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Renzzo Ronchi: A judicialização da saúde durante a pandemia

No sistema jurídico brasileiro sempre houve uma flagrante falta de uniformidade nas da Justiça e uma dificuldade de se identificar com clareza qual é o entendimento de um tribunal sobre um tema específico, frente à ampla gama de decisões em diferentes sentidos tratando sobre a mesma matéria.

Desse modo, um dos objetivos do novo Código de Processo Civil (NCPC) foi expressamente estabilizar e uniformizar a jurisprudência, tendo pontuado a comissão de juristas que a segurança jurídica fica comprometida com a “brusca e integral alteração do entendimento dos tribunais sobre questões de direito” [1].

Nessa linha, o artigo 926 do NCPC ficou redigido assim: “Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente”.

O dispositivo legal prevê, assim, deveres gerais para os tribunais no âmbito do desenvolvimento de um sistema de precedentes, sendo eles: I) o dever de uniformizar sua jurisprudência; II) o dever de manter essa jurisprudência estável; III) o dever de integridade; IV) o dever de coerência e V) o dever de dar publicidade adequada aos seus precedentes [2].

Com efeito, em 23 de maio de 2019 o Supremo Tribunal Federal julgou o ED no RE nº 855.178/SE (com repercussão geral, relator ministro para  acórdão Edson Fachin), ocasião em que reafirmou a tese de que a responsabilidade dos entes estatais é solidária nas demandas prestacionais na área de saúde, competindo à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro.

A ementa do acórdão foi publicada recentemente, na data de 16 de abril de 2020, contendo o seguinte teor:

CONSTITUCIONAL E ADMINISTRATIVO. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA. AUSÊNCIA DE OMISSÃO, CONTRADIÇÃO OU OBSCURIDADE. DESENVOLVIMENTO DO PRECEDENTE. POSSIBILIDADE. RESPONSABILIDADE DE SOLIDÁRIA NAS DEMANDAS PRESTACIONAIS NA ÁREA DA SAÚDE. DESPROVIMENTO DOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. 1. É da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal que o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado, porquanto responsabilidade solidária dos entes federados. O polo passivo pode ser composto por qualquer um deles, isoladamente, ou conjuntamente. 2. A fim de otimizar a compensação entre os entes federados, compete à autoridade judicial, diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, direcionar, caso a caso, o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro. 3. As ações que demandem fornecimento de medicamentos sem registro na ANVISA deverão necessariamente ser propostas em face da União. Precedente específico: RE 657.718, relator ministro Alexandre de Moraes. 4. Embargos de declaração desprovidos” (ED no RE nº 855178/SE, relator ministro LUIZ FUX, relator p/ acórdão: ministro Edson Fachin, Pleno, julgado em 23/5/2019, DJe de 15/4/2020). (grifos do autor) 

Embora tenha sido confirmada a solidariedade dos entes federativos pela prestação de saúde, fato é que no plenário do Supremo Tribunal Federal prevaleceu a orientação de que se fez necessário promover desenvolvimento da tese firmada no julgamento do AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, no sentido de que as políticas públicas de saúde devem ser prestigiadas e, consequentemente, as regras administrativas de repartição de competências também devem ser objeto de atento exame pelo magistrado.

O desenvolvimento da tese firmada que não se confunde com a figura da superação do precedente (overruling) justificou-se, conforme disse o próprio ministro Edson Fachin em seu voto, pelo fato de que “desde a realização da audiência pública em matéria de saúde e o julgamento da STA 175 passaram-se quase dez anos, em cujo lapso se inseriram diversos fenômenos correlatos à judicialização de prestações sanitárias, incluindo, neste rol, a criação do Fórum Nacional de Saúde no âmbito do CNJ. Além disso, houve: I) aumento da judicialização em matéria da saúde; II) desestruturação do SUS; III) sobreposição ou ausência de cumprimento de decisão judicial”.

Assim, a tese vencedora, que constou no voto do mininstro Edson Fachin, ficou redigida com o seguinte teor:

Partindo do exame das espécies de tutela examinadas na STA 175, é possível estabelecer condicionantes para a admissão das respectivas ações. Quando a pretensão veicular pedido de entrega de medicamento padronizada, a competência estatal é regulada por lei, devendo figurar no polo passivo a pessoa política com competência administrativa para o fornecimento do medicamento, tratamento ou material. Quando o medicamento não for padronizado, a União deve compor o polo passivo da lide. Além disso, a dispensa judicial de medicamentos, materiais, procedimentos e tratamentos pressupõe ausência ou ineficácia da prestação administrativa e a comprovada necessidade, observando, para tanto, os parâmetros definidos no artigo 28 do Decreto Federal nº 7.580/11. Base constitucional: o direito à saúde (artigo 196 e ss. da CRFB); repartição federal de competências (artigo 23, I e II, da CRFB).” (grifos do autor)

Como se percebe, houve uma mudança significativa no tratamento da matéria, pois, embora continue existindo a solidariedade entre os entes estatais para o acionamento do Poder Judiciário o que se fez para garantir a máxima proteção ao paciente enfermo, que pouco conhece do intrincado sistema de saúde , o magistrado, doravante, deve observar as regras de repartição de competências sanitárias ao direcionar o cumprimento da obrigação.

Em outros termos, isso significa que todos os entes da federação podem integrar o polo passivo do processo, mas o direcionamento da obrigação, que é feito pelo juiz, deve atentar-se para as regras de repartição de competências sanitárias.

De fato, a ementa desse acórdão não espelhou, com fidelidade, as questões que foram decididas pelo Supremo Tribunal Federal, mas isso não quer dizer que as teses, em si, não devam ser observadas, até porque a ementa é apenas uma síntese do julgamento.

Aliás, a ementa contém até mesmo um pequeno equívoco ao mencionar no final que a relatoria do julgamento no RE nº 657.718/MG ficou a cargo do ministro Alexandre de Moraes quando, em verdade, a redação do acórdão ficou sob a responsabilidade do ministro Roberto Barroso, que teve a tese vencedora. Tratando-se de um erro material, pode ser corrigido até mesmo de ofício.

Apenas a título de ilustração, em 2010, quando foi publicado o acórdão do julgamento realizado no AgR na STA nº 175/CE, relator ministro Gilmar Mendes, a ementa também não espelhava, com toda sua profundidade, as questões que foram examinadas pelo plenário da Suprema Corte, sendo necessária a leitura do voto proferido pelo relator para a perfeita compreensão da matéria.

Nesse ponto, realizado o julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, que define ser do magistrado a responsabilidade pelo direcionamento da obrigação, cumpre enfatizar, nesse sentido, que a Lei Orgânica da Saúde (Lei nº 8.080/1990), em seus artigos 16, 17 e 18, regulamenta a responsabilidade comum e define atribuições entre a direção nacional, a direção estadual e a municipal da saúde.

Por sua vez, o artigo 19-U da lei orgânica da saúde reforça a distribuição de competências, estabelecendo que a responsabilidade financeira pelo fornecimento de medicamentos, produtos de interesse para a saúde ou procedimentos de que trata este Capítulo será pactuada na Comissão Intergestores Tripartite”.

O artigo 10 da Resolução nº 1/2012 da Comissão Intergestores Tripartite (CIT) reforça a repartição de competência prevista na Lei Orgânica da Saúde. Por outro lado, a Portaria nº 1.555/2013 regulamenta a competência dos municípios para o componente básico de assistência farmacêutica, enquanto a Portaria nº 1.554/2013 define a competência dos Estados e da União para o componente especializado de atenção farmacêutica.

O Decreto nº 7.508/2011, como norma reguladora da Lei nº 8.080/1990, é o diploma legal responsável pelo direcionamento das ações e serviços de saúde, disciplinando a responsabilidade de cada ente político (União, estados, Distrito Federal e municípios).

Municípios são responsáveis pela atenção básica e pelo fornecimento dos medicamentos do componente básico de atenção farmacêutica, ao passo que estados e União são os responsáveis pela média e alta complexidades e pelo componente especializado e estratégico de atenção farmacêutica.

A Rename (relação nacional dos medicamentos essenciais), aprovada pela Resolução CIT nº 1/2012, atualizada periodicamente a cada dois anos, conforme Portaria nº 3.047/2008, é considerada o principal instrumento que fixa regras de repartição de competência e distribuição de atribuições.

Dessa forma, em se tratando de cumprimento de política pública, o magistrado poderá se nortear segundo esses diplomas normativos que integram o complexo sistema jurídico sanitário.

Situação diferente, no entanto, ocorrerá quando a demanda judicial pleitear tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas.

Para essas hipóteses, o ministro Edson Fachin, em seu voto, foi enfático ao pontuar que “a União necessariamente comporá o polo passivo, considerando que o Ministério da Saúde detém competência para a incorporação, exclusão ou alteração de novos medicamentos, produtos, procedimentos, bem como constituição ou a alteração de protocolo clínico ou de diretriz terapêutica (artigo 19-Q, Lei 8.080/90), de modo que recai sobre ela o dever de indicar o motivo da não padronização e eventualmente iniciar o procedimento de análise de inclusão, nos termos da fundamentação”.

De fato, a presença da União no polo passivo poderá esclarecer, entre outras questões: a) se o medicamento, tratamento ou produto tem ou não uso autorizado pela Anvisa; b) se está ou não registrado naquela agência; c) se é ou não padronizado para alguma moléstia e os motivos para isso; e d) se há alternativa terapêutica constante nas políticas públicas, etc.

Com efeito, tal posicionamento privilegia o Enunciado n° 78 do Comitê Executivo do Fórum de Saúde do Conselho Nacional de Justiça, o qual dispõe que “compete à Justiça Federal julgar as demandas em que são postuladas novas tecnologias ainda não incorporadas ao Sistema Único de Saúde SUS”.

Perceba-se que a tese firmada no ED no RE nº 855.178/SE é diversa daquela assentada no julgamento do RE 657.718/MG, relator ministro para acórdão Roberto Barroso, que versou sobre o debate acerca da obrigação do Estado de fornecer medicamento sem registro na Anvisa. Isso porque no primeiro julgamento ficou definido que, em se tratando de demanda judicial pleiteando tratamento, procedimento, material ou medicamento não incluído nas políticas públicas, a União deve também compor o polo passivo. Isso irá ocorrer sem o prejuízo dos outros entes federados também integrarem o processo, considerando a responsabilidade solidária. No segundo julgamento, contudo, por se tratar de medicamento sem registro na Anvisa (órgão federal), o STF entendeu que a demanda deve ser ajuizada somente contra a União.

Feitas essas considerações, incumbe aos tribunais e juízes brasileiros observarem as teses firmadas pela Suprema Corte do nosso país no julgamento do ED no RE nº 855.178/SE, relator ministro para acórdão Edson Fachin, haja vista que o artigo 926 do Código de Processo Civil preocupou-se em sistematizar a aplicação dos precedentes, apostando na criação de um ambiente decisório mais isonômico e previsível.

Além disso, em tempos de pandemia, é absolutamente necessário que tribunais e juízes produzam decisões que gerem segurança jurídica, ainda mais em prestações de saúde que lidam com o tema sensível da escassez de recursos.

Se é inquestionável que o direito à saúde é fundamental, por outro lado não se pode desconsiderar que sua concretização é garantida mediante políticas sociais e econômicas, sendo certo que o acesso às ações e serviços é feito de modo igualitário e universal conforme a realidade orçamentária de cada ente federativo.

Conforme Stephen Holmes e Cass Sunstein, “ignorar os custos é deixar certas trocas dolorosas fora do nosso campo de visão” [3].

O custo dos direitos é um tema que não pode ser relegado a segundo plano, haja vista que a concretização dos direitos fundamentais de caráter prestacional deve ser realizada à luz das possibilidades financeiras do Estado, sob pena de se criar seletividade e violação ao princípio da isonomia, favorecendo-se determinadas pessoas, que ingressam com demandas judiciais, em detrimento de toda a coletividade.

A harmonização dos julgados é fundamental para um Estado de Democrático de Direito, pois tratar as mesmas situações fáticas com a mesma solução jurídica resulta na preservação do princípio da isonomia, além do que também gera segurança jurídica, uma vez que evita longos debates sobre a matéria, permitindo, assim, que todos se comportem conforme o Direito.

Não bastasse isso, a uniformização da jurisprudência contribui para melhorar a credibilidade da imagem do Poder Judiciário, pois afasta o modo irracional de administrar a Justiça, sobretudo em um momento crítico como esse que o país está atravessando. Ademais, as ideias de unidade do Direito e de precedentes obrigatórios colaboram para o fortalecimento do Poder Judiciário enquanto instituição [4].

Em tempos de pandemia da Covid-19, caraterizada por uma crise sanitária e econômica de proporção mundial, a judicialização da saúde precisa ser racionalizada, sob pena de colapso do sistema sanitário e ineficácia das decisões judiciais.

 


[2] DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil. Teoria da Prova, Direito Probatório, Decisão, Precedente, Coisa Julgada e Tutela Provisória. Volume 2. 10ª edição. Salvador: JusPODIVM, 2015.

 é juiz de Direito do TJ-MG, de entrância especial, titular do Juizado Especial Cível, Criminal e da Fazenda Pública de Teófilo Otoni, 2º titular da 1ª Turma Recursal do Grupo Jurisdicional de Teófilo Otoni, professor do curso de Direito da Faculdade Doctum-Teófilo Otoni, mestrando em Direito Processual Constitucional pela Universidad Lomas de Zamora, na Argentina e pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC-MG.

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Opinião: Concursos públicos para segurança pública e saúde

A pergunta que vem deixando muitas pessoas que sonham com um cargo público: concursos públicos para as áreas de segurança pública e da saúde, afinal, estarão todos suspensos?

O Direito não comporta antinomias. Se há ambiguidade na lei, enquanto sistema completo, precisamos de instrumentos, de métodos e de vetores para estabilizar expectativas, fixar interpretações jurídicas e, em última instância, assegurar a paz social.

É nesse sentido, inclusive, que faremos uma análise clara e objetiva sobre o Projeto de Lei Complementar 39/2020 (derivado do Plano Mansueto — PLP 149/2019), o qual enceta um programa federativo de enfrentamento às consequências da Covid-19, reorganizando alguns aspectos da arquitetura fiscal da União, Estados e Municípios. Tal projeto foi aprovado pelo Senado Federal e segue para a sanção presidencial.

Mesmo antes de inovar verdadeiramente nossa ordem jurídica, tal instrumento normativo já vem causando muitas incertezas aos candidatos de certames públicos. Por isso, o ponto nevrálgico de discussão aqui é se ele suspenderá a realização e a nomeação em face dos concursos da área de saúde e de segurança pública. Afinal, estarão todos suspensos?

Antes de respondermos a tal questionamento, cumpre-nos dizer que este Projeto de Lei não pode ser decotado da realidade social e econômica que estamos vivendo. O referido projeto constrói regras excepcionais de distribuição de recursos da União, principalmente porque, pelo nosso sistema centrípeto de arrecadação tributária, boa parte do dinheiro do Brasil encontra-se nas mãos dela.

Tal ajuda do Governo Federal demandará contrapartidas dos demais entes federativos. Para receberem tal auxílio, os Estados e os Municípios precisam atender a um conjunto de restrições de gastos, porquanto não seria razoável receber auxílio federal para gastos absolutamente discricionários e descontextualizados da conjuntura vivida.

No que tange às contratações, nos termos do art. 8º, inciso IV, ficam proibidas, salvo nos seguintes casos: a) as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa; b) as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios; c) as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal; d) as contratações de temporários para prestação de serviço militar; e) as contratações de alunos de órgãos de formação de militares.

Fato é que, mesmo sabendo do caráter excepcional de nomeações nesse período, as contingencialidades da crise de saúde mundial sobrelevam a importância de recomposição de determinadas categorias profissionais, principalmente por estarem mais expostas aos riscos de contaminação e por necessitarem intensificar suas ações funcionais em prol da manutenção da teia social. É o caso dos profissionais de saúde e da segurança pública.

As forças de segurança, por exemplo, estão contempladas em outras leis derivadas desse momento de crise de saúde mundial. Isso reforça a tese de que, a despeito de restrições de gastos, tais categorias vêm recebendo atenção especial do legislador pela essencialidade de suas funções e pelos maiores riscos dela derivados. Dentro desse espírito, a Lei 13.898/2020 veda, no art.  18, uma série de despesas, mas excepciona, no § 1º, ações de segurança pública; o Decreto nº 10.282/2020, que regulamenta a Lei 13.979/2020, estabelece, como não poderia deixar de ser, a segurança pública como serviço essencial indispensável ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade (art. 3º, § 3º, III). Por isso, acreditamos que o Projeto de Lei não pode ser interpretado fora dessas balizas.

Neste cenário, a discussão sobre o tratamento diferenciado dos profissionais de saúde e de segurança precisa ser avaliada sem desconsiderar a necessidade de se recompor a defasagem histórica de pessoal e a precariedade de infraestrutura das polícias e do sistema de saúde. Até porque os policiais e os profissionais de saúde tendem a adoecer nessa crise sanitária mundial em razão da maior exposição ao vírus, o que escancarará ainda mais a dívida histórica em investimentos nessas áreas.

Quando se lê o artigo 10 do presente Projeto de Lei, poder-se-ia acreditar, num primeiro momento, que se determina a suspensão dos prazos de validade de todos os concursos públicos já homologados na data da publicação do Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, em todo o território nacional, até o término da vigência do estado de calamidade pública estabelecido pela União. Contudo, essa não é a melhor exegese do dispositivo: deve-se perceber tal mecanismo como uma garantia aos candidatos de concursos que, uma vez não abarcados pelas exceções legais de contratação elencadas no inciso IV, do art. 8º, não sejam prejudicados em virtude desse período de vedação a nomeações.

Dessa forma, conjugando-se o art. 8º, inciso IV, com o art.  10, não há outra interpretação senão a de que os concursos homologados só serão suspensos se não estiverem contemplados nas exceções mencionadas no inciso IV do art. 8º, inclusive com o mote de recompor as lacunas estruturais preexistentes (vacâncias).

Defendemos que, implicitamente, deva existir o importante requisito de serem tais concursos vinculados às áreas essenciais (por mais que isso não esteja previsto expressamente no Projeto de Lei). Aduzimos isso, pois esse não parece ser o momento adequado para contratações que não se destinem às atividades de enfrentamento à pandemia. Repare que a contratação fora dessas áreas não estaria vedada pela Lei (desde que se encaixem nas exceções construídas no bojo do art.  8º, inciso IV), mas não pareceria política e economicamente adequada.

Ademais, certames públicos derivados da reestruturação do quadro de pessoal, por meio da criação de novos cargos a partir da vigência da referida lei, salvo se vinculada às demais exceções do art.  IV do art.  8º, podem ser suspensos, mesmo que afetos a áreas absolutamente estratégicas para o combate à pandemia (inclusive saúde e segurança pública). A lei e o contexto não permitem o aumento irrestrito da máquina pública, mas, tão somente, a recomposição das vagas da carreira que já estavam preteritamente vacantes ou nos casos das demais exceções infralistadas, como nas hipóteses de contratações de temporários para prestação de serviço militar e de alunos de órgãos de formação de militares:

Art. 8º. IV – admitir ou contratar pessoal, a qualquer título, ressalvadas as reposições de cargos de chefia, de direção e de assessoramento que não acarretem aumento de despesa, as reposições decorrentes de vacâncias de cargos efetivos ou vitalícios, as contratações temporárias de que trata o inciso IX do caput do art. 37 da Constituição Federal, as contratações de temporários para prestação de serviço militar e as contratações de alunos de órgãos de formação de militares.

Acerca das vacâncias, frisamos que tal Projeto de Lei não se limita ao preenchimento de vacâncias ocorridas após a entrada em vigor desse novo comando normativo ou mesmo em face da publicação do Decreto Legislativo n. 6 de 20 de Março de 2020. Se essa fosse a intenção do legislador, teria deixado expresso tal marco delimitatório no inciso IV, do art. 8º do Projeto, o que optou por fazer somente no caput do art. 10. Até porque, a nosso ver, a sensibilidade do legislador em tentar corrigir a deficiência histórica em áreas estratégicas foi tardia, mas não inoportuna.

Outra importante informação é que os concursos em andamento não precisam ser paralisados ou suspensos, porquanto o requisito necessário para eventual sobrestamento é que tenha havido a homologação do certame até a data da publicação do Decreto Legislativo n. 6, de 20 de Março de 2020 (nos termos do art.  10 do Projeto de Lei). Já os concursos ainda não iniciados, se tiverem por fundamento a reposição de vacâncias (atuais ou pretéritas), serão permitidos por força do art. 8º, inciso V.

Informação importante é que o legislador não se imiscuiu nas nomeações derivadas de mandamentos judiciais. Diferentemente do que o fez em relação ao art.  8º, inciso I, permitindo a concessão de quaisquer tipos de vantagens pessoais somente quando derivada de sentença judicial transitada em julgado (afastando as de caráter precário), não houve qualquer tipo de especificação nesse sentido em relação às contratações de servidores. Nesse caso, por óbvio, parece evidente que não há justificativa para o desrespeito às ordens judiciais de nomeação, ainda que a título de tutela de urgência ou de evidência.

Em resumo, não só é permitido, como é absolutamente necessário recompor ao máximo o quadro das carreiras diretamente envolvidas no enfrentamento da pandemia (precipuamente as da área saúde e da segurança pública), pois, em sendo real o risco de adoecimento dos integrantes destas categorias profissionais, não seria possível a nomeação de novos servidores em virtude somente de licença médica (a qual não induz a vacância do cargo público). Ou seja, tais contratações, permitindo uma recomposição dos quadros de pessoal (mesmo que atrasada), servem também como reserva de pessoal em um momento para lá de delicado.

 é delegado de polícia do RJ e professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro, da Escola da Magistratura de Mato Grosso e do Cers. Autor de livros e palestrante.

Eduardo Fontes é delegado de Polícia Federal, professor do Cers (onde também coordena a pós-graduação) e especialista em Segurança Pública e Direitos Humanos pelo Ministério da Justiça. Coordenador do Iberojur no Brasil e autor e coordenador da Juspodivm.