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Green new deal, mudanças climáticas e a Covid-19

Mais de 40 mil pessoas perderam a vida em decorrência da Covid-19 no Brasil, de acordo com um consórcio de empresas jornalísticas, até a última quinta-feira, com uma preocupante taxa de 19 mortos a cada 100 mil habitantes, diga-se, em franca aceleração. No mesmo dia (11/06), em apenas 24 horas, 1.272 pessoas perderam à vida. Outrossim, o Brasil ocupa a terceira posição no ranking de óbitos pela Covid-19 no mundo, ficando apenas atrás dos Estados Unidos e do Reino Unido, onde a pandemia, é bom que se recorde, iniciou bem antes.[1]Em poucas horas, o Brasil vai ultrapassar o Reino Unido e, em poucas semanas, muito provavelmente, os Estados Unidos, neste mórbido ranking da incúria governamental e do descaso social.

De outro lado, dados do programa Global ForestWatch demonstram que a perda total mundial de florestas tropicais primárias no ano passado — 3,8 milhões de hectares, uma área quase do tamanho da Suíça — foi cerca de 3% maior que 2018 e a terceira maior desde 2002. O Brasil, segundo o levantamento, é o responsável por mais de um terço do desmatamento global e o líder absoluto no ranking mundial dos países desmatadores, seguido pela República Democrática do Congo, Indonésia e a nossa vizinha Bolívia.[2]

O governo brasileiro, outrossim, não pode ignorar o relatório sobre o clima da ONU, Global Warmingof 1,5 ºC, que demonstra que o mundo já superou a barreira de 1 grau Celsius de aquecimento em relação aos níveis pré-industriais, e que seres humanos e não humanos estão sofrendo os efeitos negativos das mudanças climáticas.[3]

Não existem evidências diretas de que a mudança climática esteja influenciando a disseminação da Covid-19, mas esta, no mínimo,altera a forma de relacionamento do homem com os animais não-humanos e isso é relevante para o aumento do risco de infecções.

Com o aquecimento global os animais terrestres e marinhos buscam os pólos para fugir das altas temperaturas. Este fenômeno faz com que os animais invadam outros ecossistemas como espécies invasoras, entrem em contato direto com a população de animais nativos e assim espalhem patógenos para outros hospedeiros. 

 As causas das mudanças climáticas, sim, aumentam o risco de pandemias. É o caso do desmatamento, que ocorre principalmente para fins agropecuários. Esta é a a maior causa de perda do habitat natural na atualidade, o que igualmente gera migrações dos animais e propicia o contato efetivo e potencial com outros animais não-humanos e humanos causando,também, o compartilhamento de germes.[4]

Neste cenário, existem vários aspectos positivos de uma boa governança climática relacionados à melhora da saúde humana, e a redução do risco de surgimento de doenças infecciosas certamente é um deles. Rachel Nethery, Xiauo Wu, Francesca Dominici e outros pesquisadores da Universidade de Harvard, descobriram que pessoas que moram em locais com má qualidade do ar têm maior probabilidade de morrer da Covid-19, o que pode ser agravado por outros fatores como condições médicas pré-existentes, status socioeconômico e a falta de acesso aos cuidados básicos de saúde. Essa descoberta confirma pesquisas, já nem tão novas, que demonstram que pessoas expostas a maior poluição do ar são mais suscetíveis ao agravamento de infecções respiratórias do que aquelas que respiram o ar mais limpo.[5]

Em locais onde a poluição do ar é um problema de rotina, os que mais sofrem são os sem-teto e aqueles cuja saúde já está comprometida. Dentre os sem-teto, no caso brasileiro, há um número desproporcionalmente maior de pardos e negros infectados e mortos pela Covid-19.[6] Esses indivíduos precisam de maior apoio governamental, para além das cotas,em especial em tempos de pandemia, pois possuem menor renda per capita em média do que os brancos.

Não se sabe, embora existam muitas especulações, em especial nas redes sociais, se o clima mais quente pode retardar a propagação do coronavírus. O que importa, em razão disto,é desacelerar a propagação da doença, e isso significa seguir rigorosamente as orientações, precautórias e preventivas, da Organização Mundial de Saúde, em especial, as recomendações de distanciamento social, da higienização das mãos, do correto uso de máscaras, entre outras ações, enquanto não for descoberta uma vacina ou um antirretroviral de amplo espectro eficiente contra esta doença.[7]

O aquecimento global, igualmente, criou condições mais favoráveis à propagação de algumas doenças infecciosas, incluindo a doença de Lyme, doenças transmitidas pela água, como a Vibrioparahaemolyticus, que causa vômitos e diarreia, e doenças transmitidas por mosquitos, como a malária e a dengue. Os riscos futuros não são fáceis de prever, mas as mudanças climáticas geram o aparecimento de patógenos, com o aumento das temperaturas e das precipitações.[8] Para ajudar a limitar o risco de doenças infecciosas, mister reduzir as emissões de gases de efeito estufa e limitar o aquecimento global a 1,5 graus, tendo como marco inicial a Era pré-industrial, não apenas no ano de 2100, mas já nos próximos anos.[9]

Neste sentido o Relatório Especial do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), sobre a meta de 1,5 graus, concluiu que a meta de dois graus existente — prevista no Acordo de Paris — teria consequências catastróficas e irreversíveis, ainda se atingida até 2100. Necessária é maior ambição em termos de governança climática. As catástrofes ambientais (e biológicas) devem aumentar até 2050 — inclusive com o surgimento de novas pandemias e o retorno de outras já conhecidas — se a estabilização das temperaturas não ocorrer nos próximos 11 anos. De acordo com o relatório, limitar o aquecimento global em 1,5 graus requer uma mudança radical nas ações dos entes privados e nas políticas públicas governamentais. O último relatório da Agência Internacional de Energia afirma que as emissões mundiais de CO2, estão subindo e não começaram a diminuir. Como resultado, inclusive o alcance da meta de dois graus no ano de 2100, está começando a sair do alcance da comunidade internacional. Com o aquecimento global já ultrapassando 1º C, desde a era pré-industrial, estamos caminhando, a passos largos, para o aquecimento de três ou até quatro graus no ano de 2100 o que causará um grande colapso ambiental, social, econômico e político.

No século 20, as atividades humanas avançaram com espetacular velocidade causando imensos impactos ambientais e um fenômeno de extinção de espécies em ritmo acelerado, comparável apenas com o ocorrido há 65 milhões de anos, quando os dinossauros, e metade da vida na Terra, foram extintos.

A diminuição da vida no Planeta, deve-se à perda de habitat, fazendo com que os animais não humanos invadam cidades em busca de alimento e de espaço. E a urbe, por seu turno, invade florestas, mangues e vegetações protegidas em nome do crescimento econômico promovendo um desenvolvimento urbano insustentável com o potencial de exterminar espécies de fauna e flora com uma voracidade impiedosa e nunca antes vista.A mudança climática causa a perda das espécies e afeta o habitat destas tendo como resultado a eclosão de novas doenças. As ações antrópicas causam um efeito rebote, pois ao mesmo tempo que afetam a flora e a fauna, degradam e colocam em risco a qualidade da própria vida humana.

Como solução a este problema, investimentos públicos e privados podem evitar outro surto pandêmico ao promover o combate as emissões de gases de efeito estufa, ao desmatamento e, especialmente, a proteção da biodiversidade global, que pode perder um milhão de espécies já nos próximos anos.[10] O Estado e a iniciativa privada devem apoiar a ciência, investir mais em pesquisas e, em especial, na construção de respostas efetivas e imediatas para o combate as pandemias. Visões pré-iluministas, negacionistas e outras utilitárias, não são a melhor resposta, e não trarão bons resultados no médio e no longo prazo.

As abordagens precautórias e preventivas são de longe as melhores para proteger o meio ambiente, à saúde pública e a própria economia dentro de uma perspectiva intergeracional. Quando a pandemia da Covid-19 chegar ao fim, haverá uma oportunidade única para reconstruir a economia nacional, abandonando-se o ultrapassado conceito de austeridade, cunhado pelos Chicago Boys, que naufragou na Era Reagan e Thatcher. Uma alternativa seria a adoção de um Green New Deal, semelhante ao proposto em forma de Resolução no Congresso Norte-Americano[11]e é abordado em sede de pesquisas científicas, inclusive dentro do direito.[12]Fugindo do nefasto onesizefitsall[13], cego para fatores locais, poderia ser elaborado, com amplo apoio governamental, no âmbito das grandes universidades públicas e privadas brasileiras, um Green New Deal dos Trópicos,que sirva ao país. Este deveria prever obrigatoriamente: a taxação sobre o carbono; a criação de um robusto mercado do cap-and-trade; o incentivo fiscal para as energias renováveis (eólica, solar, marítima, biomassa e, talvez, nuclear); a adoção obrigatória dos veículos elétricos; a obrigatoriedade do controle de sustentabilidade em obras públicas e privadas e na produção e comercialização de eletrodomésticos e dispositivos movidos por energia elétrica;o desenvolvimento da geoengenharia para mitigar os efeitos do aquecimento global; o estímulo à criação de empregos verdes (inclusive com programas de primeiro emprego); o combate mais rigoroso as queimadas e ao desmatamento; a adoção de escolas públicas de turno integral gratuitas, e privadas subsidiadas com a adoção de vauchers, desde a pré-escola até a Universidade; a ampliação e o fortalecimento do SUS; o aumento das garantias para a elevação da confiança no sistema de previdência, com uma maior regulação pública e social da previdência pública e, em especial, das empresas de previdência privada; o aumento do controle púbico e social sobre o sistema bancário e securitário; a elevação dos subsídios públicos para a pesquisa científica focada em novas tecnologias; a ampliação dos subsídios para universidades públicas e privadas e, em especial, a tributação das grandes fortunas.

Em suma, o nosso Estado Socioambiental de Direito, terá a oportunidade de implementar um Green New Deal à brasileira, e poderá lidar melhor,não apenas com crises climáticas e pandêmicas mas, especialmente, sociais e econômicas. O Brasil, de dimensões continentais e riquíssimo, em termos de diversidade e de bens naturais, possui uma Constituição e um arcabouço infraconstitucional progressistas e aptos a fornecer a moldura jurídica para este novo cenário que exige a concretização do princípio constitucional do desenvolvimento sustentável.

 é juiz federal, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e na Escola Superior da Magistratura Federal (Esmafe), pós-doutor em Direito e visiting scholar na Columbia Law School no Sabin Center for Climate Change Law e professor visitante na Universität Heidelberg- Instituts für deutsches und europäisches Verwaltungsrecht. Foi presidente da Associação dos Juízes Federais do Brasil (2010-2012) e da Associação dos Juízes Federais do Rio Grande do Sul (2008-2010) e representante da magistratura federal no Conselho da Justiça Federal (2010-2012) e no Conselho do Prêmio Innovare (2010-2012). Autor de diversos artigos jurídicos no Brasil e no exterior e de livros, entre os quais, “Desenvolvimento Sustentável na Era das Mudanças
Climáticas: um direito fundamental”.

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Gabriel Oliveira:Que Defensoria Pública teremos após a pandemia?

Neste 19 de maio celebramos o Dia Nacional da Defensoria Pública (Lei nº 10.448/2002). Em tempos de pandemia, a garantia dos direitos dos mais vulneráveis torna-se ainda mais indispensável. Com cerca de 17 mil mortes decorrentes da Covid-19 até aqui, o Brasil vive momento dos mais desafiadores da história. A par disso, outro enorme problema se fez presente na sociedade com as restrições sanitárias impostas. Milhares de cidadãos perderam o emprego e famílias se viram do dia para noite na condição de vulnerabilidade social e econômica.

Medidas assistenciais por parte de União, estados e municípios se impuseram urgentes, cumuladas com a necessidade de fortalecimento repentino e substancioso de leitos de UTI e respiradores, entre outras medidas afetas ao Sistema Único de Saúde (SUS).

Como política excepcional de proteção social, a União criou o auxílio emergencial no valor de R$ 600 podendo ser duplicado quando mais de dois membros da família se fazem elegíveis a ser concedido durante o período de três meses, com requisitos para a percepção previstos no artigo 2º da Lei nº 13.982/2020. O benefício representa, sem dúvida, um alívio. Trata-se de ação relevantíssima para minimizar a dificuldade das famílias, em especial, daquelas mais vulneráveis e que não têm poupança para emergências. 

A DPU já contabilizou mais de 11 mil novos pedidos de assistência jurídica integral e gratuita exclusivos para a pretensão auxílio emergencial. São reclamações quanto à atualização dos dados do CADúnico e da Relação Anual de Informações Sociais (Rais); indeferimento de candidatos não eleitos com base em cadastro do Tribunal Superior Eleitoral (TSE); impossibilidade de recurso e complementação de documentos; incompreensão quanto à negativa do benefício; entre outros motivos relativos à acessibilidade, como cadastro eletrônico exclusivo, necessidade de internet, de computador e celular.

Apesar do melhor intuito na execução da política pública de assistência social e na prestação de serviços de saúde, a crise potencializa as vulnerabilidades da sociedade. Por consequência, aumentam as demandas por direitos junto ao sistema de Justiça.

Do mesmo modo, os desafios do acesso à justiça tornam-se ainda mais expostos. Atendimento virtual, ajuizamento virtual, audiências virtuais, aplicativos e acesso à internet estão ainda distantes da população mais vulnerável.

Na DPU empreendemos máximos esforços para nos readaptarmos à nova realidade, com atendimento virtual, aquisição de equipamentos de proteção individual (EPIs) para quando voltar o atendimento presencial, elaboração de formulários eletrônicos, realização de atendimentos por telefone, e-mail e WhatsApp, além da atuação coletiva para potencializar as pretensões e da construção de soluções extrajudicial e judicialmente. Nesse ponto, o diálogo da Defensoria Pública com os poderes constituídos e órgãos governamentais é fundamental e tem sido uma constante.

Deixo os parabéns às defensoras e colaboradoras e aos defensores e colaboradores da DPU. Todos estamos nos reinventando para melhor prestar a assistência jurídica integral e gratuita em meio a esta crise global sem precedentes. Certamente sairemos fortalecidos deste momento desafiador, assim como o acesso à justiça aos vulneráveis, missão da Defensoria Pública da União.

Gabriel Faria Oliveira é defensor público-geral federal.

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Relações jurídicas contratuais sob o regime jurídico emergencial

Continua parte 2

3.3.2. Nos contratos de locação de imóvel urbano
Contrato de especial densidade social é o de locação de imóvel urbano. Importante ferramenta de fomento e de proteção da moradia, nas locações residenciais, bem como das atividades econômicas, quando voltado a imóveis não-residenciais, os contratos de locação têm sofrido grande impacto em razão da crise epidêmica.

No caso dos contratos de locação de imóveis urbanos residenciais, diversos locatários têm se visto em dificuldade de pagar os aluguéis, isso porque muitos já perderam seus empregos em razão das dificuldades econômicas que seus empregadores vêm passando, ou mesmo tiveram seus salários reduzidos ou contratos de trabalho suspensos, o que foi autorizado pela Medida Provisória n° 936/2020. Além das pessoas que eram empregadas na iniciativa privada, há, ainda, a situação relativa aos profissionais liberais e autônomos que também vêm sofrendo os efeitos econômicos decorrentes da pandemia da Covid-19 e dos atos das autoridades públicas para a continuidade do exercício de suas atividades.

Já nos contratos de locação de imóveis não-residenciais, a situação se revela ainda mais grave, tendo em vista a adoção de diversas medidas dos governos locais determinando o fechamento de estabelecimentos comerciais de rua e shoppings, trazendo uma impossibilidade absoluta de os locatários auferirem renda com a exploração de sua atividade e, consequentemente, inviabilizando o pagamento dos aluguéis.

Visando dar uma solução para este verdadeiro drama social, o autor do Projeto de Lei 1.179/2020, Senador Antonio Anastasia (PSDB/MG), fez inserir no referido Projeto o art. 10, o qual conferia aos locatários que tiveram a sua condição financeira alterada pela Covid-19, como demissão e redução de salário, o direito potestativo de suspender o pagamento dos aluguéis até 30.10.2020, valores esses que seriam posteriormente pagos de modo parcelado.

A referida disposição, no entanto, após grande repercussão negativa no mercado imobiliário, foi excluída do texto final do Projeto de Lei nº  1.179/2020 aprovado no Senado Federal, tendo sido ponderada também a necessidade de diversos locadores de receberem o aluguel, uma vez que muitos deles têm como sua única fonte de renda esse valor. Além disso, diversos locatários também não tiveram suas condições econômicas alteradas, e o risco de fraude seria grande, mediante a invocação de uma situação inexistente, a qual não seria passível de controle imediato porque o direito à suspensão dos pagamentos se caracterizava inequivocamente como um direito potestativo, e o Poder Judiciário se encontra com algumas atividades suspensas (como, por exemplo, realização de audiências nas varas e sessões nos tribunais fisicamente presenciais), funcionando na grande maioria dos Estados em regime apenas de plantão.

Assim, o art. 10 do PL 1.179/2020 foi retirado do seu texto final, o que parece acertado, deixando-se a cargo dos magistrados a análise casuística das situações que forem apresentadas, permitindo-se a revisão contratual caso presentes os requisitos que a autorizem, não se aplicando a vedação/limitação às revisões prevista no caput do art. 7º do Projeto de Lei nº  1.179/2020, como dispõe o § 1º do próprio art. 7º, no qual se prevê que as regras sobre revisão contratual previstas na Lei 8.245/1991 não se sujeitam ao disposto no caput do mencionado artigo.

3.3.3. Nas relações de consumo
Os efeitos da pandemia também trouxeram grandes impactos sobre as relações de consumo, especialmente aquelas que envolvem prestações continuadas, em que o vínculo das partes se protrai no tempo, de modo que contratos celebrados antes da disseminação da Covid-19, e que continuam vigentes, também foram afetados por seus danosos efeitos.

Dada a existência de uma relação naturalmente desequilibrada, em decorrência da vulnerabilidade fática, técnica ou econômica dos consumidores frente aos fornecedores, o Projeto de Lei nº  1.179/2020, assim como o fez nos contratos de locação de imóvel urbano, previu expressamente que as circunstâncias do seu art. 7º, que impedem a revisão dos contratos, não afastam a aplicação das regras previstas no Código de Defesa do Consumidor que a autorizam.

Assim, permanece incólume, por exemplo, a previsão do art. 6º, V, do CDC que prevê como direito básico do consumidor a revisão dos contratos por fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. No presente caso, não poderia ser diferente a solução dada, e isso porque no referido art. 7º do Projeto de Lei nº  1.179/2020  afirma-se que não se consideram imprevisíveis o aumento da inflação, a variação cambial e a desvalorização ou substituição do padrão monetário. E a impossibilidade de se dar solução diversa decorre do fato de que, a regra que autoriza, no diploma consumerista, a revisão contratual por fato superveniente não exige a imprevisibilidade, tendo dado o legislador de consumo tratamento diverso daquele dado, por exemplo, no art. 478 do Código Civil.

Com efeito, em se tratando de relação de consumo, tais eventos enumerados no art. 7º do Projeto de Lei nº  1.179/2020  podem autorizar a revisão contratual, tutelando-se, desta forma, de modo pleno a parte mais vulnerável da relação.

3.4. Suspensão do direito de arrependimento nas aquisições de bens por “delivery”
Ainda no âmbito dos impactos da Covid-19 sobre as relações de consumo, outro ponto que mereceu regulação da legislação transitória é aquele que diz respeito ao direito de arrependimento previsto no art. 49 do diploma consumerista.

A lei de consumo, em seu art. 49, traz importante ferramenta de proteção dos consumidores nos casos de aquisição de produtos e serviços à distância, isto é, quando não estiverem em contato físico e direto com o bem objeto da compra.

Nestes casos, tem o consumidor o direito de se arrepender da contratação, no prazo de 7 (sete) dias a contar do recebimento do produto ou da prestação do serviço, devolvendo o bem ao fornecedor e recebendo, em contrapartida, o valor pago de volta.

O propósito da norma é proteger o consumidor de publicidades enganosas ou abusivas, que são aquelas que induzem o consumidor a erro, fazendo-o adquirir produto ou serviço que não quer, que não precisa, que não tem as qualidades, características e funcionalidades propagandeadas, ou mesmo que exponham o consumidor a risco.

Assim, por estar o consumidor fisicamente distante do bem, não consegue avaliar adequadamente todos esses aspectos, sujeitando-se a uma compra que, verdadeiramente, não desejava, daí porque se mostra relevante conferir ao adquirente, nessas hipóteses, o direito de arrependimento mediante o recebimento, de volta, do valor pago.

Não obstante, durante o período da pandemia, este direito sofrerá restrições, isso porque, segundo o disposto no art. 8º do Projeto de Lei nº  1.179/2020, fica suspenso, até 30.10.2020, o exercício do direito de arrependimento nos casos de entrega domiciliar (delivery) de produtos perecíveis ou de consumo imediato e medicamentos.

A referida disposição é lógica, e também já merecia reflexão mesmo fora do período de pandemia. Inicialmente, é preciso deixar claro que o direito de arrependimento não foi suprimido ou suspenso durante o período de grande propagação e contágio do vírus. O direito do consumidor subsiste, apenas ficando restrito o seu exercício nas hipóteses excepcionalmente previstas na lei transitória, isto é, apenas nos casos de entrega domiciliar de bens perecíveis de consumo imediato e medicamentos. Nos demais casos de compras à distância, aplica-se plenamente o disposto no CDC.

Justifica-se a limitação imposta no Projeto de Lei nº  1.179/2020 pela própria natureza dos bens enumerados em seu art. 8º. A toda evidência quis o legislador tratar dos gêneros alimentícios, particularmente aqueles para consumo imediato, como refeições e lanches adquiridos à distância por telefone, internet ou aplicativos eletrônicos, e dos medicamentos, os quais, por certo, não podem ser consumidos por terceiros após a devolução.

A norma do art. 49 do CDC tem como propósito a tutela do consumidor, mas sem descuidar do equilíbrio da relação, na medida em que possibilita ao fornecedor, ao receber o produto de volta, recolocá-lo na cadeia de consumo. No caso dos bens perecíveis e de consumo imediato, bem como os medicamentos, após serem experimentados pelo consumidor, ou terem suas embalagens violadas, não podem ser reaproveitados, levando ao seu perecimento, tanto fático, quanto jurídico. Portanto, mesmo fora do período da pandemia, o exercício do direito de arrependimento, nessas hipóteses particulares, merece reflexão, não sendo cabível de modo absoluto e irrestrito.

Mas, durante a pandemia é ainda mais justificável a disposição. Isso porque inúmeros comerciantes vêm sendo obrigados a limitar suas atividades à entrega em domicílio, dada a profusão de leis, medidas provisórias e decretos que têm imposto a proibição da presença física dos consumidores nos salões de restaurantes e lanchonetes. Assim, como medida de sobrevivência do próprio negócio, a única fonte de receita desses fornecedores é a entrega dos bens no domicílio do consumidor.

Desse modo, autorizar que o consumidor, após experimentar ou consumir o alimento, possa se arrepender e devolver a coisa, além de uma possível violação à boa-fé (como no caso de não existir qualquer irregularidade com a coisa adquirida), também poderá trazer consequências econômicas drásticas para os comerciantes.

Por essa razão, recomenda-se que, diante de alguma situação peculiar, como a má-qualidade do produto, devam as partes tentar uma negociação, como, por exemplo, a troca por outro alimento, e não o exercício unilateral do direito potestativo de arrependimento.

3.5. Proibição de concessão de liminares em ação de despejo pelo inadimplemento em contratos de locação de imóvel urbano
Último ponto a ser examinado acerca do regramento que o Projeto de Lei nº  1.179/2020 visa dar aos contratos diz respeito à impossibilidade de concessão liminar de despejo por inadimplemento em contratos de locação de imóvel urbano.

Primeiramente, é preciso destacar que a ação de despejo tem uma peculiar particularidade. Embora se caracterize, na divisão quinaria das decisões (sentenças), como executiva, na medida em que compreende ela própria uma ordem de execução, impondo-se a retirada do locatário do imóvel (inclusive através de medidas coercitivas concretas), tem ela, conjuntamente, inequívoco caráter desconstitutivo, na medida em que promove a rescisão do contrato de locação. Portanto, a ordem de despejo leva à extinção do contrato, daí porque não se exige, para o despejo, que o locador formule pedido de rescisão do vínculo, pois o próprio despejo já o promoverá.

Assim, o despejo liminar nada mais faz do que pôr fim, antecipadamente, ao vínculo jurídico contratual que une o locador ao locatário, em juízo de cognição sumária, isto é, sem que se esgote todo o iter processual no qual se ateste, de modo inequívoco, o inadimplemento das obrigações do contrato que justifique a sua rescisão.

Por essa razão, e durante o período da pandemia, o Projeto de Lei nº  1.179/2020, em seu art. 9º, busca limitar a possibilidade de concessão liminares de despejo em ações propostas pelos locadores em face do locatários, nas hipóteses previstas no art. 59, § , I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei 8.245/1991, até 30.10.2020, tendo em vista a situação de excepcionalidade.

As únicas exceções em que será admitido o despejo liminar são aquelas previstas no art. 59, § 1º, IV e VI da Lei do Inquilinato, em que houver a morte do locatário sem ter deixado herdeiros, bem como para realização de obras emergenciais. Em todos os demais casos, está proibida a concessão de liminar nas ações de despejo, o que se revela admissível, não havendo violação ao exercício constitucional do direito de ação, e tampouco do princípio da inafastabilidade do controle do Poder Judiciário, dada a excepcionalidade das circunstâncias, que visam tutelar interesses outros, de índole existencial, como a própria moradia. O legislador, então, ponderando os diversos interesses, entendeu pela predominância deste último. Cumpre observar, ainda, que o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido a constitucionalidade de certas leis que proíbem a concessão de liminares, como é o caso da Lei 8.437/1992 que veda a concessão de liminares contra a Fazenda Pública em determinadas hipóteses.[3]

Quanto ao extenso rol previsto no Projeto de Lei nº  1.179/2020  como proibitivo da concessão de liminar, por certo o objetivo principal é proteger os locatários no período da pandemia contra eventual despejo pelo inadimplemento da obrigação de pagar os aluguéis. Os efeitos danosos que as medidas de contenção ao avanço da Covid-19 estão produzindo sobre a economia tem levado inúmeros locatários a já enfrentar problemas para pagamento dos aluguéis, dificuldade essa que, evidentemente, ainda se estenderá por alguns meses.

Com a referida previsão, então, resguarda-se o locatário durante o período da crise, mas também não se deixa de tutelar o locador. Isso porque os aluguéis e demais obrigações contratuais devem continuar a ser cumpridas, haja vista que, como visto anteriormente, foi retirado do texto original do Projeto de Lei a possibilidade de se suspender a exigibilidade dos aluguéis durante o período da pandemia.

Então, o locador continua a poder exigir do locatário o pleno cumprimento do contrato, salvo ajuste consensual, mas apenas não poderá rescindi-lo antecipadamente, através da concessão liminar do despejo, durante o período estabelecido no Projeto de Lei nº  1.179/2020.

Por fim, cumpre também destacar que a referida proibição à concessão da liminar apenas se aplica às ações propostas após o início da crise epidêmica, em que o Projeto de Lei nº  1.179/2020 fixou como marco o dia 20.03.2020, conforme o disposto no parágrafo único do seu art. 9º. A disposição é óbvia: a pandemia não pode servir de salvo-conduto aos locatários que já estavam inadimplentes antes da propagação da Covid-19, por razões que nenhuma relação têm com o atual estado de crise.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 


[3] BRASIL, STF, Tribunal Pleno, ADC n° 04. Rel. Ministro Sydney Sanches. Redator para o Acórdão Ministro Celso de Mello, DJe 30/10/2014.

Guilherme Calmon Nogueira da Gama é desembargador do TRF da 2ª Região; professor titular de Direito Civil da Universidade do Estado do Rio de Janeiro; professor permanente do PPGD da Universidade Estácio de Sá; professor titular de Direito Civil do IBMEC; mestre e doutor em Direito Civil pela UERJ.

Thiago Ferreira Cardoso Neves é advogado, mestre e doutorando em Direito Civil pela UERJ, professor dos cursos de pós-graduação da Emerj, do Ibmec e do CERS, Visitingresearcherno Max Planck Institute for ComparativeandInternational Private Law — Hamburg-ALE — e vice-presidente administrativo da Academia Brasileira de Direito Civil — ABDC.