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O Estado de Direito em modo de operação de anormalidade

A partir da constatação de que a pandemia da Covid-19 encontra sua natureza jurídica no conceito de desastre, como tivemos oportunidade de demonstrar, seu sentido atua como um elemento jurídico comum capaz de promover a integração do Direito dos Desastres com as demais áreas jurídicas. Neste processo de integração, desencadeado pela configuração de um evento social como desastre, o Direito dos Desastres irradia aos demais ramos o cumprimento conjunto de diversas funções para a retomada da estabilidade. Para tanto, as demais áreas do Direito são “ativadas” para cumprir funções determinadas pelo Estado de Direito em modo de operação de anormalidade. Para tanto, a juridicidade neste “modo operacional” ganha a denominação de Direito dos Desastres, sendo este um ramo jurídico estruturado para o resgate da estabilidade social perdida por uma determinada comunidade atingida por um evento apto a retirar substancial ou parcialmente a capacidade de resposta de um ente público (União, Estado e Município).

Aos estados e municípios cabe a decretação de “Situação de Emergência” ou “Estado de Calamidade”, quando há a perda da capacidade de resposta é substancial ou parcial, respectivamente. Já para a União há a possibilidade desta fazer uso, excepcional, dos regimes constitucionais inerentes ao “Estado de Defesa” ou ao “Estado de Sítio.” Cumpre esclarecer que, apesar das diferenças significativas entre os requisitos e configurações destes institutos constitucionais com aqueles afetos aos estados e municípios, há uma singela identidade. As modulações do Estado Constitucional de Exceção também são estruturadas a partir da distinção entre a perda de estabilidade substancial e maior gravidade, para casos afetos ao “Estado de Sítio”, ou parcial e menor intensidade, no “Estado de Defesa.”

No caso da pandemia da Covid-19, o recurso ao Estado de Defesa, em razão da “calamidade de grandes proporções” decorrente da emergência de saúde pública, é uma medida extrema inerente ao próprio Estado Democrático de Direito para retomar a estabilidade, quando comprometida. Constitucionalmente, o Estado de Defesa se trata de um Estado de Emergência, conformado constitucionalmente em um “regime específico para situações de crise, compatível com os princípios estruturantes do Estado de direito democrático.” Não se trata jamais de um Estado de Não-Direito, muito pelo contrário. Se trata de um Estado de Direito em modo operacional em anormalidade, como acima dissemos. As restrições aos direitos fundamentais decorrentes desta conjectura constitucional se justificam apenas para a “salvaguarda de outros bens constitucionalmente protegidos” e que, no caso, se trata da saúde pública nacional. É exatamente aqui que se deve ter uma atenção redobrada para os perigos do autoritarismo, decorrentes de Estados de Exceção. Por este motivo, o Estado de Defesa apenas pode ser legítimo quando a própria lei fundamental fixar seus pressupostos, competências, instrumentos, procedimentos e consequências jurídicas, compatibilizando a legalidade extraordinária ao próprio Estado de Direito. Frise-se, o Estado de Exceção é uma previsão constitucional e, portanto, é face extrema do Estado de Direito para recuperar sua estabilidade e “voltar” a uma nova normalidade.

Diversas outras áreas do Direito também apresentam consequências imediatas à superveniência de um evento desta envergadura. Por de trás das diversas consequências imediatas trazidas pela pandemia da Covid-19 ao cotidiano dos mais diversos ramos jurídicos, há um processo de “ativação” de conceitos, padrões de decisão e racionalidades determinada pelo próprio Direito dos Desastres. O escopo é sistemicamente integrar a pluralidade de áreas do Direito para a retomada da estabilidade social e a, assim chamada, “colonização do caos.” Assim, o jurídico atua para a estabilização e não para o seu incremento, fragmentariedade, e aumento da conflituosidade.

A primeira função irradiada pelo Direito dos Desastres consiste em integrar todos os ramos para a adoção de decisões orientadas para a manutenção das operações jurídicas dentro de uma racionalidade própria do Direito, isto é, que cada ramo opere de acordo com os padrões de regras, procedimentos, rotinas e protocolos, sem a adoção de respostas extravagantes (tais como o apelo à moral, religião, crenças etc.) Para tanto, deverá haver uma constante luta contra a ausência de Direito, pois nos desastres há a necessidade de que seja assegurada uma rápida e eficiente atuação contra possíveis violações jurídicas nas comunidades atingidas por eventos graves. Na mesma direção, cabe aos diversos ramos do Direito, integrados no sentido jurídico como da pandemia como desastre, a garantir o devido socorro e atendimento humanitário às vítimas. Além disso, em cenários de riscos potencialmente catastróficos, mesmo que diante de incertezas significativas, as evidências científicas servem como parâmetros de convencimento, servindo como um importante limitador do âmbito da discricionariedade técnica. Contudo, os ensinamentos do Direito dos Desastres aos demais ramos para operarem em modo de anormalidade também chamam a atenção para o cuidado com o uso indevido da pandemia (possibilidade de contratações sem licitação, atos de discriminatórios a grupos já vulneráveis, autoritarismo institucional, apenas para citar alguns). Finalmente, o fio condutor a permear os mais diversos ramos jurídicos para lidar com situações de desastres é marcado por duas categorias centrais ao Direito dos Desastres, (i) o risco e (ii) a vulnerabilidade.

Portanto, a partir da configuração de um evento como desastre todas as demais áreas entram em uma imediata interação com o Direito dos Desastres, em razão da própria declaração de um Estado de Defesa Constitucional, justificado por “calamidades de grandes proporções na natureza” (art. 136 CF). Este processo se dá de forma que o Direito dos Desastres possa, a partir de seus conceitos, normas e princípios, fomentar instrumentos para estabilização das instabilidades inerentes a cada esfera jurídica (relações de consumo, matéria processual, questões do ordem constitucional, relações contratuais empresarias ou civis, relações trabalhistas, cobrança de tributos, administração de tribunais e assim por diante). O Direito dos Desastres exerce tais orientações sem uma relação excludente, mas sim integrativa, a partir da configuração do evento como desastre (pelas declarações de anormalidade). Esta dinâmica encontra-se representada na imagem abaixo.

Agora é hora de avançar a presente análise sobre a compreensão de quais são estes padrões de decisão (standards) que devem orientar o Direito, como um todo, em um momento de Emergência Constitucional. Sem exclusão dos demais ramos, o Direito dos Desastres presta uma orientação de um ramo centrado na colonização do caos, a partir e pelo Direito. A configuração de um evento como desastre, geralmente ocasiona uma hiperprodução de atos normativos e conflitos judiciais nas mais diversas áreas do Direito, porém, tais devem ser integrados por uma racionalidade comum, tendo duas consequências: i) de um lado, uma função jurídica de, a partir da assimilação da anormalidade, encaminhar as rotinas jurídicas e a própria Sociedade na direção de uma nova normalidade, operacionalmente estável; ii) de outro, cada ramo do Direito acaba assimilando e produzindo suas próprias reações específicas, seja no Direito Constitucional, no Direito Privado, Direito Processual Civil, Direito Ambiental, Direito do Trabalho, Direito Administrativo, Direito Tributário e assim por diante.

Portanto, todos estes ramos passarão a (i) ter que exercer sua contribuição para o ciclo de gestão circular do risco em cada uma das fases de um desastre (prevenção e mitigação; resposta emergencial; compensação; reconstrução), a fim de colaborar globalmente com a necessidade de mitigação dos impactos; (ii) enfrentar a necessidade de fornecer estabilidade à situações caóticas, trazendo seus respectivos âmbitos de atuação de um modelo operacional em colapso, para uma nova normalidade; (iii) ter que fornecer absoluta prioridade e adotar como premissa orientadora das decisões jurídicas a função do Direito para redução das vulnerabilidades sociais, físicas ou tecnológicas (informacionais); (iv) diante das incertezas postas em jogo, a maior sensibilidade do Direito às dimensões desta para graduações proporcionais nas medidas preventivas ou precaucionais emergenciais a serem impostas, com parcimônia e equilíbrio; (v) por se tratar de riscos e impactos de grande magnitude, o Direito deve orientar suas decisões a partir de informações cientificas, dotadas de credibilidade, mesmo que estas estejam em estágios iniciais de testes ou pesquisas, de incertezas ou mesmo ante a precariedade de dados.

Esta coluna é produzida com a colaboração dos programas de pós-graduação em Direito do Brasil e destina-se a publicar materiais de divulgação de pesquisas ou estudos relacionados à pandemia do Coronavírus (Covid-19).


Conforme texto escrito para a ConJur na coluna “Direito em Pós-Graduação”, publicado no dia 21.04.2020. https://www.conjur.com.br/2020-abr-21/direito-pos-graduacao-natureza-juridica-pandemia-covid-19-desastre-biologico

Art. 2.º, III, do Dec. 7.257/10.

Art. 2.º, IV, do Dec. 7.257/10.

Art. 136 CF.

Art. 137 CF.

CANOTILHO, José Joaquim. Direito Constitucional e Teoria da Constitucional. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003. p. 1.099.

Idem, ibidem. p. 1.104.

 é pós-doutor em Direito Ambiental e dos Desastres, University of California, Berkeley, EUA (com bolsa CAPES); doutor e mestre em Direito Unisinos; professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS, nível Mestrado e Doutorado.

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Antonio Nóbrega: Integridade em tempos de Covid-19

A inesperada pandemia do novo coronavírus apresenta-se como o desafio de uma geração. E a gravidade com que a crise se irradia por todos os continentes evidencia o seu potencial para impactar negativamente as políticas sociais e de saúde da população, além de também alcançar os mais diversos segmentos empresariais e impor severas restrições à realização de operações comerciais transnacionais. O Estado é chamado ao campo de luta, na urgência e imprevisibilidade das consequências deste cenário. E a resposta natural a essa indesejada conjuntura passa pela adoção de vigorosas medidas carimbadas pelo ineditismo, em suas mais variadas vertentes de atuação e em todos os níveis da Federação.

Além do incremento do número de novas demandas que chegam aos tribunais e requerem uma prestação jurisdicional célere e eficiente, a produção normativa, em âmbito legal e infralegal, igualmente se intensifica e cria ambiente jurídico adequado para que a função executiva do Estado possa adotar medidas de contenção da pandemia. Tudo somado, inaugura-se um novo conjunto de regras que trazem mudanças em arquiteturas regulatórias, mitigam exigências em procedimentos licitatórios e permitem uma atuação estatal mais ampla e incisiva do poder público diante de determinados direitos individuais.

E é assim que a incorporação de leis, decretos, resoluções e outros atos normativos ao nosso já extenso arcabouço jurídico, em âmbito nacional, estadual, distrital e municipal, passa a representar um impostergável e imenso desafio para gestores públicos e operadores do direito. Com efeito, a falta de tempo hábil para reflexão do alcance dessas novas regras e princípios, bem como a impossibilidade da preparação de estruturas internas e fluxos de trabalho para atender a este inédito conjunto normativo, desponta como um ponto fulcral, merecedor de toda atenção neste período de crise.

Contudo, é imperioso que se registre, com a ênfase necessária, que o princípio da legalidade se mantém e se reafirma como pedra angular do sistema democrático vigente e tem como um de seus fundamentais objetivos delinear limites à atuação da administração pública, de modo a coibir abusos e desmandos praticados por autoridades, nas mais variadas esferas de poder. E, em nome da legalidade, fica mantida e intocada a exigência da mais estrita e criteriosa vedação a qualquer tipo de atropelo oportunístico no campo normativo e regulamentar.

Ou seja, não obstante a manifesta urgência de iniciativas voltadas ao enfrentamento e atenuação dos efeitos da pandemia, é certo que a observância da arquitetura normativa vigente é mantida como requisito basilar, que emana do nosso Estado Democrático de Direito, harmonizado com a garantia constitucional dos direitos individuais. 

A Lei nº 13.979/20 e, em sua esteira, a sequência de medidas provisórias e decretos editados desde o início da pandemia, assim como todo o conjunto de regras emanadas de outros entes federativos, constitui justamente essa indispensável condição para que a administração pública possa implementar as medidas excepcionais exigidas neste momento.

Em consequência, cabe destacar, por exemplo, e de modo pontual, que além da redução das exigências para a celebração de contratos públicos, este novo e inédito conjunto de regras também dispõe sobre requisições administrativas de bens e serviços, limitações, de dia e horário, para o exercício de atividades econômicas, procedimentos para doações, restrição para a circulação de pessoas, obrigatoriedade da utilização de equipamentos de proteção (por exemplo, máscaras) em estabelecimentos comerciais dentre outros temas. É natural que tal panorama resulte em maior interação entre os setores público e privado ainda que, em algumas hipóteses, o primeiro atue somente como ente fiscalizador do cumprimento de certas obrigações.

Nesse contexto normativo, é evidente e previsível que o Estado venha a ter maior presença no cotidiano dos cidadãos, e que o exercício de suas funções também se manifeste com mais rigor e visibilidade na prática de atividades empresariais e em todo o ambiente de negócios. E a mobilização de elevados valores alocados em despesas emergenciais para atender ao estado de calamidade pública, tanto quanto a eventual falta de clareza e uniformidade para a aplicação de certas normas, podem criar um cenário que favoreça o surgimento de falhas de execução ou até mesmo a deliberada prática de desvios.

Os diversos elementos que compõem este singular período de crise são revestidos das condições necessárias para que a estrutura de incentivos para o cometimento de atos de corrupção seja alterada, com a criação de possíveis estímulos, indesejados mas assim possibilitados, para que agentes mal intencionados envolvam-se neste tipo de ilícito e obtenham ganhos indevidos em prejuízo de toda a coletividade.

A oportunidade gerada pela flexibilização de regras, a pressão para que o patamar de negócios e a lucratividade das empresas se mantenham em tempos de recessão e a racionalização da fraude, de modo a tornar o comportamento ilícito algo socialmente aceito e justificável, são alguns dos elementos que, presentes em determinadas conjunturas históricas, podem resultar em uma verdadeira tempestade perfeita para a facilitação da prática de atos de corrupção.

E é neste ambiente em que a eficiente implementação das políticas públicas de saúde apresenta-se como providência inarredável para que se possa lograr algum êxito na difícil batalha contra o novo coronavírus , que a busca por ferramentas para prevenir, detectar e remediar a existência de atos ilícitos torna-se ainda mais essencial.

Relevante anotar que o cometimento de desvios e fraudes é um fenômeno de indesejada eventualidade, com aptidão para impedir que as medidas sociais almejadas pelo Estado alcancem seus reais destinatários e o êxito das políticas de contenção à pandemia. Da mesma forma, é igualmente certo que a prática de irregularidades no ambiente empresarial e a obtenção de ganhos indevidos neste período, ainda que resultem em vantagens de curto prazo, podem acabar por comprometer, de modo irreversível, a reputação da empresa e gerar um passivo de corrupção processos sancionadores, multas, necessidade de ressarcimento ao erário, etc. que levará muitos anos para ser superado. Crime e castigo no horizonte do provável.

É diante deste quadro que ganha destaque a gestão dos programas de integridade corporativa. Pois é sabido e comprovado que as boas políticas de compliance e governança têm reconhecido potencial para mitigar riscos de corrupção em cenários de incerteza e crise, em que há mudanças profundas e de largo espectro em estruturas regulatórias e uma atuação mais intensa do Estado, em paralelo de enfrentamento à pressão, no lado empresarial, para o alcance de resultados positivos.

Oportuno mencionar que o debate relacionado à relevância da implementação e constante aperfeiçoamento dos programas de compliance ganhou corpo somente em período recente. A deflagração da operação Lava Jato, a maior exposição dos efeitos adversos para as empresas envolvidas em esquemas criminosos e o advento de um conjunto de leis que, além de dar mais transparência à gestão pública, permitiu uma atuação mais robusta por parte dos diversos órgãos de controle, são alguns dos fenômenos que impulsionaram a cultura da integridade empresarial.

Assim, é forçoso reconhecer que a exigência da adoção de práticas e ferramentas voltadas à prevenção e detecção de ilícitos não é exatamente uma novidade em nosso país.  De fato, a obrigatoriedade da criação de estruturas de controle para inibir a prática de irregularidades, principalmente em ambiente regulados tais como o setor financeiro ou o de seguros , já existia em corpo de diversos diplomas legais e normas expedidas por autoridades administrativas desses segmentos. Como exemplo, podemos citar as próprias regras para o combate à lavagem de dinheiro, previstas na Lei nº 9.613/98 e ampliadas pela Lei nº 12.683/12, que alcançam uma quantidade significativa de atores privados, para os quais é compulsória a implementação de mecanismos de prevenção.

Todavia, foi somente em período recente de nossa história que a discussão tornou-se mais ampla, sendo elevada a um patamar diferenciado. No campo jurídico, como engrenagens propulsoras desse movimento, é válido fazer alusão, entre outros, a alguns diplomas legais: Lei de Acesso à Informação (Lei nº 12.527/11), Lei de Conflito de Interesses (Lei nº 12.813/13), Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13), Lei das Estatais (Lei nº 13.303/16) e, notadamente, a Lei Anticorrupção (Lei nº 12.846/13). Pode-se afirmar, com elevado grau de convicção, que tal arcabouço legal permitiu o avanço das políticas de combate à corrupção e gerou inegáveis estímulos para a criação de medidas de prevenção e remediação de ilícitos.

Especificamente em relação à Lei Anticorrupção, é apropriado consignar que a inauguração de um novo modelo de responsabilização cível e administrativa para pessoas jurídicas envolvidas em ilícitos contra a Administração Pública nacional e estrangeira, com a aplicação de duras sanções em um regime de responsabilização objetiva, e a previsão da possibilidade de acordos de leniência para atos de corrupção instrumento que até então tinha seu escopo limitado a delitos concorrenciais, nos termos da Lei nº 12.529/11 despertaram o maior interesse empresarial para a adoção da cultura de integridade corporativa. Vale ressaltar, inclusive, que, não obstante a legislação anticorrupção prever que a existência e aplicação desses mecanismos têm aptidão somente para mitigar a aplicação das penas estatuídas na norma, é evidente o potencial da lei para fomentar a ética e transparência em ambientes negociais.

Frise-se, ainda, que, ao regulamentar a Lei nº 12.846/13 em âmbito federal, o Decreto nº 8.420/15 elenca os instrumentos que devem estar presentes nesses programas de compliance empresarial (artigo 42) e que deverão ser considerados pelas autoridades, para efeito de redução de uma sanção ou mesmo para acompanhamento de compromissos assumidos em acordos de leniência. A título de exemplo, é citada a política de integridade voltada para empregados e colaboradores da empresa, a análise dos riscos relacionados à prática de ilícitos, a necessidade de registros contábeis completos e precisos e a criação de canais para o recebimento de denúncias.

Na esteira da regulamentação federal do tema, alguns estados optaram por exigir que os programas de integridade, em moldes muito semelhantes àqueles delineados no Decreto Federal nº 8.420/15, sejam obrigatoriamente implementados por pessoas jurídicas que celebram contratos com a respectiva administração pública. Ou seja, apesar de a Lei nº 12.846/13 não exigir a presença dessas ferramentas de compliance no meio empresarial, sua existência é requisito para que empresas possam relacionar-se com órgãos e entidades de certos entes da federação, tais como os estados do Rio de Janeiro (Lei nº 7.753/17), do Rio Grande do Sul (Lei nº 15.228/18) e do Amazonas (Lei nº 4.730/18), além do Distrito Federal (Lei nº 6.112/18).

Esse conjunto de normas, fortalecido pelos já mencionados fenômenos circunstanciais que permitiram a evolução do enfrentamento à corrupção em nosso país (operações policiais de grande alcance, elevada percepção dos custos da corrupção, danos à imagem de empresas envolvidas em escândalos, etc.), resultou em conjuntura favorável para que a adoção de mecanismos de integridade passasse a ocupar posição de relevo na pauta das políticas empresariais.

Entretanto, a chegada da crise da Covid-19 e de todos seus negativos desdobramentos sociais e econômicos podem colocar em risco uma parte das significativas conquistas até então obtidas. As dificuldades orçamentárias para a manutenção de políticas eficientes e contínuas de integridade corporativa, bem como a eventual presença de elementos de estímulo para a prática de irregularidades, pode resultar em indesejado retrocesso no tocante à criação de ambiente negocial probo e transparente, com as já citadas consequências reputacionais e financeiras que poderão se projetar, de modo muitas vezes imprevisível, por extensos períodos.

Por outro lado, esse cenário de adversidades igualmente tem potencial para consolidar o papel dos programas de compliance empresarial como um eficiente meio de prevenção. Com efeito, é justamente em conjunturas marcadas pela crise que o real alcance dessas medidas poderá ser verificado e a percepção de seus benefícios torna-se mais visível para a empresa, seus stakeholders e pela própria coletividade. Cabe ao gestor das políticas de integridade, a adaptação dessas ferramentas e uma nova priorização dos instrumentos de prevenção, detecção e remediação de ilícitos, com fundamento em matriz de riscos que considere a pandemia e a disseminação de seus efeitos nos negócios da pessoa jurídica.

Os programas de compliance empresarial podem ser justamente a arma necessária para impedir que os elementos excepcionais decorrentes da crise possam vir a incentivar o cometimento de desvios em prejuízo a interesses sociais. Os avanços no campo ético, já claramente identificados em determinados segmentos corporativos, e o incremento da percepção social dos custos da corrupção nos últimos anos têm potencial para frear o retrocesso na busca por mais probidade e transparência na relação entre interesses públicos e privados.

Na realidade, os próximos meses vão ser vividos como verdadeiro teste para a consolidação da cultura da integridade empresarial em nosso país. Portanto, a manutenção do irrestrito e inequívoco apoio da alta administração às políticas de compliance e a continuidade do cumprimento da ética nos negócios são requisitos essenciais nesse ambiente.

Finalmente, vale lembrar que a discussão em torno das boas políticas de integridade também alcançou o setor público. Dessa forma, foram várias as ações voltadas à criação de ambiente permeado pelos princípios da impessoalidade e moralidade em órgãos e entidades da União e em outros níveis de governo. Como exemplo, podemos citar o Decreto nº 9.203/17 em âmbito federal, o Decreto nº 46.745/19 no estado do Rio de Janeiro e o Decreto nº 47.185/17 no estado de Minas Gerais. Esse sistema de integridade dialoga e harmoniza-se com as medidas de compliance empresariais já ventiladas e representa mais um instrumento com aptidão para garantir a apropriada observância de regras de conformidade na pandemia.

As reflexões consubstanciadas neste artigo buscam despertar a atenção para mais um dos efeitos adversos da crise da Covid-19, que já se coloca como grave fenômeno de comoção social no Brasil e no mundo. A possibilidade da ocorrência de ilícitos e fraudes no período de crise constitui inegável e vigoroso elemento de risco para a consolidação de progressos conquistados na cultura da ética corporativa. Caberá às próprias políticas de integridade pública e de compliance empresarial, e a todos que têm o comprometimento com a manutenção e execução dos seus respectivos instrumentos, a superação destes obstáculos, de modo a permitir que o caminho para a transparência, ética e probidade continue a ser percorrido.

 é professor de Compliance no IBMEC, membro do Conselho Consultivo da Comissão de Responsabilidade Corporativa e Anticorrupção da Câmara de Comércio Internacional e mestre em Direito pela Universidade Católica de Brasília.