na busca de uma construção de sentido, merecendo especial foco, neste debate, os atos de instrução por meio da tecnologia e de plataformas digitais.

A audiência envolvendo o Direito do Trabalho não é um ato meramente burocrático. Ela é um ato de vivência, em que a Justiça é dimensionada e percebida numa forma mais ampla e abrangente do que o próprio encontro. Nela se analisam narrativas jurídicas, comportamentais e atitudes. E não se pode negar que a experiência do magistrado do Trabalho apresenta nuances essenciais para o ato de audiência, posto que o tempo, a experiência pessoal e a prática, nesse contato, encampam os mundos dos fatos percebidos juridicamente e lançados em ata de audiência. Como bem acentuou o presidente nacional da Ordem dos Advogados do Brasil [1], em atividade expositiva de evento digital, promovido em rede social pela Associação Nacional dos Magistrados do Trabalho (Anamatra), em 1º de maio Dia do Trabalho —, “a percepção do juiz do Trabalho em face da audiência presencial é epidérmica. Ele sabe onde se encontra a mentira, onde o preposto é treinado”.

Nesse contexto, é essencial para esse processo de distribuição de justiça atentar sobre nuances que o mundo digital não permite. As especificidades de cada processo podem desautorizar a utilização da audiência online por elementos que colocam em risco a própria natureza da demanda trabalhista. Noutro ponto, não se pode abandonar a contingência de distribuição desigual de recursos tecnológicos entre partes e também advogados. Somos, também, um país desigual em planos de tecnologia, e quando migramos essa abordagem para a figura do trabalhador há substancial preocupação de inclusão, devendo ainda ser considerado o agravante de realidades sociais inacessíveis neste campo eletrônico em regiões menos favorecidas de norte a sul do país.

Estar presente traduz também um conjunto de atos processuais de que é feito o processo do trabalho, e há demandas em que não se coadunam os procedimentos eletrônicos de audiências com as necessidades reais de busca de provas e evidências da verdade, primordialmente num campo como o Direito do Trabalho.

A Justiça do Trabalho pode continuar seus atos processuais e atividades essenciais tendo atenção e filtro sobre suas particularidades processuais, o que inclui também os sujeitos do processo, nada impedindo que possamos ampliar o olhar eletrônico de atuação, porém sem perder a vigilância jurídica para que não comprometamos o real sentido de equação social de suas demandas.

Nesse particular, impõe-se atentar para que não transformemos a pandemia em semblante reduzido de tempo e protagonismo para toda evidência, o que ressalto não significa crítica para essenciais presenças esclarecedoras que temos vivenciado, e que são importantes neste momento. Atenta-se, apenas, para que não haja superposição de papéis e obscuridades em vislumbrar princípios de ordem e natureza constitucional, e de incorporação principiológica mundial, como temos com os normativos incorporados a partir das convenções historicamente discutidas e ratificadas, oriundas da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e para proteção do trabalhador.

Na sociedade contemporânea, e excepcional, atual, nossas dificuldades continuam e residem no que vivenciamos na distribuição dos riscos: a crise social e econômica tem demonstrado desigualdade na distribuição dos ônus e responsabilidades. E, nestes momentos de pandemia, jamais vivenciados, precisamos atentar para uma harmonização entre as garantias legais e as realidades vividas.

Cabe ao Judiciário, e essencialmente ao que lida com um Direito de vertente tutelar, e de sensibilidade social, atuar na limitação das explorações econômicas que relativizam questões essenciais de proeminência e salvaguarda dos direitos humanos. Não se pode, a usufruto de uma situação de desagregação ampla no campo social, relativizar garantias e direitos do trabalhador para superdimensionar direitos de natureza econômica. Sob argumentos de comoção pública, não podemos tornar mais valorosa a economia que a vida e a dignidade de quem já trabalhou, perdeu o emprego, porém não recebeu, em tempo regular do contrato, o que lhe era devido. O verbo no passado é realidade processual, já que as demandas trabalhistas normalmente só ingressam no Judiciário quando da demissão do empregado, e sem os pagamentos legais.

As medidas regulatórias sobre a Covid-19 não se limitam a conferir, tão somente, proteção às empresas durante a pandemia, tampouco devem ser objeto para conferir regalias aos empregadores, num plano de disposição de direitos que pertence claramente aos trabalhadores. Essa inversão apresenta vício desde a origem, já que as medidas excepcionais, lançadas para vigência nacional, foram criadas ao objetivo de proteção do emprego e de trabalhadores, e não para a superioridade e prevalência da exceção de proteção sobre o capital. Não há como referendar, neste momento, atos e postulações que não versam sobre oportunidade processual evidente. Entre conceitos, há distinção incomunicável entre legitimidade e oportunismo. A hermenêutica das medidas excepcionais veio na salvaguarda dos mais fracos. Eis a questão: merece sobreviver o ser humano ou o patrimônio? Eis a conclusão: depois de 27 anos lidando com o mundo do trabalho, uma pandemia e um vírus cruel, eu não tenho dúvidas da relevância humana.

Hermann de Araujo Hackradt é juiz do Trabalho na 21ª Região (RN) desde 1993, doutor em Direito do Trabalho pela Universidade de São Paulo (USP), mestre em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e master em Direito das Relações Sociais pela Universidad Castilla La Mancha (UCLM), da Espanha.

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Nunes e Passos: Os tribunais online na pandemia

Não é novidade que a tecnologia tem a capacidade de mudar as sociedades ao interagir com o ser humano, gerando novos comportamentos e novas soluções para problemas antigos, mas também novos problemas e novos conflitos. Basta pensar no aumento do fluxo de informações propiciado pelas redes sociais e, por outro lado, nos impactos negativos decorrentes de sua utilização, como o incremento da polarização política e a divulgação em massa de fake news [1].

No campo do Direito, mais especificamente no Direito Processual, a invasão tecnológica vem gerando debates em relação, por exemplo, à forma como se dará a legitimação de uma decisão judicial em espaços altamente virtualizados. Se há poucos anos os tribunais ainda se preocupavam com a transmissão de documentos por fax [2], atualmente já se iniciaram os esforços para criar algoritmos narrativos capazes de construir uma decisão judicial, bem como proposições no sentido de permitir a adaptação procedimental mediante automação de atos e fatos processuais, não apenas como uma mudança do meio físico para o meio virtual, mas como a criação de novas etapas procedimentais com a utilização das tecnologias [3].

Todas essas mudanças estão inseridas no fenômeno denominado virada tecnológica no Direito que, desde a década de 90, vem promovendo uma simbiose na qual a tecnologia impacta os institutos jurídicos e vice-versa [4]. Não se trata de simples automação de tarefas repetitivas que eram realizadas por advogados, juízes e servidores dos órgãos judiciários, mas, sim, de verdadeira transformação dos institutos processuais, que podem ser reformulados com vistas a proporcionar melhores formas de solucionar os conflitos existentes.

Nesse cenário, ganham destaque os denominados tribunais online, partindo da premissa de que, apesar de estarem no século XXI, os tribunais se mantiveram fundamentalmente instituições dos séculos XIX e XX. Em razão do atraso, os tribunais online seriam, para alguns mais ufanistas, a solução para o problema da ineficiência dos sistemas judiciais, pois poderiam modernizar e simplificar o acesso do cidadão, gerando melhoria no sistema e consequente redução do acervo processual [5].

O termo tribunais online se refere a qualquer tipo de serviço público de gerenciamento e resolução de conflitos fornecido pelo Estado e pode admitir duas concepções: uma específica, referente à solução de casos por juízes humanos, mas não em tribunais físicos; e outra mais ampla, que diz respeito a toda iniciativa de um tribunal para produzir mais do que decisões judiciais, como por exemplo conciliações online, serviços de autoajuda e de orientação jurídica para pro se litigation, por meio das tecnologias cotidianas, como aplicativos, smartphones, etc [6].

A noção mais ampliada dos tribunais online está ligada à Resolução Online de Disputas (Online Dispute Resolution  ODR), que pode ser compreendida como o uso das tecnologias da informação e da comunicação para auxiliar a resolução de conflitos em ambiente virtual. Esse conceito foi introduzido pela primeira vez em meados dos anos 90, depois que a internet foi aberta para atividades comerciais [7], fazendo com que a década fosse o marco no crescimento do acesso à internet, com o aumento das interações no ambiente virtual e, consequentemente, dos conflitos [8].

A ideia central da ODR é a possibilidade de utilizar uma variedade de tecnologias de informação e comunicação que variam do simples serviço de bate-papo ou videoconferência à utilização de inteligência artificial para obtenção de propostas de solução por algoritmos. Ou seja, não se trata de um software específico, mas do uso intencional da tecnologia para facilitar a resolução de problemas [9]. Assim, qualquer ferramenta tecnológica que, de um modo ou de outro, possa influenciar na solução de conflitos, fazendo isso de forma online, será uma ferramenta de ODR.

O campo para utilização da ODR é amplo nos tribunais, pois a utilização das ferramentas tecnológicas pode ser implementada em qualquer fase do procedimento de solução de conflitos, como para fornecer informações legais às partes, em linguagem acessível, estruturar negociações, sugerir soluções e até mesmo auxiliar no cumprimento das decisões [10]. Logo, a ODR não se trata apenas de automação, mas de profunda transformação no dimensionamento dos conflitos, consistente na utilização da tecnologia para executar tarefas e fornecer serviços que não seriam possíveis, ou mesmo concebíveis, no passado [11], não se resumindo à mera reprodução online das ADRs.

Diversos são os tipos de conflitos já submetidos às plataformas de ODR no mundo inteiro, como causas de menor complexidade e valor em Franklin, Ohio [12]; infrações de trânsito em Michigan [13]; litígios decorrentes de contratos de locação em British Columbia [14]; reclamações sobre cobranças indevidas de tributos em Ohio [15]; e até conflitos familiares de menor complexidade, como já ocorre em Michigan, por meio das plataformas MiChildSupport e MyLawBC [16].

Se essa transformação já era uma tendência mundial, a pandemia causada pelo novo coronavírus a acelerou, forçando os tribunais a adotarem medidas para manutenção da atividade jurisdicional mesmo com as limitações de presença física impostas pelas quarentenas decretadas em diversos países.

São exemplos dessas iniciativas a utilização, em audiências, do software Cisco Webex pelos tribunais brasileiros [17] e americanos de Colorado, New Hampshire, Oregon, Pennsylvania, Utah e Virginia, além do software Skype, pelos tribunais de Nova Iorque e Oregon, do software Microsoft Teams pelos tribunais de Oregon e Wyoming e do software Zoom pelos tribunais de Michigan, Nova Jersey e Texas[18].

Na China, os tribunais começaram a fazer pleno uso da tecnologia da informação no trabalho contencioso desde o surto da Covid-19 analisando, no período de 3 de fevereiro a 20 de março, quase 550 mil casos online em todo o país, nos quais foram realizados mais de 440 mil pagamentos online, mais de 110 mil sessões judiciais online e mais de 200 mil mediações online [19].

A importância das medidas online para o acesso à jurisdição é sentida quando se percebe que o Civil Resolution Tribunal, de British Columbia, não sofreu maiores impactos com a pandemia, mantendo-se em pleno funcionamento, pois funciona remotamente desde a sua criação, em julho de 2016 [20].

No Brasil, o estado emergencial de saúde provocado pela pandemia da Covid-19 levou o Conselho Nacional de Justiça a implementar uma Plataforma Emergencial de Videoconferência para Atos Processuais, propiciando a criação de salas virtuais pelos juízes para realização de sessões de julgamento, audiências, reuniões, interação com advogados públicos e privados, membros do Ministério Público e defensores públicos e, se necessário, a realização de sustentação oral de modo virtual e ao vivo [21].

No STF, a Emenda Regimental nº 53/2020 [22] e a Resolução 669/2020 autorizaram que qualquer processo, inclusive os de maior relevo, tais como as ações que viabilizam o controle concentrado de constitucionalidade e recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida, sejam julgados no plenário virtual. Contra a medida, um grupo composto por mais de cem advogados encaminhou uma carta ao presidente do STF argumentando que haveria violação à publicidade e restrição à participação dos advogados[23]. Uma reflexão necessária, pois audiências, em especial de instrução, e sustentações por videoconferência perdem a tatibilidade do contato corporal, “pela pluridimensionalidade e multiplicidade  de camadas da percepção humana”, uma vez que, como adverte Han sobre os impactos da tecnologia nas relações humanas, “a comunicação digital é uma comunicação pobre de olhar” [24].

Já no STJ, a Resolução STJ/GP nº 9, de 17 de abril de 2020 [25], permitiu que as sessões presenciais de julgamento da Corte Especial, das Seções e das Turmas, ordinárias ou extraordinárias, sejam realizadas por videoconferência até 31 de maio, ressalvando o direito de qualquer parte ou do Ministério Público destacar o processo para ser julgado em sessão sem videoconferência. As videoconferências podem ser acompanhadas ao vivo pelo canal do STJ no Youtube [26].

No âmbito da produção legislativa brasileira, chama atenção a alteração na Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais) promovida pela Lei 13.994/20, publicada em 27 de abril. Referida lei teve o objetivo de possibilitar a conciliação não presencial no âmbito dos Juizados Especiais Cíveis, acrescentando ao artigo 22 da Lei 9.099/95 o § 2º, segundo o qual “é cabível a conciliação não presencial conduzida pelo Juizado mediante o emprego dos recursos tecnológicos disponíveis de transmissão de sons e imagens em tempo real, devendo o resultado da tentativa de conciliação ser reduzido a escrito com os anexos pertinentes”.

Ao que parece, a Lei nº 13.994/20 também criou uma espécie de revelia pela recusa em participar da tentativa de conciliação não presencial, o que deve ser lido com todas as cautelas possíveis, em razão das dificuldades de acesso aos meios digitais e da dificuldade que alguns possam ter com o manejo das ferramentas eletrônicas [27].

Como se vê, a crise ressaltou a importância das ferramentas tecnológicas para continuidade da prestação jurisdicional em períodos de distanciamento físico, mas também acelerou o movimento de informatização do judiciário, mostrando que a tecnologia pode contribuir para o aumento da produtividade dos tribunais [28]. No entanto, não se pode confundir o aumento de números com a melhoria da aplicação do direito, o que evidencia a preocupação sobre discursos que atrelam a eficiência à simples melhora quantitativa dos tribunais, olvidando-se que é a melhoria qualitativa que garante a legitimidade das decisões judiciais.

Por isso, os tribunais precisarão encontrar respostas para uma equação nada simples: garantir o acesso à jurisdição em ambientes online, mantendo a eficiência e observando o modelo democrático de processo inaugurado, no Brasil, pela Constituição de 1988 [29]. Não se pode esquecer a advertência de Neil Postman de que para cada vantagem que uma nova tecnologia oferece, sempre há uma desvantagem correspondente e, em cada situação, a desvantagem pode exceder em importância a vantagem; ou a vantagem pode valer custo [30]. Faz-se necessário, assim, um olhar sério e metodológico sobre as implicações da tecnologia no campo do Direito Processual, sobretudo quando os impactos podem atingir direitos fundamentais, como a propriedade, a liberdade, a segurança e o acesso à justiça.

Por fim, não podemos anuir a uma suposta redução do debate da possibilidade dos tribunais online: se as cortes seriam serviços ou locais, como faz Susskind [31], pois essa simplificação despreza o papel do processo como garantia e dos tribunais como instituições de implementação do devido processo constitucional. Ser online não permite descumprimento do ordenamento nem tampouco a redução da atividade jurisdicional a um mero serviço.

 é sócio do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito Processual, professor adjunto na PUC Minas e na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Membro da Comissão de Juristas que assessorou na elaboração do CPC/2015 e diretor acadêmico do Instituto de Direito e Inteligência Artificial (Ideia).

 é assessor judiciário no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, mestrando em Direito Processual na PUC Minas e especialista em Direito Público.