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Figueiredo: MP 936 é providência necessária e proporcional

Face à crise decorrente das medidas de confinamento adotadas em virtude da pandemia da Covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde, o governo federal da República Federativa do Brasil editou uma série de atos e normas para profilaxia e enfrentamento da mesma [1]. Diversas dessas medidas são objeto de críticas e questionamento quanto à sua compatibilidade material com a Constituição Federal. Entre os atos que têm sua juridicidade posta em dúvida está o artigo 11, §4º, da Medida Provisória nº 936, de 1º de abril de 2020 [2], mormente em face às disposições contidas no artigo 7º, VI e XIII, da Lei Maior [3].

A questão foi judicializada, sendo objeto da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363, de autoria do Partido Rede Sustentabilidade, que pede, entre outros pleitos, a declaração de inconstitucionalidade do referido artigo 11, §4º. Isso porque, segundo a fundamentação exposta na Adin em questão, as disposições do artigo 11, §4º, da MP nº 936/2020 suprimem a participação obrigatória das entidades sindicais, mediante estabelecimento prévio de negociação ou acordo coletivo para tanto, permitindo, assim, redução de salário e jornada de trabalho fora das hipóteses constitucionalmente previstas.

Para uma correta exegese das disposições normativas constitucionais e infraconstitucionais sub examine, há que se valer dos métodos de hermenêutica autêntica e teleológica, valendo-se, ainda e a posteriori, de uma análise consequencialista.

Conforme análise dos anais do Congresso Nacional, que registrou os debates em torno do Congresso Constituinte de 1986 a 1988 [4], as normas protetivas do artigo 7º, VI e XIII, da Constituição da República, que condicionam eventual redução salarial ou de jornada de trabalho à prévia negociação ou acordo coletivo com participação sindical, tiveram como ratio eventual situação de crise pontual e específica a determinado segmento da economia brasileira. Assim, não houve por parte do legislador constituinte, à época, a visualização da possibilidade da existência de uma crise generalizada que atingisse, concomitantemente, a todos os setores da economia brasileira.

Por sua vez, a finalidade da irredutibilidade salarial e da proteção à jornada de trabalho é a preservação do poder aquisitivo do trabalhador, tendo como valor maior a conservação de seu sustento que, inexoravelmente, perpassa pela manutenção de seu trabalho.

Observe-se que as regras constitucionais do artigo 7º, VI e XIII, conforme já visto, visam à preservação do sustento do trabalhador, que se traduzem na proteção de sua renda e de seu trabalho, diante de uma situação específica de crise pontual em determinado setor da economia. Assim, diante de uma situação de crise econômica específica e pontual, entendeu por bem o legislador constituinte originário colocar a participação da entidade sindical como condição sine qua non para se adotar medidas de redução de renda e de expediente para se preservar o sustento individual do trabalhador, a saber, conservar o seu emprego.

Todavia, a pandemia mundial da Covid-19 trouxe, como dano colateral decorrente das políticas de confinamento, uma crise econômica generalizada em praticamente todos os setores da economia, mormente os segmentos de varejo, prestação de serviços e turismo. Portanto, a perguntas que devem ser feitas são: I) A norma do artigo 11, §4º, da Medida Provisória nº 936/2020, mitigadora das garantias constitucionais do artigo 7º, VI e XIII, traduzem-se em medidas razoáveis diante do cenário de crise de saúde e de crise econômica? 2) Seria razoável exigir a participação prévia das entidades sindicais para adoção de medidas de preservação de empregos, mediante redução de renda e de expediente no período de pandemia?

Em relação ao primeiro questionamento, tendo-se em mente que o artigo 7º, VI e XIII, traduz-se em norma constitucional de eficácia contida e aplicabilidade imediata, de acordo com os critérios de classificação proposto e consagrado por José Afonso da Silva [5], a mesma é passível de restrição em seu campo de aplicação por ato infraconstitucional. Por óbvio, a regra do artigo 11, §4º, da MP nº 936/2020, em épocas de crise generalizada na saúde e na economia, traduz-se em medida necessária e profilática para preservação do sustento do trabalhador, mediante conservação de seu emprego, ainda que às custas da redução temporária de sua renda e de seu expediente diário.

No que se refere ao segundo questionamento, em se considerando que o Brasil conta com um total de 11.753 sindicatos de trabalhadores e um total de 5.354 sindicatos de empregadores, conforme dados do Ministério do Trabalho [6], exigir a celebração de negociação coletiva, que depende, não raro, de inúmeras rodadas de debate para conclusão, para operacionalizar medidas de preservação de empregos e sustento, é praticamente ignorar o caráter emergencial da crise, que pede medidas de eficácia imediata para garantir seus resultados práticos e almejados.

Ante o breve raciocínio desenvolvido, a regra do artigo 11, §4º, da Medida Provisória nº 936/2020, no sentido de excepcionar as previsões do artigo 7º, VI e XIII, da Constituição da República Federativa do Brasil, traduz-se em providência mitigadora razoável, necessária e proporcional em época de pandemia mundial da Covid-19. Portanto, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 6.363, de autoria do Partido Rede Sustentabilidade, deverá, salvo melhor juízo, ser julgada improcedente no mérito, seguindo a linha que já foi adotada por ocasião do indeferimento de sua liminar [7].

 é procurador federal, presidente da Comissão Permanente Processante da 2ª Região, chefe do Núcleo Disciplinar da 2ª Região, especialista em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá e em Direito do Estado pelo Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mestre em Direito pela Universidade Gama Filho e doutor em Direito pela Universidade Federal Fluminense.

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Lindoso e Lima: Assembleia virtual em condomínios edilícios

A discussão sobre a possibilidade jurídica e sobre os lineamentos da assembleia geral de condomínio feita em ambiente virtual não é uma novidade. Muito ao contrário, é um assunto recorrente e uma reclamação antiga dos envolvidos no cotidiano do condomínio edilícios. Muitos síndicos em um primeiro contato com os temas jurídicos se perguntam por qual motivo isso já não é uma realidade. O baixo nível de engajamento dos condôminos com os assuntos do condomínio é sempre um fator que provoca as discussões, reforçando os pleitos por algum meio legítimo e seguro de realização virtual de assembleias de condomínio.

O condomínio é uma situação jurídica complexa que tem relação muito estreita com o direito fundamental à propriedade, que por sua vez é uma garantia constitucional das mais densas. E quanto maior a densidade constitucional de um direito, maior é a preocupação com segurança jurídica enquanto valor a ser considerado em eventual ponderação de interesses.

Logo, apesar das inúmeras e indiscutíveis vantagens de se realizar por ambiente virtual uma assembleia de condomínio, vivemos sob a égide de um Estado Democrático de Direito e precisamos nos ater aos limites e possibilidades da lei, que não prevê essa modalidade. Esse silêncio normativo, que tem por si só já tem uma carga sentido interpretativo, permite também algumas interpretações.

Sumarizando as possíveis interpretações, temos: I) a impossibilidade, diante da exigência legal de ato presencial; II) a possibilidade, desde que haja previsão na convenção de condomínio; e II) a possibilidade, salvo vedação na convenção de condomínio.

O Código Civil é silente quanto à modalidade de assembleia de condôminos, não havendo disposição que permita e nem que vede realização de assembleia virtual. Trata-se, obviamente, de disposição consentânea com o contexto social em que foi discutido e promulgado o Código Civil de 2002.

Pode parecer uma realidade distante no mundo hiperconectado em que vivemos hoje, e mais distante ainda considerando a ampla gama de ferramentas que possibilitariam, agora, a realização do ato. Entretanto, no longínquo ano de 2002 as ferramentas para videoconferência ou não existiam ou bem não eram acessíveis ou seguras o suficiente para representar solução legal.

É razoável supor, portanto, que a possibilidade de assembleia virtual de condôminos nunca foi algo seriamente cogitado no âmbito legislativo, simplesmente porque as tecnologias necessárias para viabilizar o ato não forneciam os meios para tanto.

Independentemente dos motivos que animaram essa escolha legislativa, é um fato inarredável o de que sempre que a lei trata da assembleia geral de condôminos se refere ao ato como um ato presencial. Os artigos 1.352 e 1.353 fazem referência expressa ao vocábulo “presentes”, sendo razoável presumir daí que há a necessidade de presença física do condômino. Se há a necessidade de presença física dos condôminos para o ato, por interpretação sistemática, seria juridicamente impossível a realização do ato por ambiente virtual.

Essa é, portanto, a primeira possibilidade interpretativa: a mais literal e conservadora interpretação das normas aplicáveis ao caso. A realização de assembleia geral de condôminos pela modalidade virtual é juridicamente impossível, diante de expressa disposição legal determinando que o ato seja presencial.

Há outros dois caminhos possíveis que merecem destaque, cada qual com seu respectivo fundamento.

É possível supor a realização de assembleia virtual, desde que haja previsão para tanto na convenção de condomínio. Essa assertiva encontraria arrimo no artigo 1.350 do Código Civil, pois, alegadamente, o síndico poderia convocar assembleia geral de condôminos “na forma prevista na convenção”.

Esse posicionamento tem, de fato, alguns acertos. O primeiro deles é o de que determinadas matérias podem ter disposição livre em convenção de condomínio. A forma de convocação da assembleia é uma delas. Pode o condomínio, portanto, dispor em convenção como os condôminos serão informados da existência de uma assembleia. Se será por carta registrada, e-mail, afixação de edital em mural, pombo-correio, sinal de fumaça, aviso do porteiro e por aí vai.

Ocorre que essa liberdade prevista no artigo 1.350 se limita à forma de convocação, e não pode ser espraiada para as demais disposições cogentes, não derrogáveis pela convencionalidade. Essa é uma interpretação fruto de simples análise sistemática da norma, em cotejo com as demais disposições alusivas à assembleia. Parafraseando Eros Grau, o ordenamento jurídico não se interpreta em tiras.

Noutro giro, mesmo que se interprete que a norma no sentido de que há a liberdade para que a convenção de condomínio disponha sobre a forma de realização do ato em si, e não da convocação, ainda assim subsiste a limitação legada pela expressa previsão de ato presencial, o que retira do espaço de discricionariedade convencional, por assim dizer, da convenção de condomínio.

A convenção de condomínio pode dispor sobre matérias cuja disposição legal lhe seja franqueada, ou sobre aquelas matérias em que não há disposição legal. Não é juridicamente possível, entretanto, que a convenção disponha sobe matéria cogente, ou seja, sobre os temas dos quais já se ocupa a lei.

Essas são conclusões que encontram fundamento na interpretação mais franca do princípio da legalidade no âmbito das relações civis, em que é permitido ao particular fazer o que a lei não proíbe.

A segunda interpretação possível, portanto, é a que defende a possibilidade da realização de assembleia virtual, diante da interpretação do artigo 1.350, que alegadamente permite inferir que a convenção de condomínio pode dispor sobre o modo de realização da assembleia, inclusive podendo dispor que ela seja feita virtualmente.

O princípio da legalidade nas relações privadas é também um dos temais que toca ao terceiro posicionamento, no qual se sustenta que a realização de assembleia virtual é possível, salvo vedação na convenção de condomínio.

Essa assertiva não parece ser a mais acertada, uma vez que ignora disposições legais que fazem alusão expressa ao ato enquanto ato solene e presencial. Com efeito, a assertiva de que a assembleia virtual é possível, salvo disposição em contrário, seria válida caso a lei não dispusesse absolutamente nada a respeito. Nesse cenário hipotético, essa interpretação seria defensável, pois decorrente do princípio da legalidade nas relações privadas: ao particular é dado fazer tudo quanto a lei não lhe vedar.

Ocorre que não é esse o caso: existe disposição legal expressa que conduz à interpretação de que o legislador cunhou o ato como presencial. E infelizmente o particular deve interpretar a lei dentro de seus limites semânticos, sob pena de se descolar do Estado Democrático de Direito e empreender em verdadeira atividade legislativa.

A terceira interpretação, portanto, sustenta que a assembleia virtual é possível, desde que não haja vedação na convenção de condomínio.

Feitas as colocações sumárias sobre as possibilidades interpretativas que a lei dá, nos cabe esclarecer que há a impressão de que os posicionamentos pela possibilidade de realização de assembleia virtual não teriam fundamento legal adequado.

Primeiramente, quanto à interpretação do artigo 1.350, vale destacar que esta não se sustenta em uma análise sistemática do ordenamento, considerando que o Código Civil prevê uma séria de matérias que escapam à possibilidade de disposição na convenção. E certamente o faz com o fito de proporcionar ao proprietário de bem imóvel em condomínio maior grau de segurança jurídica.

Há aqui um clássico embate entre formalismo e efetividade. Não se trata de um debate novo, já tendo sido o tema estudado por ocasião das pesquisas de formalismo-valorativo no processo civil, com grande contribuição de Alvaro de Oliveira. Sempre que se busca mais efetividade nas relações jurídicas, o formalismo e, por via reflexa, a segurança jurídica sofrerão prejuízos.

Ocorre que o direito de propriedade é relevante demais para o ordenamento para que se permita que as convenções de condomínio disponham sobre a substância do ato, tendo a lei determinado um nível mínimo de formalidade na necessidade de realização presencial do ato. Essa lógica vale também para o posicionamento de que é viável a assembleia virtual, salvo disposição em contrário.

Essa assertiva inverte a polaridade dos atos civis, tornando regra o que é exceção. Trata-se de medida contraditória, posto que certamente os atos da vida civil que levaram à constituição do condomínio e à aquisição da propriedade foram realizados presencialmente. Seria, para dizer o mínimo, surpreender o condômino determinando a realização de assembleia no formato virtual apenas porque a convenção não prevê essa limitação. Essa interpretação, com as devidas vênias, nos parece bastante problemática.

Já em um viés mais pragmático, não há como deixar de reconhecer a utilidade e as vantagens de uma assembleia virtual. E nem há como negar que é um futuro inescapável, e já uma realidade alcançada por via oblíqua nos aplicativos de bate-papo em grupo, que acabam, de maneira indevida, se tornando o palco para os debates que deveriam ser realizados na reunião de condomínio. Tais soluções representam muito ruído e pouca efetividade, acabando por prejudicar os mecanismos institucionais do condomínio.

Há de se considerar, por outro lado, que nem todo condômino tem a obrigação de ter a disposição e a intimidade com a tecnologia que a assembleia virtual demandaria. Assim, colocar essa modalidade como a regra poderia ter o injusto efeito colateral de excluir determinados condôminos, seja porque não dispõem dos meios tecnológicos, seja porque simplesmente não possuem esta aptidão. Basta lembrar, nessa senda, de condomínios com alto número de idosos, muitos dos quais não possuem, de maneira absolutamente justificável, familiaridade com as ferramentas de virtualização.

Qual seria, então, a solução?

O problema, muito claramente, existe. Há um descompasso entre o fato social e a moldura legal aplicável ao cotidiano. É dizer, noutras palavras, que as relações condominiais já evoluíram para os meios de comunicação telemáticos, cabendo ao ordenamento jurídico regular da melhor forma possível estas relações jurídicas. Não nos cabe, enquanto aplicadores do Direito, apenas apontar os problemas e repousar sobre os defeitos das soluções que já existem. É oportuno que se aponte também um caminho.

Assim, diante dos limites do ordenamento posto, entendemos que a realização de assembleia virtual passa necessariamente por uma alteração legislativa, que deverá regulamentar minimamente a modalidade de assembleia virtual, antevendo alguns potenciais problemas.

Alguns elementos dessa regulamentação atenderiam às preocupações de se evitar a exclusão de condôminos, de criar quebras de isonomia, bem como à necessidade de se proporcionar sistemas auditáveis de deliberação, que evitem abuso de poder pelo síndico.

Enquanto uma alteração legislativa não acontece, o condomínio que desejar regulamentar a atuação de seus órgãos em ambientes virtuais poderá fazer uso de toda sorte de ferramentas virtuais para proporcionar amplo debate, amadurecendo questões e manifestações dos condôminos em ambiente virtual. Bons exemplos disso são enquetes, que fornecem ao síndico um bom termômetro para a prática de atos de gestão.

Nada obsta que a discussão dos temas tenha início no ambiente virtual, ganhando em amadurecimento e em engajamento dos condôminos. Com toda a publicidade e didática possível, e preferencialmente com arrimo em deliberações assembleares, o condomínio pode eleger meios virtuais para colher manifestações de vontade diversas dos condôminos, que podem dar sustento à atos de gestão, principalmente em questões mais triviais.

No entanto, apesar de todas as vantagens, com o esquadro legal que temos hoje, toda e qualquer deliberação, por mais que tenha os debates previamente amadurecidos pelo ambiente virtual, deve terminar em uma deliberação presencial, com especial destaque para os temas sensíveis, como prestação de contas e eleição de síndico. O PL 1.179/2020, o qual dispõe sobre o regime jurídico emergencial transitório por força das repercussões da Covid-19 nas relações privadas, possui previsão de assembleia virtual, em caráter temporário por causa da impossibilidade de realização de assembleias presenciais, considerando a necessidade de isolamento social para combate à Covid-19. O referido projeto de lei, ainda em trâmite no Congresso, prevê que a manifestação de vontade do condômino por ambiente virtual fica equiparada à assinatura presencial.

Muito embora o projeto de lei não trate de aspectos relevantes, como a exigência de utilização de sistemas auditáveis e a garantia de participação de condôminos pelos meios analógicos, se assim desejarem, trata-se de solução emergencial louvável, que coloca no caminho certo a discussão jurídica sobre o tema.

Por fim, espera-se que este tipo de debate oportunizado pelas circunstâncias absolutamente adversas da pandemia possa provocar, de maneira segura e responsável, a modernização nas relações condominiais, de maneira estável, previsível e segura.

 é advogado especialista em Direito Civil e Processual Civil pelo Centro Universitário de Ensino Superior do Amazonas (Ciesa), e ex-presidente da Comissão de Arbitragem da OAB-AM.