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Lorenzo Parodi: A cadeia de custódia da prova digital

A cadeia de custódia pode ser definida como o conjunto de procedimentos documentados que registram origem, identificação, coleta, custódia, controle, transferência, análise e eventual descarte de evidências.

O conceito de preservação da cadeia de custódia no processo penal diz respeito à garantia de integridade e, por consequência, credibilidade e prestabilidade da prova, mas, também, ao exercício do contraditório pelas partes que devem ter acesso a una prova certamente íntegra, sem esquecer o juiz, que é o destinatário da prova.

A atenção à cadeia de custódia no processo penal é comum e crescente em muitos países. Da mesma forma, no Brasil, a preservação da cadeia de custódia e a necessidade de considerar imprestável a prova quando sua cadeia de custódia tiver sido quebrada, por se tratar, nesse caso, de prova de integridade duvidosa, pois contaminada até pela simples possibilidade de adulteração, foram objeto de importantes estudos jurídicos cujas teses foram acolhidas, em muitos casos, pelas cortes brasileiras e acabaram formando jurisprudência.

Destacam-se, neste sentido, os brilhantes e profundos estudos e obras do preclaro professor Geraldo Prado, certamente o pioneiro no Brasil das teses envolvendo cadeia de custódia.

Finalmente, com o advento da Lei 13.964/2019 (lei “anticrime”) e a consequente introdução no CPP dos Artigos 158-A até 158-F, apareceu a primeira formal e legal definição de cadeia de custódia e o reconhecimento de sua relevância.

De acordo com a mencionada lei, a cadeia de custódia das evidências (ou vestígios) compreende, resumidamente, os seguintes procedimentos ou etapas:

I Reconhecimento: ato de distinguir um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial;

II Isolamento: ato de evitar que se altere o estado das coisas;

III Fixação: descrição detalhada do vestígio conforme se encontra no local de crime ou no corpo de delito;

IV Coleta: ato de recolher o vestígio, respeitando suas características e natureza;

V Acondicionamento: procedimento por meio do qual cada vestígio coletado é embalado de forma individualizada, com anotação da data, hora e nome de quem realizou a coleta;

VI Transporte: ato de transferir o vestígio de um local para o outro, utilizando as condições adequadas, de modo a garantir a manutenção de suas características originais, bem como o controle de sua posse;

VII Recebimento: ato formal de transferência da posse do vestígio, que deve ser documentado;

VIII — Processamento: exame pericial em si, manipulação do vestígio de acordo com a metodologia adequada;

IX Armazenamento: procedimento referente à guarda, em condições adequadas, do material a ser processado, guardado para realização de contraperícia, descartado ou transportado;

X Descarte: procedimento referente à liberação do vestígio, mediante autorização judicial.

Importante, também, destacar que, de acordo com o artigo 158-A, §2º, instituído pela supracitada lei “anticrime”, “o agente público que reconhecer um elemento como de potencial interesse para a produção da prova pericial fica responsável por sua preservação”.

É importante observar que a Lei 13.964/2019, após uma definição introdutiva geral do conceito de cadeia de custódia, foca sobretudo nos procedimentos a serem aplicados para o caso de evidências físicas e materiais, tratando de questões como sua descrição e posição no local do crime, sua coleta e acondicionamento de acordo com as características físicas, químicas e biológicas etc.

Fica evidente que foram tomados cuidados na descrição detalhada dos procedimentos relativos à cadeia de custódia de evidências típicas de certos tipos penais, mas não foram tratados os procedimentos relativos a outros tipos de evidências, igualmente comuns, sobretudo em outros tipos penais.

Estou me referindo, em especial, às evidências digitais, tão comuns em casos de corrupção, lavagem de dinheiro e crimes econômicos em geral, mas que, com a evolução e difusão da tecnologia, hoje aparecem também em investigações relativas a tipos penais como roubo, tráfico, sequestro e outras “tradicionais” atividades criminosas organizadas.

Refletindo sobre tal aparente omissão, em uma lei promovida num momento de grandes casos de corrupção e lavagem de dinheiro, repletos de provas digitais, cheguei à conclusão de que, na realidade, pode se tratar de uma escolha intencional, inteligente, racional e perfeitamente explicável.

De fato, definir em lei procedimentos técnicos relativos à cadeia de custódia de evidências digitais poderia ser inútil ou até contraproducente, pois, num ambiente de rápida e constante evolução tecnológica, haveria grande chance de tais procedimentos ficarem rapidamente ultrapassados e não mais conformes às melhores práticas.

Por essa razão, é certamente melhor criar uma lei, como aquela em foco, que defina conceitos e critérios de cunho geral, remetendo a normas técnicas de mais fácil atualização, a definição detalhada dos procedimentos relativos a âmbitos em constante evolução, como o mundo digital.

Quais deverão ser, então, os procedimentos a serem adotados em relação à cadeia de custódia de evidências digitais, no que diz respeito a conceitos, aspectos e etapas gerais definidas na referida lei, mas não diretamente aplicáveis a evidências digitais na forma em que foram descritos em tal lei?

Nos socorre, neste caso, a norma ABNT/ISO 27037, em vigor no Brasil desde janeiro de 2014 e que se coaduna perfeitamente ao caso.

Tal norma, redigida pela ABNT (Associação Brasileira de Normas Técnicas, órgão responsável pela normalização técnica no Brasil) com base na equivalente norma internacional elaborada pelo ISO (International Organization for Standardization), descreve e define as “Diretrizes para identificação, coleta, aquisição e preservação de evidência digital”.

Apesar de não se tratar de norma cogente, por não haver, ainda, um reconhecimento explícito em lei, é, de fato, a única norma elaborada por organismo competente e reconhecido no Brasil, que trate explicitamente do assunto em foco, além de ser a norma que, em sua versão internacional (ISO), descreve os procedimentos adotados de direito ou “de facto” nos ordenamentos de muitos países.

Por essas razões, considerando de um lado, a existência da necessidade legal, em força do disposto pela mencionada Lei 13.964/2019, de realizar adequados e documentados procedimentos de identificação, coleta, aquisição e preservação de evidências (cadeia de custódia), e, por outro lado, a ausência de uma descrição detalhada de tais procedimentos para o caso de evidências digitais, entendo que seja perfeitamente possível defender a plena e necessária aplicabilidade da norma ABNT 27037 para a descrição dos procedimentos necessário para garantir a de cadeia de custódia de evidencias digitais.

Mas o que diz, afinal, a norma ABNT 27037?

O intuito aqui não é reproduzir um documento normativo com 50 páginas, mas resumir alguns dos aspectos de maior relevância.

A norma define quatro aspectos-chave no manuseio da evidência digital: auditabilidade, justificabilidade e repetibilidade ou reprodutibilidade (dependendo das circunstâncias particulares).

O processo de manuseio, por sua vez, é composto pelas seguintes etapas: identificação, coleta, aquisição e preservação.

Nesta sede concentrarei a atenção em dois desses procedimentos ou etapas, frequentemente fonte de problemas, a identificação e a preservação.

Com relação à identificação é oportuno, destarte, observar que a evidência digital é representada na forma física e lógica. A forma física inclui a representação de dados dentro de um dispositivo tangível. A forma lógica da evidência digital refere-se à representação virtual dos dados dentro do dispositivo.

O processo de identificação envolve a pesquisa, reconhecimento e documentação da evidência digital. É importante que o processo de identificação inicie identificando o armazenamento da mídia digital e dos dispositivos de processamento que podem conter a potencial evidência digital.

Esse processo também inclui uma atividade para priorizar a coleta das evidências baseada em sua volatilidade. Recomenda-se que a volatilidade dos dados seja identificada para garantir a correta ordem dos processos de coleta e aquisição para minimizar o dano à potencial evidência digital e para obter a melhor e mais completa evidência.

Adicionalmente, é oportuno que o processo identifique e considere a possibilidade de uma potencial evidência digital ocultada (por exemplo, um arquivo cancelado).

Com relação a identificação de mídias, o processo diz respeito tanto à identificação física (descrição, tipo, marca, número de série, fotografia etc.) quanto à identificação lógica, que, de norma, é realizada através do cálculo do valor (ou código) hash, utilizando funções quais MD5, SHA1 ou SHA2 (as mais comuns).

Com relação à preservação da evidência, essa diz respeito à proteção de sua integridade para garantia de sua utilidade e validade probatória. O processo de preservação envolve a guarda da evidência digital e do dispositivo digital que pode conter a evidência digital contra espoliação ou adulteração de qualquer tipo.

Recomenda-se que o processo de preservação seja iniciado e mantido durante o processo de manuseio da evidência digital, começando pela imediata identificação (física e lógica) do dispositivo digital que contém a potencial evidência digital, assim que se tem o primeiro contato com ele.

Recomenda-se, ainda, que não haja adulteração ou espoliação aos dados em si ou a quaisquer metadados associados a eles (por exemplo, registro de data e horário).

É necessário que seja possível demonstrar que a evidência não foi modificada, desde que ela foi coletada ou adquirida, ou de fornecer os fundamentos e ações documentadas se alterações inevitáveis foram feitas. No caso de mídias e arquivos, tal demonstração pode ser realizada a qualquer momento comparando o código hash calculado no momento da identificação inicial da evidência, com o código hash da evidência no momento da verificação, sendo certo que os dois códigos deverão ser idênticos.

É importante observar que, até em processos em curso, não é incomum encontrar situações onde os procedimentos e cuidados acima descritos foram completamente ou parcialmente desconsiderados pelas autoridades prepostas, sobretudo na fase investigativa.

É possível pensar que tal fenômeno seja consequência de falta de suficiente preparação técnica, equipamentos e competência no manuseio de evidências digitais, por parte de alguns agente públicos, mas pode haver também, às vezes, uma componente de descaso com o devido processo legal, possivelmente pela pressa de “mostrar serviço” e/ou de chegar a conclusões, sobretudo considerando que o conceito de preservação da cadeia de custódia não era, até o momento, explicitamente previsto em lei.

Seja o que for, isso já deu causa à invalidação de provas e anulação de processos no passado, quando a preservação da cadeia de custódia ainda era uma prática não explicitamente normatizada no Brasil, especialmente no que diz respeito às evidências digitais.

Agora, com o novo embasamento legal, deverá ser objeto de uma atenção cada vez maior por parte do Judiciário e passar a compor, de vez, o bojo dos procedimentos necessários para a legalidade e admissibilidade da prova digital (e não) no processo penal.

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TJ-CE deve cumprir normas sobre audiência de custódia, diz CNJ

As recomendações do Conselho Nacional de Justiça durante a epidemia do coronavírus buscam assegurar os direitos fundamentais das pessoas presas. Por esse motivo, tribunais estaduais devem incorporar às suas rotinas processuais e não podem deixar de cumprir alguma diretriz fixada.

Conselheiro entendeu que TJ do Ceará tem provocado o esvaziamento da audiência de custódia ao se distanciar das diretrizes fixadas pelo CNJ
Luiz Silveira/Agência CNJ

Assim entendeu o conselheiro Mário Guerreiro, do CNJ, ao determinar o Tribunal de Justiça do Ceará cumpra as recomendações que tratam de audiência de custódia. Segundo o magistrado, o TJ-CE estava se distanciado das diretrizes. A decisão é desde sábado (16/5).

O conselheiro atendeu ao pedido ajuizado pela Defensoria Pública do Ceará, que pedia a aplicação da Resolução CNJ 213/2015, que trata das audiências de custódia, na parte em que não está suspensa: realização dos exames de corpo de delito e à disponibilização do laudo e registros fotográficos no auto de prisão em flagrante.

O defensor Jorge Bheron Rocha alegou que o tribunal vem descumprindo as Resolução 213/2015 e ainda a Recomendação CNJ 62/2020, que fixa diretrizes para a prevenção da propagação do coronavírus no sistema criminal. 

Por sua vez, o TJ cearense afirmou que está buscando a garantir a juntada célere do exame ao auto de prisão em flagrante, com a devida complementação por registro fotográfico. No entanto, ponderou que podem haver “situações excepcionais, em que se verificam irregularidades procedimentais, como o atraso na juntada dos exames”.

Ao analisar o caso, o conselheiro considerou que a situação atual do tribunal tem provocado o esvaziamento da audiência de custódia, que busca prevenir à tortura e aos maus tratos e “que pode ser alcançado mediante a análise do exame de corpo de delito e dos registros fotográficos pertinentes”.

“Não está o TJ-CE obrigado a seguir a Recomendação nº 62 do CNJ, deixando de realizar, assim, as audiências de custódia; se, contudo, aderir às orientações constantes da referida recomendação, não poderá fazê-lo parcialmente, sendo obrigado a adotar as medidas mitigadoras da não realização da audiência de custódia, previstas pela recomendação, sob pena de grave violação de direitos fundamentais assegurados por resolução deste Conselho e, mais recentemente, pelo Código de Processo Penal”, afirmou.

Clique aqui para ler a decisão

0003065-32.2020.2.00.0000

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Ainda sobre o arquivamento do inquérito policial na lei “anticrime”

O arquivamento do inquérito policial foi um dos temas que sofreu profundas alterações com a chamada “lei anticrime”, sancionada e publicada no final de 2019, porém ainda com eficácia suspensa nesse particular em virtude da decisão liminar do Supremo Tribunal Federal.i

O assunto, já abordado em coluna anterior (veja aqui), é retomado agora com um recorte específico para tratar de sua natureza jurídica e consequências quanto ao desarquivamento à luz da nova proposta doutrinária formulada pelo grande maestro Jacinto Nelson de Miranda Coutinho juntamente com a professora Ana Murata.ii

Sabe-se que o ato de arquivamento do inquérito policial, na antiga redação do art. 28 do CPP, era de competência da autoridade judiciária. A lei se referia expressamente a esse ato judicial de arquivamento do inquérito como “despacho” (art. 67, I, do CPP).iii Ocorre, entretanto, que não se tratava tecnicamente de simples prática de movimentação procedimental (ou impulso processual); tinha-se, muito pelo contrário, uma determinação proferida por autoridade judicial, a pedido do órgão acusatório, que encerrava uma fase da persecução criminal. Portanto, uma decisão, e não simples despacho.iv

A discussão, no entanto, permanecia quanto ao tipo de decisão: judicial administrativa,v equiparável à impronúncia,vi sentençavii, sentença própria (não classificável segundo os critérios da teoria geral do processo),viii sentença de mérito em processo cautelarix etc.

Já com a Lei n. 13.964/2019, fica claro que o arquivamento do inquérito policial incumbe ao Ministério Público, tratando-se, portanto, de ato de natureza administrativa, e não mais jurisdicional. Ademais, segundo Coutinho e Murata, ato administrativo composto.

Vale lembrar que, segundo a doutrina administrativista, em que pese controvérsias,x os atos administrativos poderiam ser classificados segundo o critério de intervenção da vontade em três espécies: simples, compostos e complexos.xi

O ato composto, conforme Hely Lopes Meirelles, “é o que resulta da vontade única de um órgão, mas depende da verificação por parte de outro, para se tornar exequível”.xii Sublinhe-se que “no ato complexo fundem-se vontades para praticar um ato só” enquanto que “no ato composto, praticam-se dois atos, um principal e outro acessório”, o qual pode ser visto como “pressuposto ou complementar daquele”, xiii especificamente no plano da eficácia.

Aliás, no que toca aos efeitos, importante a lição de Carvalho Filho: “temos que os atos que traduzem a vontade final da Administração só podem ser considerados perfeitos e acabados quando se consuma a última das vontades constitutivas de seu ciclo. Embora, nos atos compostos, uma das vontades já tenha conteúdo autônomo, indicando logo o objetivo da Administração, a outra vai configurar-se, apesar de ser meramente instrumental, como verdadeira condição de eficácia”.xiv

Nesse viés, segundo Coutinho e Murata, a submissão do ato de arquivamento do inquérito policial à instância ministerial revisora para homologação torna-o de natureza composta, de modo que apenas se consolidam os efeitos daquela vontade administrativa com a deliberação final do competente órgão de controle hierárquico. É a partir dessa estrutura composta que se pode compreender a razão pela qual “o ato ordenatório do órgão do MP, que ele submete à referida instância, é provisório quanto à perfeição”.xv

A pergunta seguinte é bastante direta: essa nova disciplina (e natureza) jurídica do ato de arquivamento do inquérito policial modificou as suas hipóteses de revisão, isto é, de desarquivamento?

O Código de Processo Penal diz muito pouco a respeito dessa matéria. Extrai-se apenas do art. 18 do CPP que, depois de arquivado o inquérito policial, “por falta de base para a denúncia”, o delegado de polícia “poderá proceder a novas pesquisas, se de outras provas tiver notícia”. xvi

O referido dispositivo legal somente evidencia a possibilidade de novos atos de investigação policial a respeito de um caso penal cujo inquérito fora devidamente arquivado por ausência de elementos suficientes de informação (justa causa) para o exercício da ação processual penal pelo Ministério Público.xvii Para tanto, indispensável que houvesse “notícia”, ou seja, menção concreta a elementos informativos anteriormente desconhecidos pela autoridade policial e pelo órgão ministerial.

A finalidade é justamente a de rever o caso, outrora arquivado, agora com referência a possíveis dados novos sobre a materialidade e/ou autoria criminosa. Trata-se, em síntese, “da retomada das investigações inicialmente paralisadas pela decisão de arquivamento”.xviii

Frise-se, porém, que apenas será possível essa retomada investigativa quando o motivo do pretérito arquivamento do inquérito policial for a ausência de justa causa processual penal em sentido estrito, ou seja, insuficiência informativa ou probatória sobre a materialidade criminosa e/ou indícios de autoria; nunca se fundado no reconhecimento de motivos que desnaturam a composição analítica do injusto penal (hipóteses de atipicidade da conduta, exclusão da antijuridicidade ou da culpabilidade) ou afastam a própria sanção criminal (causas extintivas da punibilidade – ex.: prescrição da pretensão punitiva estatal).

Vale lembrar que, antes da reforma de 2019, inobstante certa polêmica, essas decisões judiciais de arquivamento do inquérito desvinculadas da impropriamente chamada “falta de provas”xix eram tidas como “definitivas”, uma vez que estariam relacionadas ao “mérito da causa penal” e, portanto, fariam coisa julgada formal e material, figurando o desarquivamento como ato ilegal e abusivo.xx Não haveria que se falar, por aqui, em arquivamento rebus sic stantibus, apenas cabível quando insuficientes os elementos de materialidade e/ou autoria.

Os próprios Tribunais Superiores reconheciam esse caráter de imutabilidade da decisão de arquivamento do inquérito nas hipóteses de atipicidade do fato,xxi sem prejuízo de julgados mais abrangentes, admitindo os efeitos de coisa julgada material também às causas extintivas da punibilidade ou excludentes da ilicitudexxii.

Doravante, no modelo de arquivamento ministerial, malgrado inexistente coisa julgada material, “o ato administrativo, pela força do art. 18, do CPP, carrega consigo uma estabilidade provisória, em face de se tratar de ato jurídico perfeito, nos moldes do art. 5º, XXXVI, da CR”.xxiii Explicam, ainda, Coutinho e Murata, que “a garantia jurídica constitucional assegura a estabilidade na forma da lei. Portanto, mesmo que administrativo, não pode ser revisto a belprazer pelo órgão administrativo, inclusive em razão da regra constitucional da moralidade, nos termos do art. 37, caput, da CR, embora se sujeite, como qualquer ato administrativo, ao controle da higidez deles, ou seja, à análise sobre a nulidade”.xxiv

 

Por fim, vale destacar que o Poder Judiciário não detém, em regra, competência para reanalisar essa deliberação ministerial de arquivamento. Isso porque toda e qualquer decisão envolvendo a fase de investigação preliminar incumbe ao juiz de garantias (art. 3º-B, caput, do CPP). Ocorre que, a partir da nova estrutura acusatória do Código (art. 3º-A do CPP), esse juiz não tem qualquer poder instrutório do caso penal, sendo-lhe “vedadas a iniciativa na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”. Por isso, dentre outras coisas, deve-se considerar revogado tacitamente o art. 5º, inciso II, primeira parte, do CPP (poder judicial de requisição do inquérito policial).

Nesse contexto, fica claro que seu controle da legalidade investigativa deve ser apenas de ordem negativa, a frear o exercício indevido da persecução penal, e nunca a promovê-la, ainda que mediante provocação de terceiros, inclusive da própria vítima. Logo, está impedido de rever o mérito do ato administrativo de arquivamento do inquérito policial por mera discordância quanto à avaliação ministerial da justa causa processual penal. Justo porque, em assim fazendo, estaria se substituindo ao órgão de acusação na formação da opinio delicti, o que expressamente vedado no modelo acusatório (art. 3º-A do CPP).

Frise-se, em tempo, que o juízo de garantia apenas poderia intervir nessa seara com a finalidade específica de: i) reconhecer, em caso absolutamente excepcional de invalidade no procedimento ministerial de arquivamento, a nulidade do ato administrativo (súmula n. 473 do STFxxv), bem como determinar que outro seja proferido, em seu lugar, pelo Ministério Público com estrita observância dos ditames legais (art. 28 do CPP); ii) ordenar o trancamento de inquérito policial indevidamente desarquivado por membro do MP (art. 3º-B, IX, do CPP); iiii) rejeitar denúncia formulada em caso penal validamente desarquivado porém ausentes “novas provas” de materialidade e/ou autoria (súmula n. 524 do STFxxvi).


i O Min. Luiz Fux, no dia 22 de janeiro deste ano, na condição de relator das ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6305, proferiu decisão liminar suspendendo “sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, (a1) da implantação do juiz das garantias e seus consectários (Artigos 3º-A, 3º-B, 3º-C, 3º-D, 3ª-E, 3º-F, do Código de Processo Penal); e (a2) da alteração do juiz sentenciante que conheceu de prova declarada inadmissível (Artigo 157, §5º, do Código de Processo Penal)”. Também suspendeu “sine die a eficácia, ad referendum do Plenário, (b1) da alteração do procedimento de arquivamento do inquérito policial (Artigo 28, caput, Código de Processo Penal); (b2) da liberalização da prisão pela não realização da audiência de custodia no prazo de 24 horas (Artigo 310, §4°, do Código de Processo Penal)” (STF – Min. Luiz Fux – ADI/MC 6288 6299 6300 6305/DF – j. em 22.01.2020).

ii COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; MURATA, Ana Maria Lumi Kamimura. As Regras sobre a Decisão do Arquivamento do Inquérito Policial: o que muda com a Lei 13.964/19? Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, ano 28, n. 330, p. 11-13, mai./2020, p. 11-13.

iii Embora a questão esteja sendo colocada no tempo passado, é preciso atentar para a suspensão dos efeitos concretos do novo sistema de arquivamento do inquérito, estabelecido pela Lei n. 13.964/2019, em razão da decisão liminar do Supremo, bem como que a citada “lei anticrime” sequer revogou expressamente, em que pese o tenha feito tacitamente, o artigo 67, inciso I, do CPP.

iv LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. 02 ed. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 152.

v “(…) não é um mero despacho como pode fazer crer uma leitura apressada do código. Não é sentença por inexistir processo ou jurisdição, mas simples decisão administrativa (sentido lato). Por ser oriunda do Poder Judiciário, torna-se judicial” (JARDIM, Afrânio Silva; COUTINHO DE AMORIM, Pierre Souto Maior. Direito Processual Penal: estudos e pareceres. 13. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014, p. 194); “Embora o arquivamento seja realizado pelo juiz, este não exerce atividade típica, ou seja, não está prestando jurisdição. Trata-se de decisão meramente administrativa. Por ser ato do juiz, alguns dizem decisão judicial, outros decisão judiciária, esta última denominação busca distinguir a decisão do juiz que não é jurisdicional e, sim, administrativa” (NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. 06 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 221-222).

vi “Ora, se é verdade que o Código de Processo Penal trata como despacho a decisão que determina o arquivamento do inquérito (art. 67, I), deve-se observar que o mesmo Código atribui efeitos idênticos à decisão (e não despacho!) que impronuncia o réu nos procedimentos do Tribunal do Júri (…) não vemos por que não se atribuir os mesmos efeitos a uma e outro, decisão ou despacho (…) E mais: caracteriza-se também como decisão dado que, ao juiz, em tese, caberia providência diversa, ou seja, discordar do requerimento de arquivamento (art. 28, CPP) e submeter a questão ao exame da chefia da instituição do Ministério Público” (OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Curso de Processo Penal. 19 ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 68-69).

vii “O ato judicial arquivante, em meio a tantos desacertos, não importa o nome que se lhe tenha dado (arts. 67, n. I e 779), é sentença por sua natureza jurídica” (PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Obra em Processo Penal. São Paulo: Singular, 2018, p. 156).

viii “(…) o ato de arquivamento tem a natureza jurídica de sentença de arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, sendo absolutamente desnecessário tentar classificá-la entre algumas das categorias já existentes no âmbito da teoria geral do processo (civil). Trata-se, tão somente, de uma sentença de arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, cuja exigência constitucional é precisamente a motivação do ato, na forma do artigo 93, inciso IX, da Constituição” (SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. Arquivamento do Inquérito Policial: uma análise sobre a imutabilidade dos seus efeitos, Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 4, n. 3, p. 1095-1118, set./dez. 2018, p. 1105).

ix COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. A Natureza Cautelar da Decisão de Arquivamento do Inquérito Policial. Revista de Processo, São Paulo, v. 18, n. 70, p. 49-58, abr./jun., 1993, p. 55-56.

x Celso Antônio Bandeira de Mello, por exemplo, nega a existência dessa categoria própria de “atos compostos”, referindo-se apenas aos atos simples e complexos quanto à composição da vontade produtora do ato (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de Direito Administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, p. 421).

xi CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 32 ed. São Paulo: Atlas, 2018, p. 136-137; DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 14 ed. São Paulo: Atlas, 2002, p. 214-215; MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 42 ed. São Paulo: Malheiros, 2016, p. 196-197.

xii MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro…, p. 197.

xiii DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo…, p. 214-215.

xiv CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo…, p. 137

xv COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; MURATA, Ana Maria Lumi Kamimura. As Regras sobre a Decisão do Arquivamento do Inquérito Policial: o que muda com a Lei 13.964/19?…, p. 12.

xvi Em verdade, o art. 18 do CPP ainda faz referência ao “arquivamento do inquérito pela autoridade judiciária”. Ocorre, no entanto, que, diante da Lei n. 13.964/2019, deve-se entender revogada tacitamente essa parte do dispositivo que faz menção à “autoridade judiciária”. Em seu lugar, pode-se ler “representante (ou órgão) ministerial”.

xvii O arquivamento “ocorrerá quando as informações obtidas durante a investigação criminal (inquérito policial) não sustentarem a formação da opinio delicti no sentido da existência do crime e da suspeita da autoria” (CARVALHO, Salo de. Considerações sobre o Arquivamento do Inquérito Policial: requisitos e controle judicial (estudo de caso). Revista Brasileira de Ciências Criminais, ano 18, n. 83, p. 322-349, mar./abr. 2010, p. 340).

xviii JARDIM, Afrânio Silva; AMORIM, Pierre Souto Maior Coutinho de. Direito Processual Penal: estudos e pareceres…, p. 203.

xix STJ – Quinta Turma – RHC 63510/RS – Rel. Min. Jorge Mussi – j. em 20.09.2016 – DJe 28.09.2016.

xx PITOMBO, Sérgio Marcos de Moraes. Obra em Processo Penal…, p. 152-154.

xxi STF – Tribunal Pleno – HC 87395/PR – Rel. Min. Ricardo Lewandowski – j. em 23.03.2017 – DJe 048 de 12.03.2018.

xxii “A permissão legal contida no art. 18 do CPP, e pertinente Súmula 524/STF, de desarquivamento do inquérito pelo surgimento de provas novas, somente tem incidência quando o fundamento daquele arquivamento foi a insuficiência probatória – indícios de autoria e prova do crime. 2. A decisão que faz juízo de mérito do caso penal, reconhecendo atipia, extinção da punibilidade (por morte do agente, prescrição…), ou excludentes da ilicitude, exige certeza jurídica – sem esta, a prova de crime com autor indicado geraria a continuidade da persecução criminal – que, por tal, possui efeitos de coisa julgada material, ainda que contida em acolhimento a pleito ministerial de arquivamento das peças investigatórias. 3. Promovido o arquivamento do inquérito policial pelo reconhecimento de legítima defesa, a coisa julgada material impede rediscussão do caso penal em qualquer novo feito criminal, descabendo perquirir a existência de novas provas” (STJ – Sexta Turma – REsp 791.471/RJ – Rel. Min. Nefi Cordeiro – j. em 25.11.2014 – DJe de 16.12.2014).

xxiii COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; MURATA, Ana Maria Lumi Kamimura. As Regras sobre a Decisão do Arquivamento do Inquérito Policial: o que muda com a Lei 13.964/19?…, p. 12.

xxiv COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; MURATA, Ana Maria Lumi Kamimura. As Regras sobre a Decisão do Arquivamento do Inquérito Policial: o que muda com a Lei 13.964/19?…, p. 12.

xxv “A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que os tornem ilegais, porque deles não se originam direitos; ou revogá-los, por motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a apreciação judicial” (Súmula n. 473 do STF). A súmula em questão pode ser invocada, nesse âmbito, como fundamento ao controle judicial de ato administrativo ilegal (e, portanto, nulo), mas não como base para juízos discricionários de revogação ministerial do ato de arquivamento por mera “conveniência e oportunidade” uma vez que absolutamente incompatível com o regime legal de desarquivamento do inquérito policial (art. 18 do CPP e súmula n. 524 do STF).

xxvi “Arquivado o inquérito policial, por despacho do juiz, a requerimento do promotor de justiça, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas” (Súmula n. 524 do STF). Embora a súmula em questão se refira ao modelo anterior de arquivamento da investigação policial, tem plena aplicação quanto às novas regras do art. 28 do CPP. Apenas seria necessário um ajuste interpretativo, lendo-a nos seguintes termos: “Arquivado o inquérito policial, por ato do ministério público, não pode a ação penal ser iniciada, sem novas provas (ou melhor: novos elementos de informação)”.

 é delegado de polícia em Santa Catarina, doutorando e mestre em Direito pela Universidade Federal do Paraná, pós-graduado em Raciocínio Probatório pela Universidade de Girona (Espanha) e especialista em Direito Penal e Criminologia pelo ICPC. Professor em cursos de graduação e pós-graduação.