Categorias
Notícias

Lorenzo Parodi: A cadeia de custódia da prova digital

A cadeia de custódia pode ser definida como o conjunto de procedimentos documentados que registram origem, identificação, coleta, custódia, controle, transferência, análise e eventual descarte de evidências.

O conceito de preservação da cadeia de custódia no processo penal diz respeito à garantia de integridade e, por consequência, credibilidade e prestabilidade da prova, mas, também, ao exercício do contraditório pelas partes que devem ter acesso a una prova certamente íntegra, sem esquecer o juiz, que é o destinatário da prova.

A atenção à cadeia de custódia no processo penal é comum e crescente em muitos países. Da mesma forma, no Brasil, a preservação da cadeia de custódia e a necessidade de considerar imprestável a prova quando sua cadeia de custódia tiver sido quebrada, por se tratar, nesse caso, de prova de integridade duvidosa, pois contaminada até pela simples possibilidade de adulteração, foram objeto de importantes estudos jurídicos cujas teses foram acolhidas, em muitos casos, pelas cortes brasileiras e acabaram formando jurisprudência.

Destacam-se, neste sentido, os brilhantes e profundos estudos e obras do preclaro professor Geraldo Prado, certamente o pioneiro no Brasil das teses envolvendo cadeia de custódia.

Finalmente, com o advento da Lei 13.964/2019 (lei “anticrime”) e a consequente introdução no CPP dos Artigos 158-A até 158-F, apareceu a primeira formal e legal definição de cadeia de custódia e o reconhecimento de sua relevância.

De acordo com a mencionada lei, a cadeia de custódia das evidências (ou vestígios) compreende, resumidamente, os seguintes procedimentos ou etapas:

I Reconhecimento: ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial;

II Isolamento: ato de evitar que se altere o estado das coisas;

III Fixação: descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito;

IV Coleta: ato de recolher o vestígio, respeitando suas características e natureza;

V Acondicionamento: procedimento por meio do qual cada vestígio coletado é embalado de forma individualizada, com anotação da data, hora e nome de quem realizou a coleta;

VI Transporte: ato de transferir o vestígio de um local para o outro, utilizando as condições adequadas, de modo a garantir a manutenção de suas características originais, bem como o controle de sua posse;

VII Recebimento: ato formal de transferência da posse do vestígio, que deve ser documentado;

VIII — Processamento: exame pericial em si, manipulação do vestígio de acordo com a metodologia adequada;

IX Armazenamento: procedimento referente à guarda, em condições adequadas, do material a ser processado, guardado para realização de contraperícia, descartado ou transportado;

X Descarte: procedimento referente à liberação do vestígio, mediante autorização judicial.

Importante, também, destacar que, de acordo com o artigo 158-A, §2º, instituído pela supracitada lei “anticrime”, “o agente público que reconhecer um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial fica responsável por sua preservação”.

É importante observar que a Lei 13.964/2019, após uma definição introdutiva geral do conceito de cadeia de custódia, foca sobretudo nos procedimentos a serem aplicados para o caso de evidências físicas e materiais, tratando de questões como sua descrição e posição no local do crime, sua coleta e acondicionamento de acordo com as características físicas, químicas e biológicas etc.

Fica evidente que foram tomados cuidados na descrição detalhada dos procedimentos relativos à cadeia de custódia de evidências típicas de certos tipos penais, mas não foram tratados os procedimentos relativos a outros tipos de evidências, igualmente comuns, sobretudo em outros tipos penais.

Estou me referindo, em especial, às evidências digitais, tão comuns em casos de corrupção, lavagem de dinheiro e crimes econômicos em geral, mas que, com a evolução e difusão da tecnologia, hoje aparecem também em investigações relativas a tipos penais como roubo, tráfico, sequestro e outras “tradicionais” atividades criminosas organizadas.

Refletindo sobre tal aparente omissão, em uma lei promovida num momento de grandes casos de corrupção e lavagem de dinheiro, repletos de provas digitais, cheguei à conclusão de que, na realidade, pode se tratar de uma escolha intencional, inteligente, racional e perfeitamente explicável.

De fato, definir em lei procedimentos técnicos relativos à cadeia de custódia de evidências digitais poderia ser inútil ou até contraproducente, pois, num ambiente de rápida e constante evolução tecnológica, haveria grande chance de tais procedimentos ficarem rapidamente ultrapassados e não mais conformes às melhores práticas.

Por essa razão, é certamente melhor criar uma lei, como aquela em foco, que defina conceitos e critérios de cunho geral, remetendo a normas técnicas de mais fácil atualização, a definição detalhada dos procedimentos relativos a âmbitos em constante evolução, como o mundo digital.

Quais deverão ser, então, os procedimentos a serem adotados em relação à cadeia de custódia de evidências digitais, no que diz respeito a conceitos, aspectos e etapas gerais definidas na referida lei, mas não diretamente aplicáveis a evidências digitais na forma em que foram descritos em tal lei?

Nos socorre, neste caso, a norma ABNT/ISO 27037, em vigor no Brasil desde janeiro de 2014 e que se coaduna perfeitamente ao caso.

Tal norma, redigida pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas, órgão responsável pela normalização técnica no Brasil) com base na equivalente norma internacional elaborada pelo ISO (International Organization for Standardization), descreve e define as “Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital”.

Apesar de não se tratar de norma cogente, por não haver, ainda, um reconhecimento explícito em lei, é, de fato, a única norma elaborada por organismo competente e reconhecido no Brasil, que trate explicitamente do assunto em foco, além de ser a norma que, em sua versão internacional (ISO), descreve os procedimentos adotados de direito ou “de facto” nos ordenamentos de muitos países.

Por essas razões, considerando de um lado, a existência da necessidade legal, em força do disposto pela mencionada Lei 13.964/2019, de realizar adequados e documentados procedimentos de identificação, coleta, aquisição e preservação de evidências (cadeia de custódia), e, por outro lado, a ausência de uma descrição detalhada de tais procedimentos para o caso de evidências digitais, entendo que seja perfeitamente possível defender a plena e necessária aplicabilidade da norma ABNT 27037 para a descrição dos procedimentos necessário para garantir a de cadeia de custódia de evidencias digitais.

Mas o que diz, afinal, a norma ABNT 27037?

O intuito aqui não é reproduzir um documento normativo com 50 páginas, mas resumir alguns dos aspectos de maior relevância.

A norma define quatro aspectos-chave no manuseio da evidência digital: auditabilidade, justificabilidade e repetibilidade ou reprodutibilidade (dependendo das circunstâncias particulares).

O processo de manuseio, por sua vez, é composto pelas seguintes etapas: identificação, coleta, aquisição e preservação.

Nesta sede concentrarei a atenção em dois desses procedimentos ou etapas, frequentemente fonte de problemas, a identificação e a preservação.

Com relação à identificação é oportuno, destarte, observar que a evidência digital é representada na forma física e lógica. A forma física inclui a representação de dados dentro de um dispositivo tangível. A forma lógica da evidência digital refere-se à representação virtual dos dados dentro do dispositivo.

O processo de identificação envolve a pesquisa, reconhecimento e documentação da evidência digital. É importante que o processo de identificação inicie identificando o armazenamento da mídia digital e dos dispositivos de processamento que podem conter a potencial evidência digital.

Esse processo também inclui uma atividade para priorizar a coleta das evidências baseada em sua volatilidade. Recomenda-se que a volatilidade dos dados seja identificada para garantir a correta ordem dos processos de coleta e aquisição para minimizar o dano à potencial evidência digital e para obter a melhor e mais completa evidência.

Adicionalmente, é oportuno que o processo identifique e considere a possibilidade de uma potencial evidência digital ocultada (por exemplo, um arquivo cancelado).

Com relação a identificação de mídias, o processo diz respeito tanto à identificação física (descrição, tipo, marca, número de série, fotografia etc.) quanto à identificação lógica, que, de norma, é realizada através do cálculo do valor (ou código) hash, utilizando funções quais MD5, SHA1 ou SHA2 (as mais comuns).

Com relação à preservação da evidência, essa diz respeito à proteção de sua integridade para garantia de sua utilidade e validade probatória. O processo de preservação envolve a guarda da evidência digital e do dispositivo digital que pode conter a evidência digital contra espoliação ou adulteração de qualquer tipo.

Recomenda-se que o processo de preservação seja iniciado e mantido durante o processo de manuseio da evidência digital, começando pela imediata identificação (física e lógica) do dispositivo digital que contém a potencial evidência digital, assim que se tem o primeiro contato com ele.

Recomenda-se, ainda, que não haja adulteração ou espoliação aos dados em si ou a quaisquer metadados associados a eles (por exemplo, registro de data e horário).

É necessário que seja possível demonstrar que a evidência não foi modificada, desde que ela foi coletada ou adquirida, ou de fornecer os fundamentos e ações documentadas se alterações inevitáveis foram feitas. No caso de mídias e arquivos, tal demonstração pode ser realizada a qualquer momento comparando o código hash calculado no momento da identificação inicial da evidência, com o código hash da evidência no momento da verificação, sendo certo que os dois códigos deverão ser idênticos.

É importante observar que, até em processos em curso, não é incomum encontrar situações onde os procedimentos e cuidados acima descritos foram completamente ou parcialmente desconsiderados pelas autoridades prepostas, sobretudo na fase investigativa.

É possível pensar que tal fenômeno seja consequência de falta de suficiente preparação técnica, equipamentos e competência no manuseio de evidências digitais, por parte de alguns agente públicos, mas pode haver também, às vezes, uma componente de descaso com o devido processo legal, possivelmente pela pressa de “mostrar serviço” e/ou de chegar a conclusões, sobretudo considerando que o conceito de preservação da cadeia de custódia não era, até o momento, explicitamente previsto em lei.

Seja o que for, isso já deu causa à invalidação de provas e anulação de processos no passado, quando a preservação da cadeia de custódia ainda era uma prática não explicitamente normatizada no Brasil, especialmente no que diz respeito às evidências digitais.

Agora, com o novo embasamento legal, deverá ser objeto de uma atenção cada vez maior por parte do Judiciário e passar a compor, de vez, o bojo dos procedimentos necessários para a legalidade e admissibilidade da prova digital (e não) no processo penal.

Categorias
Notícias

Na epidemia, é preciso priorizar lado humano no Direito Penal

A epidemia de coronavírus está deixando claro que os operadores do Direito devem priorizar o lado humano e os direitos fundamentais na aplicação das leis penais. Essa é a opinião de especialistas em seminário virtual promovido nesta quarta-feira (3/6) pela TV ConJur.

Reprodução

O debate é parte da série de encontros chamada “Saída de Emergência” e teve o tema “Direito Penal em tempos de quarentena”. O evento foi apresentado e organizado por Otavio Luiz Rodrigues Jr, professor da USP e integrante do CNMP.

O ministro do Superior Tribunal de Justiça Nefi Cordeiro afirmou que a tecnologia tem ajudado no funcionamento de órgãos do sistema de Justiça durante o isolamento social. No entanto, os operadores do Direito não podem se esquecer do lado humano dos acusados e réus, tratando-os de forma desconectada e virtual.

O criminalista José Luis de Oliveira Lima, o Juca, disse que, na quarentena, as interações entre advogados e integrantes do Ministério Público têm sido mais amistosas.

“Fizemos um acordo de não persecução civil, com reflexos no penal, com o MP-SP. Um dos advogados que estavam do meu lado contraiu o coronavírus e foi internado. O MP sempre se preocupava com ele, teve muita solidariedade. No Rio de Janeiro, também estamos negociando acordo de não persecução penal com a força-tarefa da ‘lava jato’, e eles tiveram a mesma cumplicidade. A relação entre as partes num processo penal pode ser mais leve”.

Já a professora Flaviane de Magalhães Barros Moraes (UFOP PUC-MG) disse que é preciso discutir a reparação do dano das vítimas da Covid-19 — algo que só tem sido questionado nos âmbitos civil e administrativo, mas não no penal.

“Estado forte é o Estado que respeita os direitos dos presos”, avaliou a professora Ana Elisa Liberatore Bechara (USP). Ela elogiou a Recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça. A norma sugere a reavaliação de prisões provisórias de idosos ou integrantes do grupo de risco da Covid-19. Porém, criticou a falta de unidades de saúde em presídios e, especialmente, a ideia de abrigar detentos em contêineres. A seu ver, a medida levaria a “enormes violações de direitos humanos” e aumentaria o risco de contaminação pelo coronavírus.

Por sua vez, Samantha Chantal Dobrowolski, subprocuradora-geral da República, opinou que o Direito Penal não é adequado para induzir políticas públicas, salvo no caso do sistema prisional em face da epidemia. Na visão dela, o atual cenário “gera reflexão de que é preciso atuação estatal pelo desencarceramento, não necessariamente pela atuação judicial”.

Contudo, analisou, o Direito Penal não deve ser usado para forçar pessoas a cumprir medidas para evitar a propagação do coronavírus. O melhor, nesse caso, é aplicar multas administrativas a quem desrespeitar as regras.

Respeito ao Judiciário

O ministro Nefi Cordeiro defendeu o respeito às diferenças — algo fundamental para o desenvolvimento da sociedade, a seu ver.

“A não admissão do diferente contamina não só as pessoas, mas as instituições. Vemos em todos os poderes manifestações, no mínimo, polêmicas. O Judiciário determinando se aplica ou não um medicamento. O Legislativo adiando decisões urgentes. E o Executivo isolando-se. É preciso resgatar o sentimento de humanidade, de admissão das diferenças, pois só através delas poderemos evoluir”, declarou.

Rebatendo as constantes críticas ao Judiciário, Juca afirmou que o Poder deve ser defendido como um instrumento de cidadania.

“As pessoas têm o direito de criticar decisões judiciais, mas de forma civilizada. Quem ultrapassar esses limites tem que responder por isso. Não podemos admitir que um ministro seja ofendido em um avião e fique por isso mesmo. Além de ser um ato de covardia, a pessoa tem que ser responsabilizada por esse ato. Isso não é liberdade de expressão. A sociedade tem que ficar mais civilizada”.

Clique aqui para ver o seminário ou acompanhe abaixo:

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Categorias
Notícias

Streck e Giannakos: Pode o juiz dispensar prova para reduzir aluguel?

No dia 30 de abril de 2020, foi publicado artigo sobre a importância “cumprir a letra da lei”. Neste, sustenta-se que quando o judiciário se nega a cumprir um claro texto e não o declara inconstitucional, simplesmente lhe nega a validade. Como se fosse nulo, írrito, nenhum o texto da lei”.

Em outro texto publicado, em 26 de março de 2020, faz-se menção à decisão do juiz do Rio de Janeiro que permitiu os cultos da igreja de Silas Malafaia, mesmo no meio do estado de calamidade provocado pelo coronavírus.

Em momentos crise e extrema dificuldade (como o que vivemos), o Direito deve ser utilizado justamente para nos auxiliar a vencer a crise e não ser desvirtuado para criar ainda mais problemas.

Ou seja, não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Para não esquecer: Foram criados os artigos 489, §1º e 926, ambos do CPC/2015. No caso do primeiro, o legislador teve como intuito criar parâmetros para a decisão judicial e requisitos para que deveriam constar na decisão tomada pelo julgador. No caso do segundo, para exigir dos Tribunais e dos juízes a uniformização da sua jurisprudência mantendo-a estável, íntegra e coerente.

A integridade é a exigência de que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, em uma perspectiva de ajuste de substância. A integridade impede que o judiciário use dois pesos e duas medidas.

A coerência, por sua vez, é a necessidade de, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Da mesma forma, haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário.

O julgador não poderá utilizar-se de argumentos que não estejam coerentemente sustentados, o que inclui, como pode de partida, uma autovinculação com aquilo que antes se decidiu.

Neste sentido, pode-se dizer que no CPC/2015 não há espaço para decisões personalistas com que estivesse criando o direito a partir de um grau zero. O “livre convencimento” (que foi retirado do texto do CPC) não é o mesmo que decisão fundamentada. A segurança jurídica e a proteção da confiança e da isonomia somente fazem sentido se as decisões obedecerem à coerência e à integridade.

No entanto, é muito comum vermos na prática ambos os artigos serem negligenciados pelo julgador. O resultado disso é as diversas decisões sobre a mesma temática com resultados distintos.

Em pesquisa realizada recentemente ao analisar os volumes de processos ajuizados no Tribunal de Justiça de São Paulo entre janeiro e março de 2019 e no mesmo período de 2020, verificou-se o aumento em 20% no ajuizamento de ações judiciais na quinzena que imediatamente antecedeu o fechamento dos tribunais, indicando, já naquele momento, que o cenário de pandemia incitaria o maior volume de processos. Passada a fase inicial de isolamento absoluto, ou, com mais razão, prolongado o isolamento por mais dias, dilatando, em igual proporção, os efeitos nefastos à economia, os números voltam a crescer de modo absolutamente preocupante.

Em decisão recente proferida em comarca localizada na Serra Gaúcha, o juízo reconheceu que a pandemia instalada no país, com curva acentuada de contaminação em razão da Covid-19, teria desequilibrado contrato de locação comercial firmado em agosto de 2019, viabilizado a redução do locativo mediante via judicial.

Em sua conclusão, determinou que o valor locatício fosse reduzido de R$ 5.250 para R$ 1.100 pelo período de 05 meses. Uma redução temporária para 20,95% do valor locativo inicial.

Na sua fundamentação, o juízo sustentou a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19.

Em outras decisões judiciais já veiculadas pela mídia, por sua vez, o Poder Judiciário tem concedido reduções dos locativos nos mais diversos percentuais, como 60%, 50% e 70%. Em outros, em que os locatários requereram a isenção do pagamento, a justiça paulista negou o pedido. O TJ/SP já se manifestou sobre a temática, revertendo decisão que havia indeferido pedido de tutela de urgência em primeiro grau e concedendo a redução de 50% do locativo em segundo grau.

Mas, por qual motivo um juiz determina uma redução quase 80% de um aluguel? Qual é a prognose? Qual é a diferença deste caso para o outro em que houve uma redução de 50%? Ou uma redução de 60%?

Será que com a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19, por si só, justificaria o arbitramento da redução sem a produção de prova específica do prejuízo? Como o juízo deve estipular o percentual de redução? Tira de que lugar esse percentual? De seu subjetivismo?

Dito de outra forma, no momento em que o juiz arbitra um percentual de redução do locativo, sem a realização de prova específica pelo autor, ele não estaria agindo de forma discricionária-arbitrária? A resposta é (deveria) ser óbvia.

O juiz pode fazer coisas, mas não pode tudo. E as que pode, deve fundamentar. E essa fundamentação não pode ser qualquer uma. Ou nenhuma. Aliás, aqui basta que invoquemos os três primeiros incisos do artigo 489, parágrafo 1º. do CPC:

Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

Isto para começar!

Seguimos. Que a incidência do coronavírus nas relações contratuais não possui precedentes é indiscutível. Porém, o ponto crucial é em que medida e a profundidade em que o juiz pode modificar a relação contratual já existente e pré-estabelecida entre as próprias partes.

A racionalidade jurídica vem sendo substituída por “racionalidades instrumentais”, constituída de opiniões e juízos morais. Ou seja, quais os parâmetros para estabelecer o percentual? Seria o caso de ocorrência do famoso “decido conforme a minha consciência”?

No momento em que a coerência e integridade são ignorados, os incentivos judiciais tornam-se protagonistas.

Neste ponto, o que se propõe é a possível contribuição da AED (Análise Econômica do Direito) para com a CHD (Crítica Hermenêutica do Direito).

Este debate ocorreu, em 2015, entre os Professores Lenio Streck, Alexandre Moras da Rosa e Aury Lopes Junior.

Do ponto de vista econômico, no momento em as decisões judiciais veiculam a possibilidade de repactuação dos contratos de locação comerciais, ainda mais, sem critérios definidos, incentivam que boa parte dos locatários busquem este benefício mesmo que a sua situação fática específica não exija (“comportamento oportunista”). Do ponto de vista econômico, tais notícias dificultam justamente a cooperação pré-existente entre os envolvidos.

O que se cria na prática é uma reação em cadeia. Os locatários, incentivados pela ausência de coerência e integridade nas decisões judiciais, ajuízam ações revisionais dos contratos de locação com intuito de terem o mesmo benefício, mesmo que, em certos casos, o locatário sequer necessite da revisão. O Direito, que deveria pacificar e regular, acaba, por uma de suas pontas, incentivando o contrário.

O resultado de tudo isto é uma descrença no Judiciário. Alguns exemplos recentes demonstrar a concretização deste sintoma: i) um apelo à utilização da inteligência artificial nos processos judiciais, considerando, inclusive, a hipótese da substituição do juiz pela máquina; ii) a criação da figura dos negócios jurídicos processuais (art. 190, CPC).

Quanto ao primeiro, podemos trazer como exemplo os casos das ferramentas criadas pelos Tribunais de Justiça e Superiores, como o Radar (TJ/MG), que recentemente julgou um grande número de recursos de segundos; o Victor (STF), que ainda está em fase de aprimoramento; e o Poti (TJ/PE) que realizar bloqueios judiciais das contas de devedores em ações de execuções fiscais.

Quanto ao segundo, originário da experiência positiva tida pelas partes e advogados na arbitragem, possibilita uma maior participação das partes no processo, resultando numa comparticipação dos sujeitos processuais na construção da decisão que deva solucionar determinada ação judicial. A ideia é que as partes possam customizar o processo e readequá-lo para a maior adequação dos seus interesses. É possibilitado às partes estipulares mudanças no procedimento e convencionarem sobre seus ônus, poderes, faculdades, calendário processual, direito material e deveres processuais. O art. 190, parágrafo único, do CPC dispõe sobre as três hipóteses taxativas para impedir a validade dos negócios jurídicos processuais.

Portanto, a confiança no Judiciário já vem abalada. A legislação moderna já tem apresentado este sintoma e, pelo que se identifica na prática, a situação tende a piorar.

A solução: a volta dos juízes à fundamentação jurídica, ao Direito, à necessidade de uniformizar a sua jurisprudência (coerência e integridade viram para isso!!!), sob pena de, conforme dito no início do texto, negar validade à lei simplesmente pelo seu desuso proposital.


https://www.conjur.com.br/2020-abr-30/senso-incomum-tao-dificil-cumprir-letra-lei-art-212-cpp acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/senso-incomum-cada-cabeca-sentenca-tese-espantalho acessado no dia 10/05/2020.

STRECK, Lenio Luiz. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2014, p. 158.

https://www.conjur.com.br/2020-mai-11/leonardo-costa-achatemos-curva-acoes-judiciais

https://www.espacovital.com.br/noticia-37903-reducao-no-aluguel-valor-mensal-passa-r-5250-para-1100 acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-abr-27/juizes-proibem-reabertura-lojas-concedem-reducao-aluguel acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/interrupcao-atividades-nao-autoriza-suspensao-alugueis acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/liminar-permite-reducao-aluguel-pago-restaurante-epidemia

https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/interrupcao-atividade-nao-desobriga-empresa-pagar-aluguel?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook acessado em 10/05/2020

https://m.migalhas.com.br/quentes/326373/e-razoavel-reducao-de-50-no-aluguel-de-imovel-comercial-em-razao-da-pandemia acessado em 10/05/2020.

Oliver Williamson define-o utilizando uma célebre formulação: “By opportunism I mean self-interest seeking with guile”. O mesmo autor, ao conceituar o oportunismo, dispõe: “More generally, opportunism refers to the incomplete or distorted disclosure of information, especially to calculated efforts to mislead, distort, disguise, obfuscate, or otherwise confuse”. (WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. The Free Press, a Division of Macmillan Inc, 1985, p. 47).

https://www.conjur.com.br/2020-mai-01/santolim-giannakos-tomada-decisoes-momentos-crise

https://www.migalhas.com.br/depeso/319005/inteligencia-artificial-e-o-direito-uma-realidade-inevitavel

GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Negócios jurídicos processuais e análise econômica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 71.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

 é advogado, mestre e doutorando em Direito pela Unisinos. Sócio do escritório Giannakos Advogados Associados.