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Arake e Ramagem: Reequilíbrio contratual e Dispute Boards

É certo que a pandemia da Covid-19 e as diversas medidas adotadas pela Administração Pública para coibir a propagação do vírus têm impactado negativamente as relações contratuais já existentes e de trato diferido, tais como contratos de obras de infraestrutura.

Em alguns estados e municípios, a construção civil não foi considerada atividade essencial e nessas localidades as obras em andamento tiveram de ser paralisadas. Por outro lado, naquelas em que a construção civil foi reconhecida como serviço essencial desde o início da pandemia as obras não foram paralisadas, mas tiveram o seu ritmo diminuído, seja porque o transporte de insumos essenciais não chegou a tempo, seja porque houve redução no número de trabalhadores nos canteiros de obras, tendo em vista as recomendações de segurança da Organização Mundial da Saúde (OMS). Houve também casos em que as partes contratantes optaram por suspender a execução da obra para preservação da imagem das empresas em meio à pandemia, ante o risco de repercussões negativas por parte da sociedade.

Esse cenário de crise sem precedentes é, por muitos, considerado imprevisível. Por isso, discussões sobre a aplicabilidade de institutos que autorizam o reequilíbrio econômico do contrato em razão da superveniência de fato imprevisível estão em foco, tais como a teoria da imprevisão para os contratos públicos e a onerosidade excessiva superveniente para os contratos privados. Entretanto, a mera presença desse requisito não automatiza a aplicabilidade desses institutos. É necessário demonstrar a existência de nexo entre esse fato e o prejuízo alegado.

Por exemplo, suponha um empreiteiro que, contratado por uma concessionária de energia para construir uma usina hidrelétrica, teve, em razão das medidas adotadas contra a propagação da Covid-19, a sua mão de obra e seus equipamentos alocados ociosos, o que lhe gerou custos. Ele pode entender que não assumiu os riscos dessa pandemia, de modo que não deveria arcar com os respectivos custos. Assim, para fins de reequilíbrio econômico do contrato, pleiteia a assinatura de aditivo contratual para repactuação de preços de seus serviços e para repactuação de prazos de entrega da obra. Pleitos esses que precisam ser analisados adequadamente, o que demanda tempo.

Geralmente, tanto a readequação do cronograma como a finalização do empreendimento são importantes para ambas as partes, de modo que há a pronta necessidade e o interesse de pactuarem aditivo para repactuação do prazo. Ocorre que o mesmo não se verifica com relação à análise do pleito de repactuação de preço, pois o único interessado nessa questão é o empreiteiro. O consenso quanto à pronta necessidade de se repactuar prazos e a incerteza sobre a repactuação de preços podem dar ensejo a litígios e à paralisação das obras. Explica-se.

De um lado, o empreiteiro pode não concordar em assinar um aditivo para a repactuação de prazos sem que se contemple também a repactuação de preços. Isso pode se dar por diferentes razões. Seja pela insegurança em continuar a obra sem a garantia de ressarcimento das despesas decorrentes da ociosidade suportadas pelo empreiteiro, seja para, de forma oportunista, aproveitar a urgência da obra para a contratante e, como instrumento de barganha, condicionar a continuidade da obra à repactuação de preço (hold up problem) [1].

De uma forma ou de outra, é possível que outras controvérsias surjam, tornando a relação entre as partes ainda mais litigiosa. Nada obstante, enquanto o aditivo contratual não for assinado, as obras podem ser interrompidas ou pode haver uma diminuição expressiva do ritmo das atividades contratadas. Nesse ponto, convém mencionar que, em 2019, o TCU identificou, em seu acórdão nº 1.079/2019 do plenário, que 23% das obras estão paralisadas por abandono da empresa contratada.

Por outro lado, se o empreiteiro assinar o aditivo apenas com relação aos prazos, mas não com relação aos preços, ele poderá não conseguir restabelecer o equilíbrio econômico contratual em função da ociosidade da mão de obra e dos equipamentos.

Isso porque, quando pactuado um aditivo em momento posterior ao protocolo do pleito administrativo, a presunção é de que o aditivo contemplaria quaisquer fatos ocorridos anteriormente, salvo prova de que fora feita uma ressalva nesse sentido. Essa não apenas é a lógica contratual estabelecida no ordenamento jurídico, como também é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça (REsp 1262160/SC), o que pode incentivar a contratante a se portar de maneira improba.

Suponha que a contratante tenha ciência de que o aditivo firmado para repactuação de prazos não implicou na renúncia à pretensão de repactuação de preços. Se não houver prova nesse sentido ou se essa prova for de difícil produção, a contratante, confiando nesse fato, pode recusar a oportunidade de compor amigavelmente esse litígio, restando ao empreiteiro apenas a via jurisdicional. Em outras palavras, a parte contratante pode se aproveitar da assimetria informacional do órgão jurisdicional para inviabilizar a repactuação de preços pela via extrajudicial.

Percebe-se, portanto, que há uma dicotomia. De um lado, a obra não pode parar, mas, de outro, o empreiteiro precisa da segurança de que não sofrerá prejuízos em decorrência do fato imprevisível ou de que esses prejuízos lhe sejam ressarcidos. É necessário que se construa uma solução apta a permitir tanto a resolução eficiente de conflitos, como o desincentivo ao comportamento oportunista. Nesse contexto, os chamados Comitês de Resolução de Disputas (Dispute Boards) podem contribuir para a resolução desse problema.

A função dos Dispute Boards, diferentemente da arbitragem, não se limita a resolver os conflitos entre as partes, mas, também, a tornar a sua resolução mais rápida e eficiente, de modo a prevenir o escalonamento de conflitos. Na modalidade mais recomendada de Dispute Boards, qual seja, a de instalação do board logo no início do contrato (full term [2]), as partes elegem técnicos para acompanhar, em tempo real, todas as etapas da obra.

Esse acompanhamento próximo permite que os membros do Dispute Board saibam, em detalhes, as particularidades e a dinâmica do empreendimento em tempo real, impedindo a assimetria de informações entre as partes e os membros do Board. Essa fiscalização da obra in loco diminui o espaço para comportamentos oportunistas das partes, tais como o hold up problem. Ainda na mesma linha de raciocínio, a contratante teria menos incentivo para ignorar o pleito de repactuação de preços, dado que a proximidade dos membros do board aos fatos ocorridos na obra diminui a dificuldade de provar os fatos, bem como as ressalvas feitas pelo empreiteiro.

A decisão ou a recomendação [3] do board tende a ser acurada e célere, haja vista que seus membros conhecem a dinâmica dos eventos que ocorreram durante a execução do contrato. Dessarte, conforme apontam dados da Dispute Resolution Board Foundation (DRBF) [4], o conformismo das partes em relação às decisões e recomendações do board é alto: apenas 2% das controvérsias apreciadas formalmente pelos boards são, posteriormente, judicializadas ou submetidas a uma arbitragem.

Sabe-se, porém, que os Dispute Boards ainda são uma novidade no Brasil e que muitos contratos em execução não iniciaram com o board instalado, conforme recomendado.

O problema disso é que a instalação do board posterior ao conflito elimina a sua principal vantagem: impedir a assimetria de informação, dado que os membros do board estarão distantes temporalmente dos fatos, tal qual estariam um árbitro ou um juiz.

Por isso, apesar de em meio à pandemia estarem em voga os diversos métodos alternativos de resolução de conflitos, entre eles os Dispute Boards, deve-se considerar que o board instalado após o conflito pode não ser uma opção mais eficiente do que, por exemplo, a mediação e a arbitragem.

Nada obstante, se seguida a recomendação de instalação do board desde o início do contrato, ele representa um importante instrumento contratual para resolução eficiente de conflitos, para evitar a rediscussão do litígio pela via arbitral ou judicial e para desestimular eventual comportamento oportunistas de quaisquer das partes.

 


[1] Na visão de Fábio Coutinho de Alcântara: “Deixar de cooperar com a outra, obstaculizando ou impedindo (holding-up) a consecução de determinado ato em razão de sua posição favorável de barganha ou comportamento oportunista, mesmo que tal ato tivesse como resultado uma situação Pareto-ótima”. (GIL, Fábio Coutinho da Alcântara. A onerosidade excessiva em contratos de engineering. Tese de Doutorado. São Paulo: Departamento de Direito Comercial – USP, 2007, pp. 85-86)

[2] RIBEIRO, Marcia C. P.; ALMEIDA, Caroline S. Análise crítica das cláusulas dispute board: eficiência e casos práticos. Novos Estudos Jurídicos. Itajaí: Universidade do Itajaí, 2013, vol. 18, nº 2. p.231.

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Villa Nova e Simon: O STF e as ramagens constitucionais, parte 2

No artigo anterior, discutimos a suspensão da nomeação de Alexandre Ramagem como diretor-geral da Polícia Federal partindo dos elementos jurídicos que afetam a vida político-institucional do país (o “primeiro lado da moeda”). Muitos enxergaram intromissão na autonomia do Executivo. O caso volta à tona com operações da PF visando ao governador do Rio de Janeiro, opositor do presidente, e empresários e influenciadores digitais que o apoiam e financiam. Os dois lados acusam a PF de agir politicamente, sem se saber da correção jurídica das operações, mais uma vez com o STF envolvido.

As ramagens institucionais da nomeação de diretor da PF
Aqui, desenvolvemos o “segundo lado da moeda”: a exposição das ramagens constitucionais do político ao jurídico, ilustrando, com as decisões anteriores ao “caso Ramagem”, como a prática institucional da corte levou-a à crise de legitimidade e confiança em que se encontra.

Cinco atos de nomeação praticados pelos três últimos presidentes foram judicializados:

Caso 1 (2016): nomeação de Lula para a função de chefe da Casa Civil MSs 34.070 e 34.071, com liminar deferida pelo ministro Gilmar Mendes;

Caso 2 (2017): nomeação de Moreira Franco para ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência MSs 34.609 e 34.615, indeferidos pelo ministro Celso de Mello;

Caso 3 (2018): ação popular contra a nomeação de Cristiane Brasil como ministra do Trabalho e Emprego por violação da moralidade administrativa. A questão chegou ao STF na Rcl 29.508, decidida pela ministra Cármen Lúcia;

Caso 4 (2019): liminar indeferida em ação popular contra nomeação de Ricardo Salles como ministro do Meio Ambiente. A questão chegou ao STF na PET 8.351, arquivada pelo ministro Edson Fachin;

Caso 5 (2020): a indicação de Alexandre Ramagem para o cargo de DGPF (MS n.º 37.097), apreciada pelo ministro Alexandre de Moraes.

Do momento Moro ao ‘memento mori’: um exercício de memória e de imaginação
O que dizer sobre esses cinco “casos judiciais”? Temos cinco considerações a respeito.

Primeiro, são decisões proferidas por cinco ministros do Supremo dentre os quais três já desempenharam a função de presidente da corte (Celso de Mello, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia). Ou seja, tais atos decisórios foram produzidos por magistrados com ampla experiência institucional na corte.

Segundo, essas são cinco decisões particulares isoladas. Isto é, não são decisões judiciais colegiadas (note-se que, no plenário, seriam exigidos, pelo menos, seis votos num mesmo sentido e não apenas os cinco especificados). Assim, não é possível saber a posição do tribunal sobre a questão.

Terceiro, as cinco decisões sequer convergem quanto ao resultado pretendido pelos atores que mobilizaram o Supremo. Até o quinto caso, as decisões judiciais poderiam ser categorizadas, quanto aos seus efeitos políticos, num polêmico empate: os Casos 1 e 3 ensejaram a impugnação da nomeação pelo Supremo; os Casos 2 e 4 alcançaram consequência oposta. Assim, cabe ressaltar: ainda que se abra mão da ficção do “princípio da colegialidade”, não há estabilidade sequer quanto aos pronunciamentos individuais.

Quarto, dos cinco atos individuais, apenas o MS n.º 37.097 não envolveu a nomeação de ministro de Estado ou de função similar. Essa distinção não foi consignada pelo ministro Alexandre de Moraes. Nesse ponto, outra constatação constitucional e institucional relevante: a decisão não faz o levantamento dos entendimentos monocráticos que parecem ter se tornado de recorrência anual no último quinquênio.

Quinto, as decisões foram mobilizadas por cinco legendas partidárias: PPS, PSDB, Rede Sustentabilidade, PSOL, e PDT. A disputa fragmentária do presidencialismo de coalizão bate às portas do STF. Caberia indagar: o Supremo é uma “zona de amortecimento” dessas coalizões na tensa relação entre Executivo e Parlamento? Ou o Supremo passou a desempenhar papel estratégico na definição da governabilidade? Além da costura da maioria no Congresso, seria necessário acordo político com a maioria do Supremo para garantir a governabilidade, “com o Supremo, com tudo” (alusão a mais uma inesquecível comunicação telefônica vazada)?

Aparentemente, há algo ainda não percebido pela análise jurídica e política a respeito do perfil constitucional (jurídico-político) e institucional (político-jurídico) do Supremo. Vale perguntar: até quando o STF conseguirá manter sua pretensão de controle da política com base em decisões erráticas e sem definição clara de seu posicionamento?

Entre o poder e o dever, as ramagens são não apenas constitucionais, mas institucionais também. Isso não é estranho à conformação do Supremo. Assim como uma moeda, o STF possui duas faces: a jurídica (constitucional) e a política (institucional). É preciso superar a tendência de tachar de “técnica” a decisão do STF com a qual se concorda e de “política” aquela da qual se discorda. Tratando-se de Supremo, toda decisão é ato de direito e ato de poder. Essa conexão é o que torna tão interessante analisar os sinais de tremor no sismógrafo constitucional e institucional do país.

O STF ainda não fixou sobre o assunto entendimento que possa se enquadrar como “precedente”. Qual a mensagem que o Supremo transmite à sociedade e aos demais poderes ao decidir desse modo? A de que as suas decisões parecem ser tão aleatórias quanto o lance de uma moeda. Ora se obtém a face da “coroa”  e os valores jurídico-constitucionais (os ditos “princípios”) são sorteados ao sabor dos ventos. Ora dá “cara”, e a República por meio dos seus demais poderes igualmente constituídos parece constranger o STF a assumir riscos e a, no jogo da política, ganhar ou perder em termos de legitimidade constitucional ou de representatividade democrática.

E o Supremo tem construído suas respostas num jogo viciado, em que diz: “cara, eu ganho, coroa você perde”. Voltemos aos casos. No Caso 1, o ministro Gilmar Mendes entendeu: 1.a) que é cabível mandado de segurança coletivo impetrado por partido político para questionar ato do presidente da República; 1.b) que os precedentes sobre prorrogação de competência quando a renúncia de cargo é usada para atrapalhar julgamento de processo criminal são aplicáveis, pois a mudança de foro prejudica a persecução penal; 1.c) para a liminar basta a plausibilidade do direito, e a qualidade e legalidade da prova devem ser apreciadas só no julgamento de mérito (a “prova” era escuta telefônica sabidamente ilegal e fora de contexto divulgada ao arrepio das competências constitucionais pelo então juiz Sérgio Moro); e 1.d) é possível controlar ato político de presidente da República quando se verifica desvio de finalidade.

No Caso 2, o ministro Celso de Mello decidiu que: 2.a) não cabe mandado de segurança coletivo proposto por partido nesse tipo caso; 2.b) a mudança de foro não importa obstrução ou paralisação da persecução penal; 2.c) a prova pré-constituída juntada no mandado de segurança tem de ser inequívoca, mesmo para a liminar, sob pena de não afastar a presunção de legitimidade do ato do presidente da República; e 2.d) é possível controlar atos de presidente da República. Afora o item 2.d, a decisão foi o oposto daquela do Caso 1.

No Caso 3 a origem foi ação popular. Em primeiro grau o juízo considerou suficientes as provas que indicavam incompatibilidade moral para o exercício do cargo (a nomeada fora condenada em processo trabalhista e seria ministra do Trabalho), decisão mantida em segundo grau. O vice-presidente do STJ suspendeu a liminar, decisão contra a qual apresentou-se reclamação no STF porque teria fundamento constitucional. A ministra Cármen Lúcia recebeu a ação e considerou suficiente a prova juntada, mesmo sem o conteúdo completo do ato proferido, suspendendo a decisão do ministro do STJ, impedindo a posse da indicada. Cotejando-se com os casos anteriores, verifica-se: 3.a) baixo rigor na exigência do conjunto probatório para concessão de liminar e o seguinte efeito comparável: e 3.b) possibilidade de controle judicial de atos do presidente da República com base em princípios constitucionais. Assim, aproxima-se da posição do Caso 1 e não considera as questões levantadas no 2.

O Caso 4 decorreu do resultado do 3. Também por ação popular, pediu-se liminar para suspender a nomeação de Ricardo Salles (condenado por improbidade administrativa enquanto secretário do Meio Ambiente de São Paulo e pendente contra si ação civil pública ambiental) como ministro do Meio Ambiente por violação da moralidade administrativa. Diferente do Caso 3, o juiz competente considerou a prova insuficiente para determinar a violação do princípio invocado, tratando por ativismo a intervenção em atos do presidente da República. Seguiu os parâmetros estabelecidos no Caso 2. A insatisfação com o agora ministro chegou ao Supremo por pedido de impeachment. O ministro Fachin arquivou-o com base em precedentes que restringem a denúncia por crime de responsabilidade de ministro de Estado ao Procurador-Geral da República. Apesar de ressalvar seu posicionamento, não demonstrou disposição de alterar o entendimento do tribunal. Aqui, percebe-se o que se exige de um ato monocrático em termos constitucionais e institucionais: o cotejo com a memória jurisprudencial e a prática institucional da corte. Enfim, seja pelos fundamentos, seja pelo resultado, o ministro Fachin se alinha ao decidido no Caso 2, com grande restrição para adentrar no controle de atos do presidente da República.

No Caso 5, por mais que se possa defender tratar de controle de ato administrativo, não político, o ministro Alexandre de Moraes decidiu que: e.1) é cabível o mandado de segurança; e.2) as provas juntadas (decorrente de prints divulgados por Sérgio Moro ao “Jornal Nacional”, da TV Globo) eram suficientes para a liminar, com sua análise aprofundada a ser feita no julgamento de mérito; e e.3) seria permitido ao Judiciário controlar atos do presidente da República. A decisão do ministro seguiu aquela do Caso 1, como se as situações fossem idênticas, mas sem considerar o histórico de decisões.

O comportamento errático do STF mostra dinâmica decisória que, ao menos em tese, permite criar antecedentes que justificam decisões para todos os lados, a depender das inclinações dos seus membros. Mas não cria precedentes: isto é, julgados que uniformizem e consolidem comportamentos decisórios da instituição. Disso decorrem dois efeitos: I) a perda de confiança na corte e da sua legitimidade (o Supremo se torna um tribunal “de ocasião”); e II) o movimento da opinião pública e publicada de determinar como técnica a decisão com a qual concordam e “política” aquela da qual discordam (ênfase no resultado e não pela avaliação dos meios).

Esse comportamento também tem consequências institucionais para a governabilidade no presidencialismo de coalizão brasileiro. Executivo e Legislativo necessitam consultar e negociar com os ministros do Supremo, a fim de formarem maiorias no plenário ou de conseguirem aliados para obstruções. O tribunal constitucional deixa de ser um amortecedor da relação Executivo-Legislativo e se torna mais uma força ou uma variável política na coalizão de governo ou de oposição.

No primeiro artigo, citamos uma frase atribuída a Alexandre, o Grande no sentido de que a conduta de cada um afeta o destino de todos. Assim, não importam somente as decisões do tribunal que recebe o epíteto de “Supremo”. A sequência de decisões analisadas começa e termina com as táticas políticas de Sérgio Moro e nos trazem à memória o adágio latino de antiga sabedoria: memento mori.

Instituições assim como seres humanos também são passíveis de adoecimento e, sem a devida vigilância cívica, podem perecer. É sob a inspiração dessa memória de finitude, de incompletude e de necessidade de incessante aperfeiçoamento institucional que incitamos o órgão de cúpula do Poder Judiciário brasileiro a fazer jus às suas missões institucionais e constitucionais.

Quando a corte irá, de fato e de direito, desempenhar a tarefa de produção de precedentes judiciais que ilustrem a “guarda suprema” da Constituição em um Estado que se diz democrático e de direito? Para além de suscitar o possível vício da “monocratização”  típico da chamada “ministrocracia” , neste artigo buscamos ilustrar como a oscilação desarticulada e errática da memória decisória do STF pode acabar por comprometer sua legitimidade constitucional e institucional.

Reelaboramos, por princípio e fim, a pergunta que nos serviu de roteiro: até quando o STF conseguirá manter sua pretensão de controle da política com base em decisões erráticas e sem definição clara e estável de posicionamento da corte?

Daniel Augusto Vila-Nova é advogado, doutorando em Ciência Política pelo Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (ICHF/UFF); mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB; e professor da pós-graduação em Direito da EDB/IDP.

Henrique Smidt Simon é advogado, doutor em Direito, Estado e Constituição pela Faculdade de Direito da UnB; professor do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direitos Humanos, Cidadania e Violência do UniEURO; e professor da graduação em Direito da Escola de Direito de Brasília do Instituto de Direito Público (EDB/IDP); professor da graduação em Direito do UniCEUB.

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Streck e Giannakos: Pode o juiz dispensar prova para reduzir aluguel?

No dia 30 de abril de 2020, foi publicado artigo sobre a importância “cumprir a letra da lei”. Neste, sustenta-se que quando o judiciário se nega a cumprir um claro texto e não o declara inconstitucional, simplesmente lhe nega a validade. Como se fosse nulo, írrito, nenhum o texto da lei”.

Em outro texto publicado, em 26 de março de 2020, faz-se menção à decisão do juiz do Rio de Janeiro que permitiu os cultos da igreja de Silas Malafaia, mesmo no meio do estado de calamidade provocado pelo coronavírus.

Em momentos crise e extrema dificuldade (como o que vivemos), o Direito deve ser utilizado justamente para nos auxiliar a vencer a crise e não ser desvirtuado para criar ainda mais problemas.

Ou seja, não se pode dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa.

Para não esquecer: Foram criados os artigos 489, §1º e 926, ambos do CPC/2015. No caso do primeiro, o legislador teve como intuito criar parâmetros para a decisão judicial e requisitos para que deveriam constar na decisão tomada pelo julgador. No caso do segundo, para exigir dos Tribunais e dos juízes a uniformização da sua jurisprudência mantendo-a estável, íntegra e coerente.

A integridade é a exigência de que os juízes construam seus argumentos de forma integrada ao conjunto do Direito, em uma perspectiva de ajuste de substância. A integridade impede que o judiciário use dois pesos e duas medidas.

A coerência, por sua vez, é a necessidade de, em casos semelhantes, deve-se proporcionar a garantia da isonômica aplicação principiológica. Da mesma forma, haverá coerência se os mesmos preceitos e princípios que foram aplicados nas decisões o forem para os casos idênticos; mais do que isso, estará assegurada integridade do direito a partir da força normativa da Constituição. A coerência assegura a igualdade, isto é, que os diversos casos terão a igual consideração por parte do Poder Judiciário.

O julgador não poderá utilizar-se de argumentos que não estejam coerentemente sustentados, o que inclui, como pode de partida, uma autovinculação com aquilo que antes se decidiu.

Neste sentido, pode-se dizer que no CPC/2015 não há espaço para decisões personalistas com que estivesse criando o direito a partir de um grau zero. O “livre convencimento” (que foi retirado do texto do CPC) não é o mesmo que decisão fundamentada. A segurança jurídica e a proteção da confiança e da isonomia somente fazem sentido se as decisões obedecerem à coerência e à integridade.

No entanto, é muito comum vermos na prática ambos os artigos serem negligenciados pelo julgador. O resultado disso é as diversas decisões sobre a mesma temática com resultados distintos.

Em pesquisa realizada recentemente ao analisar os volumes de processos ajuizados no Tribunal de Justiça de São Paulo entre janeiro e março de 2019 e no mesmo período de 2020, verificou-se o aumento em 20% no ajuizamento de ações judiciais na quinzena que imediatamente antecedeu o fechamento dos tribunais, indicando, já naquele momento, que o cenário de pandemia incitaria o maior volume de processos. Passada a fase inicial de isolamento absoluto, ou, com mais razão, prolongado o isolamento por mais dias, dilatando, em igual proporção, os efeitos nefastos à economia, os números voltam a crescer de modo absolutamente preocupante.

Em decisão recente proferida em comarca localizada na Serra Gaúcha, o juízo reconheceu que a pandemia instalada no país, com curva acentuada de contaminação em razão da Covid-19, teria desequilibrado contrato de locação comercial firmado em agosto de 2019, viabilizado a redução do locativo mediante via judicial.

Em sua conclusão, determinou que o valor locatício fosse reduzido de R$ 5.250 para R$ 1.100 pelo período de 05 meses. Uma redução temporária para 20,95% do valor locativo inicial.

Na sua fundamentação, o juízo sustentou a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19.

Em outras decisões judiciais já veiculadas pela mídia, por sua vez, o Poder Judiciário tem concedido reduções dos locativos nos mais diversos percentuais, como 60%, 50% e 70%. Em outros, em que os locatários requereram a isenção do pagamento, a justiça paulista negou o pedido. O TJ/SP já se manifestou sobre a temática, revertendo decisão que havia indeferido pedido de tutela de urgência em primeiro grau e concedendo a redução de 50% do locativo em segundo grau.

Mas, por qual motivo um juiz determina uma redução quase 80% de um aluguel? Qual é a prognose? Qual é a diferença deste caso para o outro em que houve uma redução de 50%? Ou uma redução de 60%?

Será que com a aplicação do art. 374, I do CPC, em que o autor seria dispensado do ônus probatório diante da notoriedade da COVID-19, por si só, justificaria o arbitramento da redução sem a produção de prova específica do prejuízo? Como o juízo deve estipular o percentual de redução? Tira de que lugar esse percentual? De seu subjetivismo?

Dito de outra forma, no momento em que o juiz arbitra um percentual de redução do locativo, sem a realização de prova específica pelo autor, ele não estaria agindo de forma discricionária-arbitrária? A resposta é (deveria) ser óbvia.

O juiz pode fazer coisas, mas não pode tudo. E as que pode, deve fundamentar. E essa fundamentação não pode ser qualquer uma. Ou nenhuma. Aliás, aqui basta que invoquemos os três primeiros incisos do artigo 489, parágrafo 1º. do CPC:

Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que:

I – se limitar à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida;

II – empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso;

III – invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão;

Isto para começar!

Seguimos. Que a incidência do coronavírus nas relações contratuais não possui precedentes é indiscutível. Porém, o ponto crucial é em que medida e a profundidade em que o juiz pode modificar a relação contratual já existente e pré-estabelecida entre as próprias partes.

A racionalidade jurídica vem sendo substituída por “racionalidades instrumentais”, constituída de opiniões e juízos morais. Ou seja, quais os parâmetros para estabelecer o percentual? Seria o caso de ocorrência do famoso “decido conforme a minha consciência”?

No momento em que a coerência e integridade são ignorados, os incentivos judiciais tornam-se protagonistas.

Neste ponto, o que se propõe é a possível contribuição da AED (Análise Econômica do Direito) para com a CHD (Crítica Hermenêutica do Direito).

Este debate ocorreu, em 2015, entre os Professores Lenio Streck, Alexandre Moras da Rosa e Aury Lopes Junior.

Do ponto de vista econômico, no momento em as decisões judiciais veiculam a possibilidade de repactuação dos contratos de locação comerciais, ainda mais, sem critérios definidos, incentivam que boa parte dos locatários busquem este benefício mesmo que a sua situação fática específica não exija (“comportamento oportunista”). Do ponto de vista econômico, tais notícias dificultam justamente a cooperação pré-existente entre os envolvidos.

O que se cria na prática é uma reação em cadeia. Os locatários, incentivados pela ausência de coerência e integridade nas decisões judiciais, ajuízam ações revisionais dos contratos de locação com intuito de terem o mesmo benefício, mesmo que, em certos casos, o locatário sequer necessite da revisão. O Direito, que deveria pacificar e regular, acaba, por uma de suas pontas, incentivando o contrário.

O resultado de tudo isto é uma descrença no Judiciário. Alguns exemplos recentes demonstrar a concretização deste sintoma: i) um apelo à utilização da inteligência artificial nos processos judiciais, considerando, inclusive, a hipótese da substituição do juiz pela máquina; ii) a criação da figura dos negócios jurídicos processuais (art. 190, CPC).

Quanto ao primeiro, podemos trazer como exemplo os casos das ferramentas criadas pelos Tribunais de Justiça e Superiores, como o Radar (TJ/MG), que recentemente julgou um grande número de recursos de segundos; o Victor (STF), que ainda está em fase de aprimoramento; e o Poti (TJ/PE) que realizar bloqueios judiciais das contas de devedores em ações de execuções fiscais.

Quanto ao segundo, originário da experiência positiva tida pelas partes e advogados na arbitragem, possibilita uma maior participação das partes no processo, resultando numa comparticipação dos sujeitos processuais na construção da decisão que deva solucionar determinada ação judicial. A ideia é que as partes possam customizar o processo e readequá-lo para a maior adequação dos seus interesses. É possibilitado às partes estipulares mudanças no procedimento e convencionarem sobre seus ônus, poderes, faculdades, calendário processual, direito material e deveres processuais. O art. 190, parágrafo único, do CPC dispõe sobre as três hipóteses taxativas para impedir a validade dos negócios jurídicos processuais.

Portanto, a confiança no Judiciário já vem abalada. A legislação moderna já tem apresentado este sintoma e, pelo que se identifica na prática, a situação tende a piorar.

A solução: a volta dos juízes à fundamentação jurídica, ao Direito, à necessidade de uniformizar a sua jurisprudência (coerência e integridade viram para isso!!!), sob pena de, conforme dito no início do texto, negar validade à lei simplesmente pelo seu desuso proposital.


https://www.conjur.com.br/2020-abr-30/senso-incomum-tao-dificil-cumprir-letra-lei-art-212-cpp acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/senso-incomum-cada-cabeca-sentenca-tese-espantalho acessado no dia 10/05/2020.

STRECK, Lenio Luiz. Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2014, p. 158.

https://www.conjur.com.br/2020-mai-11/leonardo-costa-achatemos-curva-acoes-judiciais

https://www.espacovital.com.br/noticia-37903-reducao-no-aluguel-valor-mensal-passa-r-5250-para-1100 acessado no dia 10/05/2020.

https://www.conjur.com.br/2020-abr-27/juizes-proibem-reabertura-lojas-concedem-reducao-aluguel acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-24/interrupcao-atividades-nao-autoriza-suspensao-alugueis acessado em 10/05/2020

https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/liminar-permite-reducao-aluguel-pago-restaurante-epidemia

https://www.conjur.com.br/2020-abr-22/interrupcao-atividade-nao-desobriga-empresa-pagar-aluguel?utm_source=dlvr.it&utm_medium=facebook acessado em 10/05/2020

https://m.migalhas.com.br/quentes/326373/e-razoavel-reducao-de-50-no-aluguel-de-imovel-comercial-em-razao-da-pandemia acessado em 10/05/2020.

Oliver Williamson define-o utilizando uma célebre formulação: “By opportunism I mean self-interest seeking with guile”. O mesmo autor, ao conceituar o oportunismo, dispõe: “More generally, opportunism refers to the incomplete or distorted disclosure of information, especially to calculated efforts to mislead, distort, disguise, obfuscate, or otherwise confuse”. (WILLIAMSON, Oliver E. The Economic Institutions of Capitalism: firms, markets, relational contracting. The Free Press, a Division of Macmillan Inc, 1985, p. 47).

https://www.conjur.com.br/2020-mai-01/santolim-giannakos-tomada-decisoes-momentos-crise

https://www.migalhas.com.br/depeso/319005/inteligencia-artificial-e-o-direito-uma-realidade-inevitavel

GIANNAKOS, Demétrio Beck da Silva. Negócios jurídicos processuais e análise econômica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2019, p. 71.

 é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados:
www.streckadvogados.com.br.

 é advogado, mestre e doutorando em Direito pela Unisinos. Sócio do escritório Giannakos Advogados Associados.