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Opinião: Adiamento da LGPD por MP traz insegurança jurídica

Em um país onde a atuação de um poder sobre as competências constitucionais do outro se torna recorrente, a Medida Provisória n°. 959, de 29 de abril de 2020, de forma inesperada, adiou a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD (Lei n°. 13.709/2018) para 03 de maio de 2021.

Ora, como o tema já vinha sendo devidamente tratado pelo Projeto de Lei n°. 1.179/2020 em trâmite na Câmara dos Deputados e já aprovado pelo Senado Federal, era de se esperar que referida norma seguisse seu curso normal. Ou seja, fosse apreciada pela Câmara dos Deputados e, uma vez aprovada, encaminhada para a sanção ou veto presidencial.

Mas, fomos todos surpreendidos com a edição do ato do poder executivo que, sem considerar a expectativa gerada e já incorporada pelo mercado, passou uma borracha no processo legislativo.

Afora a questão procedimental, nos termos do artigo 62 da Constituição Federal, as medidas provisórias se justificam para o tratamento de matérias de relevância e urgência. Não nos parece que um tema que verse sobre a data de vigência de uma lei, em estágio avançado de discussão no Congresso Nacional, estando aprovado pelo Senado Federal, apresente a relevância e a urgência constitucionalmente exigidas para uma medida provisória.  

É bem verdade, que a MP 959 trata de outro tema (operacionalização do Benefício Emergencial de Preservação do Emprego), que, diante da crise sanitária, apresenta-se como relevante e urgente, mas não a postergação da entrada em vigor da LGPD.

Além disso, ressalta-se a insegurança jurídica provocada por tal ato. Uma medida provisória tem vigência de 60 dias, podendo ser prorrogada uma vez por igual período. Tem, portanto, validade de até 120 dias. Vencido esse prazo, sem aprovação pelo Congresso Nacional, ela perde eficácia.

Pois bem, no último dia 20 de abril de 2020, enfrentamos a edição da Medida Provisória n. 955/2020, cujo único objetivo foi revogar a Medida Provisória n. 905/2019, que tratava do programa verde e amarelo para relações de trabalho. A revogação se deu no último dia de sua vigência, uma vez que era evidente que não seria aprovada em tempo hábil.

Nesse contexto, não há qualquer garantia institucional de que a MP n. 959/2020 será aprovada no tempo legalmente previsto. E, se não o for?

Se não o for, não se descarta a hipótese de a LGPD entrar em vigor ainda em agosto de 2020.

E, com que cenário o mercado deve atuar?  

Diante de uma situação de incerteza, o ideal é que as empresas, para além das discussões normativas, procedimentais e políticas, adotem práticas adequadas de proteção de dados pessoais como parte de sua estratégia de negócios. Desta forma, mitigam não só os riscos de não conformidade, mas também a responsabilidade em situações vazamento ou tratamento indevido das informações. Lembrando que, já são representativas as decisões judiciais que protegem a pessoa titular dos dados.

Acrescentando que, empresas com operações no exterior, seja por suas matrizes, subsidiárias ou mesmo na condição de fornecedoras ou clientes em cadeias globais, podem estar sujeitas as regras de proteção de dados de outros países, como a GDPR (Regulamento Geral de Proteção de Dados da União Europeia), e, portanto, devem ter um nível de proteção adequado como condição de manutenção desses negócios.

Enfim, que a proteção de dados não fique à mercê da determinação de uma data, mas sim que as empresas reconheçam sua relevância na condução de suas atividades e, então, consolidem-na como parte da cultura empresarial de um país que quer crescer de forma robusta, responsável e sustentável!

 é sócia da Advocacia Correa de Castro e Associados (ACC), mestre em International Business Transactions and Comparative Law pela University of San Francisco (EUA) e pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atua há mais de 20 anos na área de estruturação de negócios, em projetos de Investimento Direto Estrangeiro e fomento à inovação.

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Erika Oliveira: Efeitos da Covid-19 nas relações imobiliárias

A indústria da construção civil é claramente um termômetro da economia brasileira e mundial, sendo uma das maiores geradoras de empregos do país, com o número surpreendente de mais de 70 mil vagas criadas no ano passado no setor, correspondendo a 11% [1] do total de empregos surgidos no país em 2019.

No Brasil, a construção civil iniciou o ano de 2020 em claro ritmo de bull market, após disparar mais de 100% [2] na Bolsa e ter crescimento de 1,6% no ano de 2019, sendo a maior alta do Ibovespa no setor desde 2013 [3].

A reviravolta, no entanto, foi verificada em março de 2020 com o avanço exponencial da Covid-19 [4], o que, de forma inesperada, obrigou os governos a implementarem medidas duras e sem precedentes para a contenção da propagação do vírus, o que, por consequência, ocasionou a abrupta interrupção desse movimento de crescimento e reestruturação da construção civil.

Com a interrupção das obras, férias coletivas, escassez de material, insumos e mão-de-obra e, sobretudo, em razão da piora da percepção dos empresários acerca das expectativas para os próximos trimestres e a insegurança dos consumidores para aquisição de novos imóveis ou mesmo a manutenção de contratos preexistentes, já houve perdas significativas para o setor [5].

A projeção é de que os impactos sejam ainda maiores a médio e longo prazo, em razão dos mesmos motivos listados, o que acarretará, certamente, no atraso na entrega das chaves dos imóveis adquiridos na planta e o aumento da inadimplência.

É possível dizer que, além de paciência e trabalho árduo, deverá haver uma compreensão recíproca, ou seja, de todos aqueles que atuam nas relações contratuais, para minimizar os impactos da situação vivida.

É esperado que em razão da fragilidade da economia e dos eventuais atrasos na entrega dos imóveis, o número de ações ajuizadas aumente significativamente, seja com o objetivo de se pleitear a rescisão contratual, seja com o objetivo de obter indenização material.

Considerando especificamente o cenário de atraso na entrega dos imóveis, que comprovadamente se deram em decorrência da Covid-19, é possível sustentar a ocorrência de caso fortuito ou de força maior, previsto no artigo 393, do Código Civil [6], que preceitua que o devedor não responde pelos prejuízos resultantes do caso fortuito ou força maior se expressamente não se houver por eles responsabilizado.

Em situações menos complexas, os institutos do caso fortuito e da força maior são de difícil verificação prática e aplicação pelo Judiciário, já que vulgarmente utilizados por empresas do setor para justificar atrasos que poderiam de fato ser evitados.

No entanto, em situação extrema como a pandemia causada pela Covid-19, é possível evocar o caso fortuito e força maior sem grandes dificuldades, já que as construtoras e incorporadoras imobiliárias, por certo, não deram causa aos problemas enfrentados e tampouco poderiam evitá-los, sendo estes os fatores da excludente do nexo de causalidade em relação a eventuais prejuízos suportados pelos consumidores.

Inclusive, o Código Civil, em seu artigo 625, inciso I [7], prevê a possibilidade de suspensão da obra em razão do motivo de força maior, reforçando a ideia de impossibilidade de responsabilização do empreiteiro e da incorporada em razão de atrasos a que não deram causa e que não poderiam ser por eles evitados.

Esclarecida a possibilidade das construtoras e incorporadoras evocarem o caso fortuito e de força maior para justificar o atraso na entrega do imóvel, surge o questionamento acerca do direito do consumidor de receber multas e penalidades relacionadas ao referido atraso.

Nesse prisma, embora seja pacífico o entendimento da validade da cláusula prevista na maioria dos compromissos de venda e compra que possibilita o atraso na entrega das obras por 180 dias, espera-se do Poder Judiciário uma maior flexibilização desse prazo, podendo ser prorrogado em razão da pandemia, sem a aplicação da aludida cláusula penal.

Um cenário ainda mais sensível e alarmante para o setor é aquele em que o consumidor, alegando impossibilidade ou desinteresse na manutenção do contrato, pugna pela rescisão do instrumento, com a aplicação de multa compensatória e a restituição dos valores pagos.

Não é demais relembrar que toda a crise enfrentada nos últimos anos no setor imobiliário se deve justamente aos problemas desencadeados pela desistência voluntária por parte dos adquirentes, que não refletem apenas em seu direito individual, mas colocam em xeque a viabilidade do empreendimento como um todo e comprometem drasticamente a subsistência da atividade do incorporador, correndo o risco, entre tantos outros, de dispender altíssimos valores com os distratos, além de suportar os prejuízos decorrentes do cancelamento do empreendimento.

Nesse contexto, levando-se em consideração que o setor da construção civil é responsável por gerar grande parte dos empregos formais no Brasil e por aquecer a economia, conforme tratado no início deste artigo, temos que o problema a ser enfrentado pelas construtoras e pelo Judiciário ao tratar das ações de rescisão contratual é delicado e exige atenção do ponto de vista macro.

Inobstante a questão afeta à economia de modo geral, por certo o promitente comprador que não estiver disposto a suportar o atraso na entrega da obra ou não tiver condições de manutenção do contrato não poderá ser impedido de prosseguir com a rescisão do instrumento, porém, seguirá como rescisão imotivada, devendo suportar as penalidades previstas no contrato e na Lei n° 13.786/2018 (Lei do Distrato), que prevê multa de 25% para empreendimentos sem patrimônio de afetação ou de 50% para empreendimentos com patrimônio de afetação.

Em contrapartida, é inevitável que o Judiciário atente para aqueles casos em que o consumidor demonstrar de forma cabal e nos termos dos artigos 478, 479 e 480 do Código Civil [8], que em razão dos efeitos da Covid-19 na sua capacidade financeira o contrato se tornou excessivamente oneroso, hipótese em que poderá se eximir das penalidades previstas na lei e, em contrapartida, pugnar pela restituição integral dos valores pagos, devidamente atualizados.

Os dois cenários apresentados são sensíveis e certamente impactarão de forma drástica a economia brasileira, seja do ponto de vista do consumidor, seja do ponto de vista do incorporador, existindo justificativas suficientes para defesa de um ou do outro lado.

Justamente em razão do problema generalizado que apresentará desafios para todos os participantes da relação contratual e, principalmente, para a economia de modo geral, o caminho recomendável e saudável para a solução do conflito que certamente existirá, de fato não é a judicialização da questão ou a rescisão do contrato pura e simples, mas a intensificação das negociações entre contratante e contratado, por vezes intermediada por advogados e conciliadores, com concessões recíprocas e revisitação de cláusulas contratuais, caso seja necessário.

De tudo o que se espera para o correto enfrentamento dos danos causados pela Covid-19 no mercado imobiliário é que do lado da incorporadora se atente ao dever de informação, para que seja oportunizado ao consumidor, mesmo diante do conhecido cenário de crise de saúde pública e econômica, com pleno conhecimento do status da obra, da forma que os efeitos da pandemia afetará seu contrato e, principalmente, todas as medidas que o Incorporador está adotando para minimizar estes impactos.

Do lado do consumidor, espera-se, dentro do possível, um esforço acentuado e compreensão em relação aos impactos da crise no seu contrato, devendo priorizar a manutenção da relação contratual, ainda que para isso seja necessária a renegociação de valores, prazos para pagamento e revisitação de cláusulas contratuais em geral.

Por fim, sabendo que inexistem precedentes jurídicos e econômicos da situação atualmente vivida no Brasil e no mundo, o que se espera é um esforço mútuo para que sejam mantidos os compromissos assumidos, dentro dos princípios da transparência, boa-fé, proporcionalidade e razoabilidade, viabilizando, assim, a retomada do crescimento do mercado imobiliário brasileiro.

Erika Raissa Loiola de Oliveira é advogada, sócia do escritório Lee, Brock e Camargo Advogados e pós-graduada em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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Antonio Nóbrega: Integridade em tempos de Covid-19

A inesperada pandemia do novo coronavírus apresenta-se como o desafio de uma geração. E a gravidade com que a crise se irradia por todos os continentes evidencia o seu potencial para impactar negativamente as políticas sociais e de saúde da população, além de também alcançar os mais diversos segmentos empresariais e impor severas restrições à realização de operações comerciais transnacionais. O Estado é chamado ao campo de luta, na urgência e imprevisibilidade das consequências deste cenário. E a resposta natural a essa indesejada conjuntura passa pela adoção de vigorosas medidas carimbadas pelo ineditismo, em suas mais variadas vertentes de atuação e em todos os níveis da Federação.

Além do incremento do número de novas demandas que chegam aos tribunais e requerem uma prestação jurisdicional célere e eficiente, a produção normativa, em âmbito legal e infralegal, igualmente se intensifica e cria ambiente jurídico adequado para que a função executiva do Estado possa adotar medidas de contenção da pandemia. Tudo somado, inaugura-se um novo conjunto de regras que trazem mudanças em arquiteturas regulatórias, mitigam exigências em procedimentos licitatórios e permitem uma atuação estatal mais ampla e incisiva do poder público diante de determinados direitos individuais.

E é assim que a incorporação de leis, decretos, resoluções e outros atos normativos ao nosso já extenso arcabouço jurídico, em âmbito nacional, estadual, distrital e municipal, passa a representar um impostergável e imenso desafio para gestores públicos e operadores do direito. Com efeito, a falta de tempo hábil para reflexão do alcance dessas novas regras e princípios, bem como a impossibilidade da preparação de estruturas internas e fluxos de trabalho para atender a este inédito conjunto normativo, desponta como um ponto fulcral, merecedor de toda atenção neste período de crise.

Contudo, é imperioso que se registre, com a ênfase necessária, que o princípio da legalidade se mantém e se reafirma como pedra angular do sistema democrático vigente e tem como um de seus fundamentais objetivos delinear limites à atuação da administração pública, de modo a coibir abusos e desmandos praticados por autoridades, nas mais variadas esferas de poder. E, em nome da legalidade, fica mantida e intocada a exigência da mais estrita e criteriosa vedação a qualquer tipo de atropelo oportunístico no campo normativo e regulamentar.

Ou seja, não obstante a manifesta urgência de iniciativas voltadas ao enfrentamento e atenuação dos efeitos da pandemia, é certo que a observância da arquitetura normativa vigente é mantida como requisito basilar, que emana do nosso Estado Democrático de Direito, harmonizado com a garantia constitucional dos direitos individuais. 

A Lei nº 13.979/20 e, em sua esteira, a sequência de medidas provisórias e decretos editados desde o início da pandemia, assim como todo o conjunto de regras emanadas de outros entes federativos, constitui justamente essa indispensável condição para que a administração pública possa implementar as medidas excepcionais exigidas neste momento.

Em consequência, cabe destacar, por exemplo, e de modo pontual, que além da redução das exigências para a celebração de contratos públicos, este novo e inédito conjunto de regras também dispõe sobre requisições administrativas de bens e serviços, limitações, de dia e horário, para o exercício de atividades econômicas, procedimentos para doações, restrição para a circulação de pessoas, obrigatoriedade da utilização de equipamentos de proteção (por exemplo, máscaras) em estabelecimentos comerciais dentre outros temas. É natural que tal panorama resulte em maior interação entre os setores público e privado ainda que, em algumas hipóteses, o primeiro atue somente como ente fiscalizador do cumprimento de certas obrigações.

Nesse contexto normativo, é evidente e previsível que o Estado venha a ter maior presença no cotidiano dos cidadãos, e que o exercício de suas funções também se manifeste com mais rigor e visibilidade na prática de atividades empresariais e em todo o ambiente de negócios. E a mobilização de elevados valores alocados em despesas emergenciais para atender ao estado de calamidade pública, tanto quanto a eventual falta de clareza e uniformidade para a aplicação de certas normas, podem criar um cenário que favoreça o surgimento de falhas de execução ou até mesmo a deliberada prática de desvios.

Os diversos elementos que compõem este singular período de crise são revestidos das condições necessárias para que a estrutura de incentivos para o cometimento de atos de corrupção seja alterada, com a criação de possíveis estímulos, indesejados mas assim possibilitados, para que agentes mal intencionados envolvam-se neste tipo de ilícito e obtenham ganhos indevidos em prejuízo de toda a coletividade.

A oportunidade gerada pela flexibilização de regras, a pressão para que o patamar de negócios e a lucratividade das empresas se mantenham em tempos de recessão e a racionalização da fraude, de modo a tornar o comportamento ilícito algo socialmente aceito e justificável, são alguns dos elementos que, presentes em determinadas conjunturas históricas, podem resultar em uma verdadeira tempestade perfeita para a facilitação da prática de atos de corrupção.

E é neste ambiente em que a eficiente implementação das políticas públicas de saúde apresenta-se como providência inarredável para que se possa lograr algum êxito na difícil batalha contra o novo coronavírus , que a busca por ferramentas para prevenir, detectar e remediar a existência de atos ilícitos torna-se ainda mais essencial.

Relevante anotar que o cometimento de desvios e fraudes é um fenômeno de indesejada eventualidade, com aptidão para impedir que as medidas sociais almejadas pelo Estado alcancem seus reais destinatários e o êxito das políticas de contenção à pandemia. Da mesma forma, é igualmente certo que a prática de irregularidades no ambiente empresarial e a obtenção de ganhos indevidos neste período, ainda que resultem em vantagens de curto prazo, podem acabar por comprometer, de modo irreversível, a reputação da empresa e gerar um passivo de corrupção processos sancionadores, multas, necessidade de ressarcimento ao erário, etc. que levará muitos anos para ser superado. Crime e castigo no horizonte do provável.

É diante deste quadro que ganha destaque a gestão dos programas de integridade corporativa. Pois é sabido e comprovado que as boas políticas de compliance e governança têm reconhecido potencial para mitigar riscos de corrupção em cenários de incerteza e crise, em que há mudanças profundas e de largo espectro em estruturas regulatórias e uma atuação mais intensa do Estado, em paralelo de enfrentamento à pressão, no lado empresarial, para o alcance de resultados positivos.

Oportuno mencionar que o debate relacionado à relevância da implementação e constante aperfeiçoamento dos programas de compliance ganhou corpo somente em período recente. A deflagração da operação Lava Jato, a maior exposição dos efeitos adversos para as empresas envolvidas em esquemas criminosos e o advento de um conjunto de leis que, além de dar mais transparência à gestão pública, permitiu uma atuação mais robusta por parte dos diversos órgãos de controle, são alguns dos fenômenos que impulsionaram a cultura da integridade empresarial.

Assim, é forçoso reconhecer que a exigência da adoção de práticas e ferramentas voltadas à prevenção e detecção de ilícitos não é exatamente uma novidade em nosso país.  De fato, a obrigatoriedade da criação de estruturas de controle para inibir a prática de irregularidades, principalmente em ambiente regulados tais como o setor financeiro ou o de seguros , já existia em corpo de diversos diplomas legais e normas expedidas por autoridades administrativas desses segmentos. Como exemplo, podemos citar as próprias regras para o combate à lavagem de dinheiro, previstas na Lei nº 9.613/98 e ampliadas pela Lei nº 12.683/12, que alcançam uma quantidade significativa de atores privados, para os quais é compulsória a implementação de mecanismos de prevenção.

Todavia, foi somente em período recente de nossa história que a discussão tornou-se mais ampla, sendo elevada a um patamar diferenciado. No campo jurídico, como engrenagens propulsoras desse movimento, é válido fazer alusão, entre outros, a alguns diplomas legais: Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), Lei de Conflito de Interesses (Lei nº 12.813/13), Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13), Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) e, notadamente, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13). Pode-se afirmar, com elevado grau de convicção, que tal arcabouço legal permitiu o avanço das políticas de combate à corrupção e gerou inegáveis estímulos para a criação de medidas de prevenção e remediação de ilícitos.

Especificamente em relação à Lei Anticorrupção, é apropriado consignar que a inauguração de um novo modelo de responsabilização cível e administrativa para pessoas jurídicas envolvidas em ilícitos contra a Administração Pública nacional e estrangeira, com a aplicação de duras sanções em um regime de responsabilização objetiva, e a previsão da possibilidade de acordos de leniência para atos de corrupção instrumento que até então tinha seu escopo limitado a delitos concorrenciais, nos termos da Lei nº 12.529/11 despertaram o maior interesse empresarial para a adoção da cultura de integridade corporativa. Vale ressaltar, inclusive, que, não obstante a legislação anticorrupção prever que a existência e aplicação desses mecanismos têm aptidão somente para mitigar a aplicação das penas estatuídas na norma, é evidente o potencial da lei para fomentar a ética e transparência em ambientes negociais.

Frise-se, ainda, que, ao regulamentar a Lei nº 12.846/13 em âmbito federal, o Decreto nº 8.420/15 elenca os instrumentos que devem estar presentes nesses programas de compliance empresarial (artigo 42) e que deverão ser considerados pelas autoridades, para efeito de redução de uma sanção ou mesmo para acompanhamento de compromissos assumidos em acordos de leniência. A título de exemplo, é citada a política de integridade voltada para empregados e colaboradores da empresa, a análise dos riscos relacionados à prática de ilícitos, a necessidade de registros contábeis completos e precisos e a criação de canais para o recebimento de denúncias.

Na esteira da regulamentação federal do tema, alguns estados optaram por exigir que os programas de integridade, em moldes muito semelhantes àqueles delineados no Decreto Federal nº 8.420/15, sejam obrigatoriamente implementados por pessoas jurídicas que celebram contratos com a respectiva administração pública. Ou seja, apesar de a Lei nº 12.846/13 não exigir a presença dessas ferramentas de compliance no meio empresarial, sua existência é requisito para que empresas possam relacionar-se com órgãos e entidades de certos entes da federação, tais como os estados do Rio de Janeiro (Lei nº 7.753/17), do Rio Grande do Sul (Lei nº 15.228/18) e do Amazonas (Lei nº 4.730/18), além do Distrito Federal (Lei nº 6.112/18).

Esse conjunto de normas, fortalecido pelos já mencionados fenômenos circunstanciais que permitiram a evolução do enfrentamento à corrupção em nosso país (operações policiais de grande alcance, elevada percepção dos custos da corrupção, danos à imagem de empresas envolvidas em escândalos, etc.), resultou em conjuntura favorável para que a adoção de mecanismos de integridade passasse a ocupar posição de relevo na pauta das políticas empresariais.

Entretanto, a chegada da crise da Covid-19 e de todos seus negativos desdobramentos sociais e econômicos podem colocar em risco uma parte das significativas conquistas até então obtidas. As dificuldades orçamentárias para a manutenção de políticas eficientes e contínuas de integridade corporativa, bem como a eventual presença de elementos de estímulo para a prática de irregularidades, pode resultar em indesejado retrocesso no tocante à criação de ambiente negocial probo e transparente, com as já citadas consequências reputacionais e financeiras que poderão se projetar, de modo muitas vezes imprevisível, por extensos períodos.

Por outro lado, esse cenário de adversidades igualmente tem potencial para consolidar o papel dos programas de compliance empresarial como um eficiente meio de prevenção. Com efeito, é justamente em conjunturas marcadas pela crise que o real alcance dessas medidas poderá ser verificado e a percepção de seus benefícios torna-se mais visível para a empresa, seus stakeholders e pela própria coletividade. Cabe ao gestor das políticas de integridade, a adaptação dessas ferramentas e uma nova priorização dos instrumentos de prevenção, detecção e remediação de ilícitos, com fundamento em matriz de riscos que considere a pandemia e a disseminação de seus efeitos nos negócios da pessoa jurídica.

Os programas de compliance empresarial podem ser justamente a arma necessária para impedir que os elementos excepcionais decorrentes da crise possam vir a incentivar o cometimento de desvios em prejuízo a interesses sociais. Os avanços no campo ético, já claramente identificados em determinados segmentos corporativos, e o incremento da percepção social dos custos da corrupção nos últimos anos têm potencial para frear o retrocesso na busca por mais probidade e transparência na relação entre interesses públicos e privados.

Na realidade, os próximos meses vão ser vividos como verdadeiro teste para a consolidação da cultura da integridade empresarial em nosso país. Portanto, a manutenção do irrestrito e inequívoco apoio da alta administração às políticas de compliance e a continuidade do cumprimento da ética nos negócios são requisitos essenciais nesse ambiente.

Finalmente, vale lembrar que a discussão em torno das boas políticas de integridade também alcançou o setor público. Dessa forma, foram várias as ações voltadas à criação de ambiente permeado pelos princípios da impessoalidade e moralidade em órgãos e entidades da União e em outros níveis de governo. Como exemplo, podemos citar o Decreto nº 9.203/17 em âmbito federal, o Decreto nº 46.745/19 no estado do Rio de Janeiro e o Decreto nº 47.185/17 no estado de Minas Gerais. Esse sistema de integridade dialoga e harmoniza-se com as medidas de compliance empresariais já ventiladas e representa mais um instrumento com aptidão para garantir a apropriada observância de regras de conformidade na pandemia.

As reflexões consubstanciadas neste artigo buscam despertar a atenção para mais um dos efeitos adversos da crise da Covid-19, que já se coloca como grave fenômeno de comoção social no Brasil e no mundo. A possibilidade da ocorrência de ilícitos e fraudes no período de crise constitui inegável e vigoroso elemento de risco para a consolidação de progressos conquistados na cultura da ética corporativa. Caberá às próprias políticas de integridade pública e de compliance empresarial, e a todos que têm o comprometimento com a manutenção e execução dos seus respectivos instrumentos, a superação destes obstáculos, de modo a permitir que o caminho para a transparência, ética e probidade continue a ser percorrido.

 é professor de Compliance no IBMEC, membro do Conselho Consultivo da Comissão de Responsabilidade Corporativa e Anticorrupção da Câmara de Comércio Internacional e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.