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Camila Torres: Na defesa republicana dos direitos e das garantias

Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, mais conhecido como Ministro Marco Aurélio, completou neste sábado (13/6) 30 anos de ofício perante o Supremo Tribunal Federal (STF).

Ainda que as opiniões se dividam quanto ao estilo de sua atuação — reconhecida por fundamentadas divergências e boas doses de ironia —, é unânime a resposta à afirmação de que o vice-decano marcou e ainda marca a história da mais alta corte brasileira e, por consequência, do Direito nacional e do próprio Estado democrático.

Ao longo destas três décadas, o magistrado não se furtou a emitir opinião acerca de temas polêmicos, seja a respeito dos demais poderes, de seus pares ou sobre o funcionamento do próprio tribunal, postura que, por vezes, colocou-o sob os holofotes da opinião pública, fato que não parece intimidá-lo e nem mesmo motivar a alteração de seus entendimentos.

Trata-se de julgador que não se incomoda em ficar na corrente minoritária”, “exigindo apenas que se consigne como votou” e que faz questão de dizer, com acerto, que os ministros não estão “no colegiado pra dizer amém como se fôssemos vaquinhas de presépio quanto ao relator”.

Seguindo à risca a premissa de que “o presidente (da Corte) é apenas um coordenador de iguais”, o Ministro Marco Aurélio é assertivo ao discordar dos colegas nesta posição, como comprovam as recentes críticas ao ministro Alexandre de Moraes. O desacordo com a decisão monocrática do colega, que suspendeu nomeação de cargo pelo Presidente da República, culminou em proposta de emenda ao regimento interno da corte a fim de transferir ao Plenário a competência para apreciar pedido de tutela de urgência, quando envolvido ato do Poder Executivo ou Legislativo praticado no campo da atuação precípua.

É certo que muito já se falou de sua marcante trajetória, da passagem pela advocacia, por Ministério Público e magistratura, também se destacou sua importância para a modificação da jurisprudência através da defesa de entendimentos minoritários e que, com o passar dos anos, foram consolidados pela Corte Suprema.

A análise de sua biografia revela outro ponto interessante: na gestão como presidente do STF, biênio de 2001/2003, abriu-se a primeira licitação com 30% das vagas reservadas para negros, visando a contratar profissionais para prestação de serviços de jornalismo.

Na ocasião, o vice-decano já defendia a adoção de cotas para pretos e pardos no serviço público como instrumento de combate à desigualdade, reconhecendo que “A neutralidade estatal mostrou-se nesses anos um grande fracasso”.

Suas colocações não poderiam ser mais pertinentes.

Em 2012, no histórico julgamento da ADPF 186/DF, que reconheceu a constitucionalidade da aplicação do sistema de cotas raciais em universidades públicas, nosso homenageado trouxe, em companhia do relator Ricardo Lewandowski e demais julgadores (cujos votos também merecem ser lidos na íntegra), importantes argumentos para a discussão dos impactos do racismo no Brasil e sobre a necessidade de práticas concretas para melhoria das condições de vida da população negra.

O ministro declarou que, a partir da Constituição de 1988, passou-se de uma “igualização estática, meramente negativa” para uma igualização eficaz, dinâmica, já que os verbos ‘construir’, ‘garantir’, ‘erradicar’ e ‘promover’ implicam mudança de óptica, ao denotar ‘ação'”. Portanto, prossegue, não basta não discriminar. É preciso viabilizar e a Carta da República oferece base para fazê-lo as mesmas oportunidades (…). A postura deve ser, acima de tudo, afirmativa” (destaques da autora).

O julgador advertiu que descabe supor o extraordinário, a fraude, a má-fé, buscando-se deslegitimar a política“, haja vista que outros conceitos utilizados pela Constituição também permitem certa abertura (hipossuficientes, portadores de necessidades especiais, microempresas) sem que isso impeça a implementação de benefícios a estes grupos (destaques da autora). E concluiu que só existe a supremacia da Constituição Federal quando, à luz desse diploma, vigorar a igualdade.

Trata-se de importante lembrete, visto que estamos às vésperas de 2022, ano em que deverá acontecer, por força de lei (artigo 7º da Lei 12.711/2012 — Lei de Cotas) a revisão do programa especial para o acesso às instituições de educação superior de estudantes pretos, pardos e indígenas e de pessoas com deficiência, bem como daqueles que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas.

Dados revelam que a experiência não apenas foi bem sucedida, como deveria ser mantida até que se verifique nos bancos das universidades a mesma proporção populacional de pretos, pardos e indígenas.

Já as cotas no serviço público federal, defendidas pelo Ministro Marco Aurélio em 2001, foram positivadas via Lei 12.990/2014, que estabeleceu reserva de 20% das vagas para negros em concursos públicos de cargos na administração pública federal. A matéria foi levada ao STF para exame de constitucionalidade através da ADC 41/DF, de relatoria do ministro Luis Roberto Barroso, cujo voto foi integralmente acompanhado pelo vice-decano.

Em 2015, baseando-se nos dados do primeiro censo do Judiciário, que apontou menos de 2% de magistrados pretos e 14% de pardos, o Conselho Nacional de Justiça editou a Resolução 203/2015, reservando 20% de vagas para os negros no âmbito daquele poder.

A quase um ano de sua aposentadoria, que ocorrerá em 2021, o ministro deixa um legado de intensa contribuição nas mais diversas áreas do Direito, escrevendo uma biografia de forte apelo aos direitos humanos e às garantias individuais. Seus julgados destacam o respeito à independência dos poderes e a aplicação da Constituição Federal alicerçada nos princípios que a norteiam.

Em meio a “tempos estranhos”, convém lembrar seu ensinamento de que, nestas horas, “impõe-se observar princípios, impõe-se a resistência democrática, a resistência republicana”, porque, como diz o ministro, “na vida, não há espaço para arrependimento, para acomodação, para o misoneísmo, que é a aversão, sem se querer perceber a origem, a tudo que é novo”.

Como se recorda nesta data, por certo que os votos do Ministro Marco Aurélio, vencidos ou não, deixarão saudosos todos aqueles que almejam e contribuem para construção de um Poder Judiciário garantista e livre de preconceitos.

Camila Torres Cesar é advogada criminalista, membro da Comissão de Igualdade Racial da OAB-SP e mestranda em Direito Político e Econômico pelo Mackenzie-SP.

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Gabriel Llona: Julgamento de crimes comuns conexos com eleitorais

Em pauta desde março de 2019, quando do julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, a competência da Justiça Eleitoral para julgamento dos crimes comuns conexos com crimes eleitorais voltou aos holofotes no último dia 7 de maio, quando o Tribunal Superior Eleitoral aprovou uma resolução para disciplinar o julgamento dos referidos crimes por essa Justiça especializada.

Desde que foi ratificada a competência da Justiça Eleitoral para julgamento dos crimes conexos, muitas divergências foram levantadas, não só pelos próprios ministros do Supremo Tribunal Federal (6 a 5), mas também pelos procuradores-gerais à época, que defendiam a competência da Justiça Federal para tanto e suscitaram não só eventuais prejuízos das grandes operações em andamento (como a “lava jato”, por exemplo) com essa suposta “transferência” de competência, mas também as preocupações de capacidade da Justiça Eleitoral (número de juízes, servidores, cartórios, qualificação dos magistrados), para suportar o recepcionamento e o julgamento da quantidade de processos vindos das grandes operações instaladas nos últimos anos.

Embora determinadas “preocupações” sejam passíveis de atenção pela Justiça Eleitoral, como a necessidade uma maior adequação física para receber essa vultuosa quantidade de novos processos, o ponto é que a competência da Justiça Eleitoral encontra previsão no próprio Código Eleitoral, por atribuição da Constituição Federal, razão pela qual tais dúvidas não são passíveis de dirimir e afastar sua competência. Além disso, possui a corte eleitoral brasileira composição heterogênea, mesclada entre advogados e magistrados de diversas áreas, oriundos, inclusive, da Justiça Federal, comprovando, portanto, a capacidade de realizar o julgamento de processos que até então tramitavam na esfera federal.

Fato é que um ano após toda a polêmica envolvida no referido julgamento, acompanhado da preparação e adaptação da Justiça Eleitoral para essa nova realidade, contando com um grupo de trabalho no TSE, coordenado pelo ministro Og Fernandes, para colocar em prática a decisão do STF, foi aprovada a tão esperada resolução para disciplinar o julgamento pela Justiça Eleitoral dos crimes comuns conexos aos crimes eleitorais.

Entre os termos aprovados por unanimidade pelo TSE está a possibilidade de Tribunais Regionais avaliarem a necessidade de dispor de uma vara especializada exclusivamente para tal feito, isto é, caberia a uma ala eleitoral específica a competência para recebimento e julgamento destas demandas.

Além disso, a resolução também prevê a possibilidade de manutenção do magistrado de zona eleitoral por mais um biênio caso entenda que alguma investigação em curso justifique essa prática, desde que limitado a um biênio consecutivo.

Também foi determinado que os processos devem tramitar pelo sistema eletrônico, com exceção dos processos que tramitem nas zonas eleitorais que não dispunham do processo judicial eletrônico (PJE), os quais ainda tramitarão em meio físico — o que auxiliará (e muito) no recepcionamento das ações pelos cartórios eleitorais.

Com relação aos processos já em andamento, cuja instrução já tenha sido encerrada ou que já tenham sido julgados, determinou a resolução que serão consideradas válidas as decisões e medidas adotadas pelo juízo em que o processo tramitava antes da redistribuição.

Como se pode verificar da Resolução aprovada pelo TSE, portanto, é nítida a preocupação da Justiça Eleitoral no intuito justamente de se adequar a essa nova realidade, destacando a importância e relevância de todas as operações e investigações de crimes tão gravosos que vemos noticiados diariamente, especialmente para que não haja prejuízo daquelas já em andamento, como também adotando medidas para não sobrecarregar as zonas eleitorais.

Tal preocupação é de suma importância, dada essa nova responsabilidade que fica a cargo da Justiça Eleitoral (decisão sobre os inquéritos e dos desmembramentos dos processos criminais). No entanto, não há dúvidas, assim como já vemos ao longo de tantos anos, da capacidade da Justiça Eleitoral, sendo tal responsabilidade medida de praxe desta seara, que além de já lidar com o julgamento dos crimes eleitorais também lida com toda a responsabilidade de julgamento de basicamente todo o processo democrático do país, tendo sempre exercido com maestria tamanha função.

Cabe agora aos Tribunais Regionais se adequarem aos termos da resolução, especialmente aqueles que já tenham normatizado o tema até a data de aprovação da medida, cujo prazo fixado pelo TSE foi de 30 dias para sua respectiva adequação.

 é especialista em Direito Eleitoral e advogado do escritório Vilela, Silva Gomes e Miranda Advogados.

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Entrevista: José Eduardo Cardozo, advogado e ex-ministro da Justiça

José Eduardo Martins Cardozo apareceu e saiu dos holofotes da cena política em dois processos de impeachment. Em ambos, suas teses acabaram derrotadas. No primeiro, como presidente da CPI da Máfia dos Fiscais na Câmara de Vereadores de São Paulo, durante a gestão do então prefeito de São Paulo Celso Pitta (1997-2000), o pupilo do ex-prefeito Paulo Maluf acabou se safando em votação no plenário, em junho de 2000.

Mas o trabalho de Cardozo rendeu a cassação de três vereadores e, na eleição daquele mesmo ano, foi o candidato a vereador mais votado na capital paulista, com quase 230 mil votos.

Em 2016, depois de dois mandatos como vereador, outros dois como deputado federal e cinco anos à frente do Ministério da Justiça (2011-2016), deixou a função de advogado-Geral da União em maio quando a então presidente Dilma Rousseff foi afastada pela Câmara dos Deputados. Passou a atuar como advogado particular da petista durante o processo de impeachment no Senado.

Nos embates com Janaina Paschoal, uma das coautoras do pedido contra Dilma, a hoje deputada estadual pelo PSL levou a melhor na batalha. E acabou sendo eleita em 2018 com a votação mais expressiva (2.060.786) na história da Assembleia Legislativa de São Paulo.

Cardozo se retirou da vida política e voltou a ser advogado e professor. Procurador do Município de São Paulo aposentado, hoje advoga e dá aulas na capital paulista (PUC) e em Brasília (UniCEUB).

Em entrevista exclusiva à ConJur, bateu no ativismo judicial, defendeu sua gestão à frente do Ministério da Justiça durante os governos Dilma  (2011-2016) e lembrou da pressão que sofreu tanto do seu partido [PT] quanto da oposição por suposta falta de “controle” sobre as ações da Polícia Federal.

Lembrou de quando foi convocado para depor no Congresso: “Das duas, uma, ou eu não controlo [a PF] ou eu instrumentalizo. Decidam. Na verdade, não era nem controlar nem instrumentalizar, é saber respeitar o Estado de Direito, só isso”.

Cardozo criticou os “engenheiros de obras prontas” nos casos da “Lei Anticorrupção” e do instituto da delação premiada, ambas sancionadas por Dilma e ferramentas essenciais nas condenações proferidas pelo então juiz Sergio Moro.

Quando você faz uma lei, é a partir da análise do momento em que é elaborada. Nunca imaginei que fosse ser utilizada da forma abusiva que foi.”

Na conversa de mais de 2 horas pelo telefone, o professor falou muito sobre impeachment, do acordo de cooperação investigativa com os Estados Unidos, de Constituição, do governo Bolsonaro e do nosso ordenamento jurídico.

“Não foi o ordenamento jurídico que falhou [nos abusos cometidos pela “lava jato”]. Foram os homens que operavam o ordenamento jurídico que falharam. Pelo Estado de Direito, os fins não justificam os meios. Pelo Estado de Direito, não poderiam ter feito coisas como foram feitas, condenações sem provas, condenações por convicções, condenações midiáticas, operações feitas para chamar atenção da opinião pública.” 

Leia abaixo os principais trechos da entrevista:

ConJur — Na entrevista em que anunciou que deixava o governo, o então ministro Sergio Moro [Justiça] citou vocês [governos Lula e Dilma]. Disse que a Polícia Federal não sofreu interferência direta como viria a sofrer neste atual governo. Não deixa de ser um elogio, mas também não foi temerário deixar o consórcio formado a partir da 13ª Vara Federal de Curitiba operar com tamanha liberdade?
José Eduardo Cardozo — É uma crítica que tenho ouvido muitas vezes. Lembro da época que até fui criticado por alguns companheiros. Por adversários também, quando uma investigação chegava aos deles.

Diziam que estava instrumentalizando a Polícia Federal contra eles. Fui até chamado no Congresso. Estava em curso uma investigação que falava do cartel do Metrô de São Paulo. Tinha mandado abrir uma investigação e me chamaram para dizer que eu estava intimidando o Congresso, instrumentalizando a Polícia Federal.

Falava: das duas, uma, ou eu não controlo ou eu instrumentalizo. Decidam. Na verdade, não era nem controlar nem instrumentalizar, é saber respeitar o Estado de Direito, só isso. Não se  pode interferir numa investigação, a não ser em casos de abusos, abrindo inquéritos. E isso foi feito em todos os casos por mim quanto pelo Leandro Daiello, que era o diretor-geral da Polícia Federal.

ConJur — Mas houve muito abuso, não? Fica a impressão de que Polícia Federal e Ministério Público são incontroláveis, sem hierarquia.
Cardozo — Estes órgão têm autonomia investigativa, mas não têm autonomia para cometer abusos. Várias inquéritos foram abertos quando se tinha vazamento. Aliás, vou ser bem sincero. Na “lava jato”, parte daquilo que a imprensa falava em vazamento, era Moro quem já tinha levantado o sigilo de inquérito. Então não havia ilegalidade. Agora, se alguém da força-tarefa indicava aos jornalistas páginas do processo… Mas era público.

Muitas vezes a Polícia Federal é a parte visível das operações porque faz a busca, a prisão. A Polícia Federal apenas cumpre o que um juiz determina.

O ministro da Justiça não tem como punir delegado, mesmo que ele ache que a ordem judicial é arbitrária. Você está cumprindo ordem judicial. Quem tem que fiscalizar abusos do Judiciário não é o ministro da Justiça. É o CNJ (conselho da Justiça), o CNMP (conselho do Ministério Público).

Essa má compreensão das instituições que funcionam num Estado de Direito tem uma mentalidade autoritária. Cobra agir com os amigos diferente do que se age com os adversários. E isso fazia com que nós sofrêssemos muitas críticas de descontrole.

ConJur — Em 2014 o FBI já tinha feito grandes acordos no combate à corrupção no Brasil. Em 2013 Dilma havia sancionado a chamada “Lei Anticorrupção” e também oficializado o instituto da delação premiada. Não foi o conjunto dessas ações que possibilitou quase todas as condenações de Moro?
Cardozo — Era um projeto de lei muito antigo. Nós apoiamos. Quando você faz uma lei, é a partir da análise do momento em que é elaborada. Nunca imaginei que fosse ser utilizada da forma abusiva. Na verdade, visava combater organizações criminosas. Era necessária para enfrentá-las.

Agora, prender pessoas para delatar. Nunca imaginei que fossem dar uma latitude tão grande a isso. Hoje, pela experiência, acho que essa lei tem que ser aperfeiçoada para evitar o abuso de poder. Naquela época não tínhamos essa avaliação. Você nunca prevê o futuro.

Achava que as pessoas iam utilizar essa lei dentro das finalidades que ela estabelece e não utilizando a lei como pretexto para verdadeiros atos de tortura, quando o investigador vem e diz: “ou fala o que eu quero ou continua preso”.

Então, me admiro também, muitas vezes, alguns engenheiros de obras prontas. No momento em que a lei foi aprovada, não falaram nada.

ConJur — Houve cooperação da força-tarefa de Curitiba diretamente com investigadores dos Estados Unidos sem o governo federal ser informado. O que o senhor tem a dizer?
Cardozo — A Polícia Federal tem acordos de cooperação com polícias do mundo inteiro, não só com os Estados Unidos. Evidentemente eu não sei te dizer que tipo de contatos foram utilizados pela força-tarefa, Ministério Público e Polícia Federal com o acordo de cooperação. Há muita especulação sobre isso. Sou daqueles que não falo por convicções, só com provas.

Então, sinceramente, acho que não tenho como falar de fatos que eu não sei e que pesa haver muita especulação a respeito.

ConJur — Anos depois, como o senhor avalia a operação “lava jato”. Está enfraquecida?
Cardozo — A “lava jato” tem dois lados. Uma intenção muito boa e um propósito excelente que é o combate à corrupção. A corrupção é um dos grandes malefícios do Brasil historicamente.

Mas tem um lado perverso. No Estado de Direito, os fins não justificam os meios. E em face dessa situação eu vi na operação situações extremamente abusivas. Aquelas que competiam à Polícia Federal eu mandei abrir sindicância. Todavia, vi uma série de abusos no âmbito do Poder Judiciário e no âmbito do Ministério Público.

Prisões indevidas, temporárias, cautelares, apenas com o objetivo de intimidar, de criar fatos midiáticos ou delações premiadas. Situações de perda de imparcialidade. Aliás, todas elas agora escancaradas pelas divulgações do The Intercept Brasil.

Então vejo um lado perverso, demoníaco, que prestou um grande desserviço ao país, que é exatamente essa burla da legalidade, responsável pelo desequilíbrio de poder. Acho que seria perfeitamente possível, como todos os países do mundo fazem, combater a corrupção de frente, sem comprometer a saúde das empresas. A “lava jato” acabou provocando, no Brasil, problemas e danos econômicos seríssimos.

Nós tentamos dialogar com o Ministério Público justamente para punirem as pessoas físicas que tinham feito isso. Punir o CPF, mas não punir as empresas.

ConJur — Nosso ordenamento jurídico falhou?
Cardozo — Não foi o ordenamento jurídico que falhou. Foram os homens que operavam o ordenamento jurídico que falharam. Pelo Estado de Direito, os fins não justificam os meios. Pelo Estado de Direito, não poderiam ter feito coisas como foram feitas, condenações sem provas, condenações por convicções, condenações midiáticas, operações feitas para chamar atenção da opinião pública ao invés de uma finalidade de investigação.

ConJur — Uma avaliação da gestão de Moro à frente do Ministério da Justiça.
Cardozo —  Logo que ele aceitou, para meu espanto, um ministério daquele que indiretamente ajudou a eleger, achava antiético. Dizia também o seguinte: pelo perfil que eu observava, Jair Bolsonaro, que eu conheci, porque fui deputado com ele, e Sergio Moro, que observei como juiz, a situação era incompatível sem que um se submetesse ao outro.

E neste pouco mais de um ano que esteve no Ministério da Justiça a atuação ficou muito a desejar. Se limitou ao tal do “pacote anticrime”. Se tivesse sido aprovado na versão que ele mandou para o Congresso, seria um desastre. Vi também uma postura muito acanhada como ministro durante a crise do coronavírus. Ele sumiu.

ConJur — O senhor publicou recentemente um artigo aqui na ConJur em que defende decisão liminar que impediu a posse do novo diretor-geral da Polícia Federal escolhido pelo presidente.
Cardozo — Exato.

ConJur — No mesmo texto, porém, discorda de uma também decisão monocrática do STF, em 2016, que impediu a posse do ex-presidente Lula como ministro da então presidente Dilma. Pode explicar melhor?
Cardozo — Tenho sido muito crítico do ativismo judicial. Julgar significa aplicar dentro das possibilidades daquilo que a lei e a Constituição dizem. Não pode ser aquilo que eu quero que a Carta diga. Descalibra o Estado de Direito. Feita a ressalva, digo que a teoria do controle de atos administrativos pelos textos jurídicos é uma norma antiga e pacífica. Vem do Direito francês e tem relação com a aplicação do princípio da legalidade. Se no Estado de Direito é a lei que determina o que é interesse público, o ato administrativo perfeito tem por finalidade alcançá-lo. Se um ato administrativo concretamente praticado se desvia da finalidade que a lei consagra, é um ato ilegal. E se é ilegal, o Judiciário tem o dever de anular. Normalmente, os autores brasileiros e estrangeiros afirmam que o desvio de poder não exige uma prova documental, digamos assim, absoluta, mas que ele se revela por um conjunto de indícios que somados mostram a finalidade desviada do ato. Exigir recibo de desvio de poder é a mesma coisa que exigir recibo de corrupção. Você prova por um conjunto de indícios.

No caso do presidente Bolsonaro, parece que fica claro, com o conjunto de indícios que mostram a correção da decisão do ministro Alexandre de Moraes. A renúncia de Moro isolada, por si só, não seria um conjunto de indícios.

Bolsonaro já disse que teve que pedir quase de joelhos para a Polícia Federal investigar uma coisa que poderia mostrar a inocência dos seus filhos. O presidente da República nem manda nem pede investigação para preservar quem quer que seja ou para punir quem quer que seja. Quem conduz uma investigação, pela lei, é o delegado de polícia. O ministro da Justiça e presidente da República são apenas superiores administrativos da Polícia Federal. Isso não lhes dá o direito de pedir investigação, até porque num caso desse tipo em que eu queira proteger alguém, isso obviamente tem a ver com a ausência do princípio da impessoalidade, que está previsto no artigo 37 da Constituição.

O Executivo tem liberdade para escolher quem queira nomear, mas se junto de evidências que cercam a nomeação ou qualquer ato administrativo mostrar que esta nomeação se destina a desrespeitar a lei, aí é desvio de poder.

ConJur — E o caso do ex-presidente Lula?
Cardozo — Vamos aos fatos. Primeiro, Moro divulga ilegalmente um áudio descontextualizado. Hoje fica cada vez mais claro que, se tivesse divulgado todos os áudios que envolviam aquela conversa vazada, nós saberíamos que Lula não queria ser nomeado justamente para que não dissessem que ele estava tentando se livrar da prisão. Mas naquele momento não eram conhecidas as descontextualizações do áudio.

Esse áudio é a razão de ser da decisão do Supremo, uma prova ilícita que a Corte [decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes] não sabia que era.

Mas mesmo que não fosse ilícita, a presidente, claramente, por meio de seus ministros, em uma nota oficial, disse que não confirmou aquele diálogo nesse sentido. Explicou que o sentido era outro. Lula não tinha aceitado naquele momento. Só poderia ir à posse já marcada de dois ministros numa sexta-feira porque acompanharia dona Marisa ao hospital.

Então o que eu tenho juridicamente é uma prova ilegal, que pedia uma interpretação, não confirmada pela presidente. O Supremo então tinha que ter esse contexto. A teoria do desvio de poder é a mesma a qualquer ato administrativo, só que no caso de Lula e Dilma não havia a certeza.

ConJur — Sobre impeachment. Se Eduardo Cunha não tivesse poder regimental de timing do processo, o desfecho poderia ter sido outro?
Cardozo — Não tenho a menor dúvida que sim. A bola propulsora do impeachment foi Eduardo Cunha, que contou com o apoio do grupo comandado por Aécio Neves.

Esse grupo não concordava com o resultado das eleições de 2014. E desde o primeiro dia tentou articular razões para o impeachment. Recontagem, que as máquinas de votação não funcionavam. Moveram tudo o que podiam. Aí, quando nada deu certo, foram para o impeachment. Contavam com Cunha porque o o presidente da Câmara queria controlar o governo para parar a “lava jato”. Ele não escondia isso.

E a gota d’água foi quando Dilma não comandou o PT, e nem deveria, para que o partido votasse contra o pedido de processo de cassação dele.

ConJur — O senhor não acha que o presidente da Câmara acumula muito poder?
Cardozo — Acho que a legislação do impeachment, como um todo, é muito antiga. Consegue ser mais velha do que eu, de 1950 [Cardozo nasceu em 1959].

Houve até um pedido do PCdoB, que entrou com uma ação no Supremo para criar regras depois do impeachment já aberto. Houve uma decisão do ministro [Luís Roberto] Barroso, e o STF acatou as regras como base do julgamento do presidente Fernando Collor. É necessária uma nova lei que rediscipline o impeachment. Precisa ser ajustada à Constituição de 1988, ao espírito democrático dela, inclusive dessa questão da abertura do processo de impeachment.

ConJur — No impeachment de Dilma, muitos defenderam que os crimes de responsabilidade tenham natureza penal. Outros defendem que são de natureza política.
Cardozo — O  fato dele ser chamado de crime não o transforma num processo penal, até porque um presidente pode ser condenado penalmente ou não condenado penalmente e ter ou não ter um processo de impeachment.

São responsabilizações diferentes, o que não afasta a necessidade de ter pressupostos jurídicos. A diferença entre o presidencialismo e o parlamentarismo, uma delas, está justamente no fato que quando um presidente perde a maioria parlamentar, ele cai. No presidencialismo, não. Então isso mostra que não basta perder a maioria parlamentar, é necessário juridicamente ter pressupostos e um ato ilícito grave sobre o qual se abre defesa para que se perca o mandato.

Ora, portanto não é um processo só político, em que basta a conveniência. É necessário demonstrar a ocorrência de um fato que justifique o crime de responsabilidade.

ConJur — O senhor acha que a presidente Dilma não cometeu crime. E o presidente Bolsonaro?
Cardozo — Não tenho a menor dúvida. Tinha muita dúvida antes, nos últimos meses. Porque os primeiros atos dele foram irracionais, destemperados, falava-se muita bobagem. Falar bobagem e mostrar situações de descompasso com a racionalidade não são crimes de responsabilidade.

A partir do momento em que passa a participar da convocação de atos antidemocráticos. Em que tenta utilizar o seu poder para interferir nas investigações, isso a meu ver configura crime de responsabilidade.

Agora, há um juiz de conveniência e oportunidade que compete ao Congresso. O presidente pode partir para o ilícito e entender que não é caso de impeachment porque seria pior para a sociedade tirá-lo do que ele ficar. Então, por isso que é um processo jurídico-político.

ConJur — Alguma sugestão de como deveria ser redesenhado o processo de impeachment no presidencialismo brasileiro?
Cardozo — Tenho duas sugestões. Uma micro e outra macro. A micro é uma nova lei, uma perspectiva que seja mais segura, para garantir  o contraditório.

Numa perspectiva maior, daí eu falo das minhas convicções, que não são nem as do meu partido. Sou parlamentarista, acho o presidencialismo um sistema que traz instabilidade política e insegurança. Então, pessoalmente, se pudesse, proporia para o país o semipresidencialismo, que acho que se ajustaria muito bem à realidade histórica e cultural brasileira, nos moldes que existe em Portugal e na França. E isso casa com o voto distrital misto, que é o sistema alemão. Tudo isso qualificaria o sistema perfeito? Não, porque não existem sistemas perfeitos nem democracia perfeita, embora seja o melhor dos sistemas.

ConJur — Acha que o inquérito autorizado pelo Supremo contra Bolsonaro pode canalizar a decisão para o Judiciário em vez de ficar no Congresso?
Cardozo — Pode. A Procuradoria-Geral da República teria que denunciá-lo. Aí a autorização para abertura do processo pode implicar no seu afastamento. Claro, até o julgamento do processo. Então, talvez, se isso vier a acontecer, seria a maneira mais rápida, dentro da Constituição, desde que provado que ele praticou o crime. Ele pode ser afastado.

ConJur — Sobre Constituição. O senhor acha que ruiu esse modelo de 1988?
Cardozo – Não. Sou um defensor da Constituição de 1988, embora ache que existem algumas questões que nós devemos discutir para aperfeiçoá-la. O grande mérito dela é que firmou um Estado Democrático de Direito e assegurou direitos fundamentais e instituições como nunca antes nós tivemos na nossa história.

Evidentemente que há aspectos, por exemplo, em que acho que não andou bem. A reforma agrária, por exemplo. A Constituição de 1946 é um pouco mais avançada do que a nossa atual. Mas, de modo geral, é uma Constituição avançadíssima dentro da nossa história.

ConJur — Um dos argumentos utilizados para o impeachment de Dilma era a questão orçamentária, equilíbrio fiscal, que está dentro desse desenho da Constituição.
Cardozo — Sou favorável ao equilíbrio fiscal. Acho que nenhum governo pode ser irresponsável com as suas contas. O que eu sou contra é o engessamento que foi feito não pela nossa Constituição, mas por aquela emenda ao longo do governo Temer [2016-2018], que engessa teto de gastos. Aí é um pecado introduzido pelo Michel Temer.

ConJur — A emenda do teto de gastos e a reforma trabalhista redesenharam a Constituição?
Cardozo — Acho que trouxe grandes marcas à Constituição. Ou seja, o mal não está na estrutura da Constituição de 1988, está em certas questões que foram nela introduzidas, a meu ver incompatíveis a seu próprio espírito. O Congresso decidiu. A reforma trabalhista foi muito ruim. O teto de gastos foi péssimo. Não é questão para ser tratada em Constituição. A Carta Magna tem que colocar os grandes princípios. Ali se tentou agradar o mercado e realmente se esqueceu que o Estado Democrático de Direito do Brasil é um Estado social.

ConJur — Na campanha de 2018 Fernando Haddad chegou a defender uma nova Constituição. O que o senhor pensa a respeito?
Cardozo — Não concordo. Acho que o redesenho constitucional do Brasil hoje vai sair pior a emenda que o soneto. Uma Constituinte hoje, no clima que nós vivemos no Brasil de intolerância, de ódio disseminado, onde o símbolo da arminha prevalece ao símbolo do coração. Diria que seria uma Constituição do ódio, não da pacificação e não da estruturação de um Estado democrático, como faz a de 1988.

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Chaves Junior: Lockdown e controle penal da saúde pública

Há tipos penais pouco percebidos nas práxis jurídica brasileira. O crime previsto no artigo 268 do Código Penal certamente é um desses. Tal como os delitos da Lei de Drogas (11.343/2006), a sua existência é justificada na proteção da saúde pública. É verdade que existem debates diversos no âmbito da dogmática penal que questionam a legitimidade desse bem jurídico coletivo [1]. No entanto, não é este o meu objetivo aqui. Vou partir da premissa (que reconheço duvidosa) de que a saúde pública é um legítimo bem jurídico coletivo para figurar no âmbito de proteção da norma penal.

A “infração de medida sanitária preventiva” teve para si os holofotes direcionados a partir dos meses de fevereiro e março deste ano de 2020, quando a Covid-19 chegou a categoria de pandemia. No Brasil de hoje, ninguém sabe ao certo quantas pessoas contraíram o coronavírus, quantas morrerão em decorrência dele ou, ainda, quando haverá um controle sanitário efetivo na forma de vacina ou outro método a partir do qual se possa estancar as contaminações e as mortes. Diante dessa realidade e, apostando no isolamento social como mecanismo de controle, governos locais [2] vêm apostando na técnica do confinamento absoluto (lockdown) emitindo-se determinações de bloqueio total de determinadas regiões, bairros ou cidades. A dúvida aqui é a seguinte: qual é a consequência penal para o agente que, intencionalmente, desrespeite essas determinações? Ou, melhor dizendo: considere alguém diagnosticado com a Covid-19 (doença sabidamente contagiosa) e que, diante dessa condição clínica receba determinação do órgão de saúde para que permaneça em isolamento domiciliar e, dolosamente, infringe essa determinação. Possivelmente esse comportamento encontraria tipicidade no deito do artigo 268 do CP, sobretudo tendo em vista a potencialidade dessa conduta em propagar a doença e contaminar outras pessoas. Mas qual seria a resposta penal possível para este sujeito?

O delito do artigo 268 do Código Penal incrimina a conduta de “infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa”. Sobre ele, Cezar Roberto Bitencourt [3] esclarece que é necessário demonstrar a idoneidade do comportamento infrator para produzir um potencial resultado ofensivo à preservação do bem jurídico (saúde pública). Conforme o autor, caso não reste evidenciado esse perigo (ainda que abstrato) de lesão à saúde, não há crime, pois o contrário admitiria que a mera infração de norma administrativa fosse constitutiva de delito. Neste ponto, o delito do artigo 268 do Código Penal somente abrangeria as infrações significativas de determinações do poder público, ou seja, aquelas que coloquem em perigo a saúde de um número indeterminado de pessoas, diante da séria possibilidade de introdução e propagação de doença contagiosa. Mas, o que desafia os cânones mais elementares da razoabilidade é a consequência na forma de pena que esse dispositivo carrega: um mês a um ano de detenção, mais multa. Tem-se, portanto, uma infração penal de menor potencial ofensivo.

Fazendo-se um paralelo com a Lei de Drogas (que, em tese, protege o mesmo bem jurídico coletivo), é fácil verificar que essa cominação não faz qualquer sentido. Como pode alguém que, comprovadamente infectado, infringe determinação do poder público e coloca em perigo a saúde de um número indeterminado de pessoas estar sujeito a pena de um mês de detenção enquanto aquele que guarda droga [4] está sujeito a pena de cinco anos de reclusão? Se o bem jurídico tutelado é exatamente o mesmo, como pode o perigo consubstanciado na difusão de doença contagiosa (que comprovadamente pode levar a morte) e consequente possibilidade de infecção de um número indeterminado de pessoas ter pena muito menor do que aquela cominada a alguém que guarda droga?

Aliás, a tomar como exemplo o seu artigo 33 da Lei de Drogas, podemos verificar que a resposta que o legislador determina ao condenado por essa prática é superior ao crime de instigação, induzimento ou auxílio ao suicídio [5] (seis meses a dois anos de reclusão), ao delito de lesão corporal gravíssima [6] (reclusão de dois a oito anos de reclusão), ao tipo penal que prevê o crime de lesão corporal seguida de morte [7] (quatro a 12 anos de reclusão), ao crime de abandono de incapaz com resultado morte [8] (reclusão de quatro a 12 anos), ao delito de maus tratos com resultado morte [9] (reclusão de quatro a 12 anos), e, também, mais alta que a pena cominada ao crime de tortura qualificada pela lesão corporal grave ou gravíssima [10] (quatro a dez anos de reclusão). Caso se trate de tráfico (transporte de droga, por exemplo) interestadual [11], a pena mínima fica próxima aos seis anos (Lei 11.343/2006, artigo 33 c/c artigo 40, V), sanção aproximada àquela imposta ao sujeito que mata (dolosamente) uma pessoa (CP, artigo 121, caput [12]).

Tal como o crime do artigo 268 do Código Penal, o crime do artigo 33 da Lei de Drogas traz consigo a justificação de proteger a saúde pública e, numa atenta análise à sua redação, não é difícil concluir que vários dos 18 núcleos previstos no seu tipo penal não representam qualquer ameaça à saúde de qualquer pessoa [13]. E ainda que existisse uma ameaça à saúde de pessoa determinada (ou mesmo, determinável), as perguntas são quase automáticas: por que é que a pena do crime de tráfico de drogas (guardar droga, por exemplo) é mais alta do que aquelas previstas para os crimes de tortura, lesão corporal gravíssima, lesão corporal seguida de morte e induzimento ao suicídio [14]? Qual é a expressão máxima de lesão à saúde? Não seria a morte a falência completa dessa condição? Não se verifica qualquer critério razoável para que se tenha tão elevada cominação, sobretudo, porque o legislador impõe tais penas, inclusive, sobre comportamentos que não geram qualquer perigo para o bem jurídico. Numa análise crítica a essa tendência, Winfried Hassemer [15] registra que o injusto penal não é a causa provável de um dano, mas uma atividade que o legislador criminalizou.

Além disso, se o objetivo da norma é proteger a saúde pública, não há como incriminar o comportamento de guardar drogas para consumo próprio [16] (espécie de ato preparatório de autolesão) e deixar de incriminar a autolesão efetiva, ou mesmo, a autoexposição a perigo de lesão. Aqui, são flagrantes as contradições valorativas a partir daquilo que Wolfgang Frisch [17] chama de mandato de consistência, pois o legislador deixa, sem fundamento, de reconhecer certo princípio limitador da pena por ele aceito noutro setor.

O artigo 260, § 1º, do Código Penal [18] prevê penas entre quatro a 12 anos de reclusão para quem causa desastre ferroviário (crime de lesão contra a segurança do transporte e de outros serviços públicos), pena cominada menor do que aquela prevista para o sujeito que “guarda” ou “leva consigo” droga (crime de perigo à saúde), conforme se verificou.

A lesão é uma realidade; o perigo, uma possibilidade. Então, não há justificativa satisfatória para se ter como legítimas as incriminações de delitos de perigo abstrato com penas mais elevadas se comparadas aos crimes de lesão, mormente, quando o bem jurídico afetado no crime de lesão possui uma relação direta com o bem que se julga proteger com a norma do delito de perigo.

Ou seja, se a coerência é pretensão interna de um sistema, notadamente está longe de ser o caso do sistema de crimes e penas que declaram proteger a saúde no Brasil. Há quase 20 anos, Juarez Tavares [19] já diagnosticava a urgência de uma profunda reforma nessas cominações, não para aumentá-las, mas para limitar o arbítrio do legislador em fixar limites de penas em atenção ao dano social que as respectivas condutas acarretam.

Por fim, a qualidade (prisão simples, detenção ou reclusão) e a quantidade (tamanho) da pena cominada ao tipo (no âmbito abstrato) deve estar diretamente alinhado ao bem jurídico [20]. Se se admite que há controle penal da saúde e a pena é um dos instrumentos de prevenção, parece bastante natural que essa pena seja proporcional a potencialidade de lesão ao bem jurídico que a conduta seria capaz de provocar. Esse é um critério a partir do qual não se pode afastar o legislador. No Brasil, porém, ou não há critérios, ou há critérios divergentes para fatos iguais ou, finalmente, critérios mais rigorosos para fatos de menor e de nenhuma gravidade.

 é professor do programa de pós-graduação strito sensu em Ciência Jurídica da Universidade do Vale do Itajaí (mestrado e doutorado) e doutor em Ciência Jurídica (Univali) e em Direito (Universidade de Alicante, Espanha).