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Arbítrio é tentador, conta com apoio de alguns e omissão de muitos

A presente coluna é escrita ainda sob a forte impressão causada pela nota de autoridades do Executivo com ameaças explicitas ao Judiciário e pela manifestação ocorrida neste fim de semana em Brasília, que culminou com o lançamento de foguetes contra o Supremo Tribunal Federal, iluminando faixas que pediam o fechamento do órgão e do Congresso .

Entre 1933 e 1939, quando um chanceler alemão chamado Adolf Hitler abandonou a Liga das Nações, descumpriu tratados de não armamento e açambarcou a Áustria e a Tchecoslováquia, um incomodado Churchill criticou a passividade dos demais líderes europeus: “Cada um espera que, alimentando o crocodilo, ele o comerá por último. Todos esperam que a tempestade passe antes que chegue a sua vez, mas eu receio — e receio muito — que a tempestade não passará. Assolará e rugirá com ainda mais ruído e de forma mais vasta.”

Em um piscar de olhos, Hitler estava na Polônia e na França, rugindo bem perto das praias inglesas e dando início a um dos maiores conflitos da história.

Vivemos em tempos distintos, mas as lógicas não parecem tão diferentes. Quanto o poder é ocupado por líderes incomodados com a democracia, com a imprensa, com decisões judiciais, o atalho do arbítrio é tentador, e sempre conta com o apoio de uma parcela da população e a inatividade de outra.

Os alemães brindavam a ascensão de Hitler porque ele iria “mudar tudo isso” (Albright, 49), uma frase familiar ao brasileiro de hoje. E aos poucos, ele e outros mandatários da época foram angariando nacos de poder e inibindo resistências, sem aparentes rupturas institucionais. Mussolini dizia que a forma mais sábia para acumular poder era fazê-lo como se depena uma galinha, pena a pena, para que cada grito seja ouvido em separado dos outros e o processo se mantenha o mais silencioso possível.

A crença que as instituições resistirão por si a seguidos ataques autocráticos é ilusória. Thomas Jefferson já alertava que o preço da liberdade é a eterna vigilância, de forma que a passividade não pode ser uma opção.

Não se pode comparar o Brasil de 2020 à Alemanha dos anos 30, muito menos seus líderes ou contextos. Mas a história pode se repetir como tragédia, como farsa, ou como uma triste comédia sem graça. E um sinal da tempestade reside na artilharia organizada contra o Judiciário. Desde a menção ao fechamento do STF por um cabo e um soldado, passando pela organização de milícias virtuais para agredir Ministros, até as notas e discursos de intimidação e o foguetório de ontem, há uma escalada de ameaças que vai além da mera retórica.

Emilia Viotti dizia que “a história do STF talvez possa ser contada por meio dos momentos em que o Poder Executivo investiu contra sua autonomia e liberdade de decisão”. Vive-se mais um capítulo dessa triste história que não revela nada além de uma falta de maturidade democrática, de uma propensão caudilhista em que o Poder Executivo não suporta contestação e brande suas armas sempre que contrariado.

É dever de todos aqueles que atuam na área jurídica, sejam advogados, juízes, promotores ou defensores públicos, perceber que ameaçar o STF e seus membros é colocar em xeque o Estado de Direito. Podemos discordar das decisões da Corte, combater seus fundamentos, e  até mesmo alterar a lei que lhes serve de base, mas incitar o ódio e usar da ameaça institucional extrapola qualquer limite.

Se a tempestade não vai passar tão cedo, que a enfrentemos. Chamemos às falas legais aqueles que usam a violência institucional como estratégia política, sejamos intransigentes na defesa do STF e da legalidade, para que não lamentemos mais adiante a impossibilidade até mesmo de manifestar nossas preocupações.

 é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

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Simão e Benradt: Direito da conformidade em tempos de pandemia

O mundo passa hoje por uma tormenta nunca antes vivenciada pela nossa geração. A pandemia da Covid-19 pode ser considerada, sem qualquer eufemismo, como uma tempestade perfeita para todas as nações do globo, principalmente aquelas em que vivem as populações menos favorecidas.

Governantes e governados deverão lidar pelos próximos meses com uma crise multifacetada, de aspectos sanitários, econômicos, políticos e humanitários. Obviamente, as empresas não ficarão fora dessa hecatombe. As graves mazelas da pandemia exigem que as empresas adotem medidas urgentes e extraordinárias, de modo a salvaguardar a higidez de suas finanças e a saúde de seus colaboradores. Em tempos de crise aguda, líderes empresariais e governantes são demandados a tomarem decisões com muita rapidez, flexibilizando controles, cortando custos e relegando determinados procedimentos de conformidade.

Em decorrência da urgência do enfrentamento da Covid-19, o governo federal editou o Decreto nº 10.314/2020 e as Medidas Provisórias nº 926/2020 e nº 961/2020, que, respectivamente: I) flexibiliza as regras de recebimento de doações de bens móveis e de serviços, sem ônus ou encargos, de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado pela administração pública federal; II) flexibiliza os procedimentos governamentais para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da Covid-19; e III) autoriza pagamentos antecipados nas licitações e contratos administrativos, uniformiza os limites de dispensa de licitação e amplia o uso do Regime Diferenciado de Contratações Públicas durante o estado de calamidade.

Do outro lado, empresários buscam desesperadamente manter seus negócios vivos, adaptando-se às novas realidades sanitárias e econômicas. Reduções abruptas de orçamento e demissões de pessoal serão, infelizmente, inevitáveis para o setor privado.

Mas como tais movimentos tomados pelos setores público e privado podem impactar nas questões de integridade?

Ora, estamos diante de uma combinação explosiva! Crise financeira, corte de gastos, flexibilização de regras e pressão para atingimento de resultados a qualquer custo pavimentam um terreno fértil para desvios de integridade. Sem contar a evidente falta de planejamento e de coordenação governamental para o enfrentamento da pandemia.

É nesse contexto em que as áreas de compliance das empresas devem atuar de maneira proativa e incisiva, a fim de mitigar riscos, dar transparência aos atos e garantir aderência aos valores éticos das organizações, em especial aquelas cujas atividades demandam interações constantes com a Administração Pública. É fundamental que as organizações privadas não só continuem seguindo à risca os seus procedimentos de integridade, como os aperfeiçoem. Decisões devem ser tomadas com a rapidez que a situação exige, mas sem abrir mão dos controles e fluxos já existentes.

Apesar da flexibilização promovida pelo Estado, seu aparato de controle continuará atento e implacável. Controladorias, tribunais de contas e Ministério Público escrutinarão todas as relações entre os entes privados e a Administração, de modo que desvios e impropriedades serão identificados no futuro. Isso já está acontecendo.

Diante desse cenário e dos riscos inerentes à situação de calamidade, quais salvaguardas podem ser adotadas pelas áreas de compliance?

Tone At The Top e Comunicação
O sucesso de um programa de integridade depende do comprometimento e do apoio da alta direção da empresa Esse comprometimento deve ser ainda maior nos tempos de crise. Cabe à liderança externar de forma incisiva que os valores éticos da organização se sobrepõem a quaisquer prioridades econômicas que possam emergir.

Um plano de comunicação eficiente e transparente é condição sine qua non para que haja a devida disseminação das políticas de integridade. Dada a complexidade do momento, a comunicação com transparência é fundamental para reforçar as relações de confiança entre a organização, seus colaboradores e demais stakeholders. A organização deve intensificar as comunicações internas, orientando constantemente os colaboradores para que zelem pelo mais alto grau de lisura nas relações, especialmente aquelas tidas com a Administração Pública.

Também deve ser colocado em prática o princípio do walk the talk, ou seja, a alta administração deve externalizar a cultura de integridade da organização através de ações. Para tanto, apesar das dificuldades econômicas, deve-se procurar preservar os orçamentos das áreas de compliance  ou até mesmo reforçá-los, a depender no nível de exposição da empresa. Não são poucos os relatos que chegam acerca de cortes envolvendo profissionais das áreas de compliance. Assim, recomenda-se que qualquer simplificação da estrutura e dos controles de integridade em razão de otimização orçamentária, se essencial, deve ser acompanhada de uma análise de riscos minuciosa, que servirá de sustentáculo para a tomada de decisões, sopesando-se prós e contras e causas e efeitos.

Compliance nos processos decisórios
As peculiaridades do momento vivido exigem tomadas de decisões rápidas, eficientes e assertivas. Quando se fala em saúde, vidas e manutenção de postos de trabalho, tudo é urgente. Por outro lado, movimentações a toque de caixa, sem que sejam tomadas as devidas salvaguardas, dão margem para impropriedades em processos comerciais e desvios de conduta.

Para que os riscos sejam mitigados de maneira estratégica, recomenda-se que o responsável pela área de compliance seja mantido sempre na “mesa de decisões”, aconselhando as lideranças da organização e antecipando eventuais red flags. O envolvimento do Compliance Officer no processo decisório pode, inclusive, evitar que prioridades comerciais subjuguem os controles internos e as melhores práticas de integridade.

Da mesma forma, nas empresas em que sejam instalados os chamados “comitês de gestão de crise”, a figura do Compliance Officer é essencial.

Interações com agentes públicos
Com as flexibilizações promovidas pelas Medida Provisórias 926/2020 e 961/2020, o governo federal buscou dar mais celeridade aos procedimentos governamentais para aquisição de bens, serviços e insumos destinados ao enfrentamento da Covid-19. Nota-se que determinadas regras previstas na Lei de Licitações foram alteradas significantemente. É compreensível que tais contratações não possam aguardar o curso normal de uma licitação em função da urgência do interesse público envolvido.

Entretanto, ao mesmo tempo em que as MPs flexibilizam mecanismos para que as contrações emergenciais de enfrentamento da crise ocorram da maneira mais célere e eficiente possível, aumenta-se a margem de risco para a ocorrência de fraudes envolvendo contratações com o poder público.

Assim, é importante que aquelas empresas que interagem com frequência com a Administração Pública redobrem a atenção quanto a potenciais irregularidades, criando salvaguardas adicionais nas políticas de integridade, em especial de interação com agentes públicos, como por exemplo: 

 Cadeia de terceirosrecomenda-se que seja redobrada a atenção com quaisquer terceiros que atuem em nome da organização. Assim como a empresa, esses terceiros também sofrerão com os impactos econômicos negativos da crise, o que pode levá-los a adotar condutas antiéticas no afã do atingimento de seus objetivos comerciais. A área de compliance deve reforçar as políticas de integridade da empresa junto aos seus terceiros representantes, bem como considerar a criação de controles adicionais com base em uma análise de riscos específica, especialmente nos casos em que a atuação destes terceiros se dê junto ao poder público. Ademais, deve-se evitar ao máximo a intermediação de terceiros em contratações com a Administração Pública; 

— Manutenção dos processos: a urgência da Administração Pública para contratações sem licitação não pode ser um fator que limite os processos e controles de aprovação já existentes na empresa. Cabe ao Compliance Officer coordenar a sua equipe para que os processos transcorram com agilidade, mas sem negligenciar as atividades de controle. Portanto, os procedimentos de aprovação, background check due diligence de terceiros devem ser mantidos, ou até mesmo reforçados a depender da natureza da contratação. Caso haja necessidade de flexibilização de procedimento já existente, recomenda-se que o ato seja aprovado por órgão interno com poder para tanto e que o racional da flexibilização seja devidamente registrado; 

  Registros: é importante que quaisquer interações com agentes públicos sejam devidamente registradas e documentadas pela empresa. É preferível que as tratativas com a Administração Pública se deem por escrito, sempre utilizando-se de linguagem objetiva e transparente. Reuniões devem ser registradas por meio de atas, incluindo aquelas que se realizarem por meio virtual e remoto, assim como seus respectivos agendamentos, pautas e participantes. Se possível, preservar a gravação das reuniões realizadas por videoconferência; 

 Transparência: uma forma eficiente de evitar potenciais desvios é dar publicidade aos atos de contratação com o poder público, principalmente aquelas realizadas com procedimentos simplificados em virtude da pandemia. Assim, recomenda-se, sempre que possível, a publicação de informações básicas (sem sigilo comercial) da contratação no website da empresa ou em suas redes sociais, de modo a demonstrar ao público em geral a lisura do processo de contratação e o comprometimento da organização com os princípios de integridade;

  Estruturas de Contratação: quando se tratar de contratações com dispensa de licitação, há de se tomar cuidado com a estruturação das operações. Recomenda-se evitar a intermediação de terceiros ou mecanismos de pagamentos heterodoxos;

 — Justificativasembora caiba ao poder público justificar as razões da contratação e os preços praticados, é recomendável que as empresas façam um “exercício reverso” e identifiquem se a contratação é devida e o preço é justo. Nesse sentido, vale entender da Administração Pública qual seria a justificativa da contratação, bem como estabelecer e registrar o racional das quantidades contratadas e preços praticados. O monitoramento pela empresa da execução dos contratos também é fundamental para que haja certeza da entrega e correta aplicação dos recursos.

Doações
As doações para órgãos e entidade públicas também merecem uma atenção especial. Neste momento de gravidade, é natural e importante que o espírito de solidariedade aflore. Entretanto, salvaguardas são necessárias a fim de mitigar o risco de futuros questionamentos.

Em virtude da crise, o Governo Federal editou o Decreto nº 10.314/2020, ampliando as hipóteses de recebimento de doações pela Administração Pública Federal. Entre as alterações, passou a ser possível, por exemplo, o recebimento de doações de bens móveis e de serviços de pessoas físicas ou jurídicas de direito privado pelos órgãos e pelas entidades da Administração Pública Federal, com ônus ou encargos.

Assim, a realização de doações ao poder público deverá ser revestida de salvaguardas para mitigar eventuais riscos de integridade. Além das diretrizes já existentes nas políticas de doação, recomenda-se que as empresas tomem as seguintes medidas: 

— Forma: as doações devem ser realizadas por meio de chamamento público ou manifestação de interesse. O chamamento público somente ocorrerá quando se tratar de doação sem ônus ou encargo. Havendo indicação de donatário específico na manifestação de interesse, recomenda-se que eventuais interações com o órgão público interessado sejam feitas por escrito, em caráter institucional, de formar a evidenciar as justificativas para tal doação. Da mesma forma, é recomendável que a doação seja feita somente em bens ou serviços e com a finalidade exclusiva de combate à pandemia, preferencialmente sem qualquer pedido de contrapartida ou encargo;

— Registro e Formalização: é essencial que todos os atos que envolvam a doação sejam registrados e formalizados documentalmente. Ademais, é importante que as doações sejam todas contabilizadas corretamente. Assim como nas contratações, todas as comunicações com o poder público devem ser registradas. Também merecem registro todas as evidências de pesquisas de background check due diligence de integridade realizadas anteriormente à doação para verificar idoneidade dos órgãos e agentes públicos envolvidos. Por fim, para que não haja margem de questionamentos futuros, o ato de doação deve ser formalizado por meio de instrumento jurídico, que reflita de maneira detalhada as características da doação; 

Transparência: recomenda-se, sempre que possível, a divulgação das doações realizadas da no website da empresa ou em suas redes sociais, de modo a demonstrar ao público em geral a lisura do processo e o comprometimento da organização com os princípios de integridade;

— Cadeia de Terceiros: para a realização de doações, a recomendação é que não haja a intermediação de terceiros, de modo que a doação seja processada na forma estabelecida pelo ente estatal e pela legislação;

— Monitoramento: sempre que possível, a empresa deve acompanhar a utilização do bem ou do serviço doado, de modo a evitar eventual desvio de finalidade que possa futuramente prejudicar sua reputação.

A bem da verdade, em tempos de crise aguda, controles excessivos e desnecessariamente rígidos podem impactar negativamente a celeridade do processo decisório, prejudicar o espírito de cooperação e espalhar a desconfiança no ambiente organizacional.

Diante disso, como equalizar o estado de coisas de incertezas, o agir ético e as necessidades emergenciais?

Caberá ao Compliance Officer tratar deste dilema com medidas que sopesem prós e contras, causas e efeitos e, sobretudo, agir de maneira racional, baseado em análise de riscos, sem negligenciar os princípios éticos da organização, mas com a sensibilidade e urgência que este grave momento exige.

Há de se lembrar sempre do ditado: “Depois da tempestade, vem a calmaria”.

Valdir Moysés Simão é sócio do escritório Warde Advogados, ex-ministro do Planejamento, Orçamento e Gestão e ex-ministro-chefe da CGU.

Pedro Henrique A. Benradt é advogado do escritório Warde Advogados e atua em compliance, anticorrupção e consultivo societário.

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Saydelles: Estratégias da UE para combater a pandemia

A pandemia da Covid-19 colocou um desafio sem precedentes para grande parte dos países. A paralisação econômica e afetou as cadeias globais de produção, distribuição e circulação. Os impactos estão sendo sentidos tanto pelo lado da oferta quando pelo lado da demanda, a partir do adiamento de despesas de consumo e investimento, causado pelo quadro de elevada incerteza, que vem se refletindo em um aumento da aversão ao risco por parte dos agentes econômicos. Mesmo sem vislumbrar a data final da crise de saúde pública e na iminência de uma crise econômica que promete ser tão ou mais devastadora do que a de 2008 ou a de 1929 —, já se sabe, de antemão, que a tempestade é violenta e necessitará que se cresça à altura do desafio. Nesse sentido, é fundamental pensar em políticas para mitigar o impacto dos danos.

É nesse espírito que se vem fazer breves considerações acerca de alguns dos aspectos econômicos e financeiros trazidos pela Resolução de 17 de abril, aprovada pela União Europeia [1], que visa a estabelecer uma ação coordenada para combater a pandemia e suas consequência. Por certo, a realidade brasileira é bastante diversa da europeia, entretanto, não se pode desprezar o que outros países estão fazendo para enfrentar a crise. Já que nem a ciência jurídica e nem a ciência econômica estão sujeitas a testes laboratoriais, a história e a comparação de sistemas são duas ferramentas que não podem ser ignoradas. Considerando que a presente crise não encontra precedente histórico, mais importância ainda ganha a comparação com modelos estrangeiros, e seu uso como ponto de partida para o debate e para pensar alternativas aderentes à realidade nacional. 

A resolução veio dar resposta à constatação fática de que, inicialmente, as respostas à Covid-19 ocorreram primordialmente à nível doméstico. Dessa forma, procurou-se estabelecer linhas gerais para cooperação e coordenação entre os Estados-membros diante da crise de saúde pública e crise financeira. A resolução está lastreada no princípio da solidariedade entre países membros (artigo 3, TUE), visando a promover a coesão econômica e social e o bem-estar dos povos. Em termos econômicos e financeiros, é possível perceber na resolução quatro grandes grupos de preocupações: I) a cooperação para a saída da crise; II) a manutenção do trabalho e renda; III) as formas de financiamento da retomada; e II) os setores estratégicos para a economia pós-coronavírus.

A um, a cooperação para a saída da crise. A resolução destacou a necessidade de esforços unidos para garantir que nenhum país seja deixado sozinho para combater o vírus e as suas consequências, dentro do espírito de solidariedade subjacente à UE. Nessa linha, um aspecto especialmente destacado é a necessidade de desenvolver políticas que garantam o abastecimento contínuo de alimentos. Esse ponto toca fundamentalmente o setor primário da economia e a indústria alimentar, havendo preocupação de se assegurar a continua produção e circulação, sem obstáculos dentro do mercado único, a fim de evitar que se some uma crise alimentar à crise econômica e de saúde pública. O mercado único é considerado uma fonte de prosperidade e de bem-estar coletivos, constituindo um elemento indispensável para a resposta ao surto da Covid-19. Vale ressaltar que, ainda em termos de cooperação econômica, o Banco Europeu já havia anunciado, em 12 de abril, uma série de medidas. Uma crise internacional exige respostas internacionais. Nesse intuito, a resolução é enfática em apontar a cooperação como alicerce para a superação do desafio posto. 

A dois, manutenção do trabalho e da renda. A resolução manifestou solidariedade em relação àqueles que perderam o emprego e que tiveram as vidas profissionais afetadas pela pandemia. Nessa linha, defende que a Comissão Europeia e que os Estados-membros tomem medidas para manter o maior número possível de postos de trabalho, assegurando que a recuperação seja lastrada na convergência socioeconômica ascendente, no diálogo social e na melhoria dos direitos sociais e das condições de trabalho. Ainda, considera que os Estados-membros devem adotar medidas para assegurar que os trabalhadores sejam protegidos contra a perda de rendimentos. Para salvaguardar o emprego, sugeriu-se a adoção de iniciativas como a redução do tempo de trabalho e compensação de rendimentos. Ademais, incentiva que as autoridades europeias prudenciais e de supervisão explorem opções para reduzir os encargos das pequenas e médias empresas, apelando para a criação de uma estratégia horizontal europeia para a recuperação dessas empresas, lastrada na redução da burocracia e dos custos de acesso ao financiamento. Por fim, manifesta a convicção de que o dever de diligência das empresas, em matéria de direitos humanos e de ambiente, é condição necessária para prevenir e atenuar crises futuras e assegurar cadeias de valor sustentáveis. Em tempos de turbulência econômica e social, é mister assegurar o patamar de direitos conquistados e criar uma rede de proteção social como forma de mitigar o impacto vindouro.

A três, em termos de financiamento da recuperação, a resolução demonstrou um conjunto de preocupações com o papel a ser desempenhado pela União Europeia, pelos Estados-membros e pelos bancos. Em primeiro lugar, apoio à proatividade dos Estados. Há insistência para que as instituições da UE e para que os Estados-membros assegurem a concessão de apoio financeiro para combater os efeitos econômicos da Covid-19. Aponta-se a necessidade de se condicionar esse financiamento à utilização em benefício dos trabalhadores, devendo as empresas beneficiadas se absterem de pagar bônus à administração, praticar atos de evasão fiscal, pagar dividendos ou disponibilizar resgate de ações enquanto receberem esse apoio. Em segundo, reconhece a necessidade de flexibilidade orçamentária. A resolução insiste na adoção de um quadro financeiro plurianual (QFP) ambicioso, que preveja um orçamento reforçado e em consonância com os objetivos da UE, assegurando margem de manobra orçamental suficiente para garantir melhor previsibilidade e maior capacidade de ação, assegurando uma exposição reduzia aos riscos nacionais. Ainda, a resolução reconhece a necessidade de mobilizar fundos adicionais de forma rápida e não burocrática para ajudar os Estados-membros na luta contra a Covid-19 e suas consequências. Em terceiro, apoia a medidas de investimento e de liquidez. A resolução insta a Comissão Europeia a propor um pacote de medidas de recuperação e reconstrução em grande escala para investir na economia no pós-crise. Aponta que o investimento necessário deve ser financiado pelo incremento do QFP e pelos fundos e instrumentos financeiros existentes na UE. Ademais, aponta que esse pacote não deve implicar na mutualização da dívida existente, devendo ser orientado para investimentos futuros. Em quarto, propõe a criação de um Fundo de Solidariedade da UE para a Covid-19. Esse fundo teria por objetivo o apoio aos esforços financeiros empreendidos pelos setores da saúde dos Estados-membros, bem como os investimentos no setor dos cuidados de saúde no pós-crise. Em quinto, insiste no papel ativo do setor bancário. A resolução aponta para a necessidade de o setor bancário permitir às empresas e aos cidadãos com problemas financeiros associados à Covid-19 reduzir ou suspender temporariamente o pagamento de dívidas ou de hipotecas, dando flexibilidade no tratamento de créditos não produtivos. Ainda, sugere a suspensão temporária de pagamento de dividendos e redução das taxas de juros aplicáveis às contas a descoberto. Em especial, aponta para a necessidade das pequenas e médias empresas se beneficiarem da liquidez financeira necessária. Por certo que a construção de uma rede de proteção social pressupõe custos, portanto, é necessário pensar em meios de financiar a retomada da economia. O cenário que se desenha, de quarentenas intermitentes, impede que se pense em uma retomada linear. Urge equacionar a atuação dos Estados em termos econômicos, especialmente diante da perspectiva de enfraquecimento do setor privado e da estagnação atualmente vivenciada.

A quatro, a necessidade de se pensar uma “nova economia” para a retomada. Nesse aspecto, em primeiro, a resolução aponta para a necessidade de se desenvolver uma nova estratégia industrial. A indústria deve ser mais competitiva e resiliente face aos choques globais. Nesse ponto, apoia a reintegração das cadeiras de abastecimento no interior da UE e o aumento da fabricação interna de produtos essenciais (medicamentos, princípios farmacêuticos, equipamentos e materiais médicos, dentre outros). Em segundo, incentiva a área da saúde. A resolução considera que pesquisadores, empresas inovadoras e a indústria europeia devem receber apoio financeiro para que encontrem uma cura para a Covid-19, instando os Estados-membros a aumentarem o apoio a programas de investigação, desenvolvimento e inovação destinados a compreensão da doença, aceleração do diagnósticos e testes e desenvolvimento de uma vacina. Nessa linha, sugere aproveitar a oportunidade e se propor um plano de ação para a autonomia da saúde em domínios estratégicos como os princípios ativos farmacêuticos , reduzindo a dependência em relação a outros países. Em terceiro, aponta para a indústria verde e da tecnologia como pilares da retomada. A resolução aponta que o pacote de recuperação deve ter no seu cerne o Pacto Ecológico Europeu e a transformação digital como impulsionadores iniciais à economia, melhorando a resiliência e criando emprego contribuindo simultaneamente para a transição ecológica e para a promoção do desenvolvimento econômico e social sustentável. Destaca-se que as respostas devem estar alinhadas com o objetivo da UE de neutralidade climática. Melhor do que pensar em um “retorno à normalidade” é pensar em uma “nova normalidade” e, na retomada da economia, novos setores podem ser incentivados.

Assim, depreende-se da resolução que a cooperação e a solidariedade serão fundamentais para o reerguimento da economia no período pós-pandemia. Deve-se apostar nas relações multilaterais como ferramenta de retomada. Por hora, deve-se assegurar o emprego e a renda, inclusive como forma de mitigar o impacto social advindo da pandemia. Em termos de financiamento, deve-se adotar estratégias multiníveis, envolvendo a UE e os Estados-membros, dando-se destaque ao papel a ser desempenhado pelos bancos. Por fim, deve-se repensar a estratégia industrial, dando importância à área da saúde, de tecnologia e da indústria verde como pilares fundamentais da economia, promovendo uma retomada econômica e social que seja sustentável.

Essa breve análise da resolução de 17 de abril visou a demonstrar, em linhas gerais, algumas das estratégias pensadas na União Europeia para combater a pandemia e suas consequência. É certo que a realidade enfrentada é distinta da brasileira, mas, diante do ineditismo da crise, deve-se valorizar o que é pensado alhures como forma de fomentar e de inspirar o desenvolvimento de estratégias para superação dos desafios vindouros. Certamente, a cegueira deliberada em relação ao estrangeiro não é o melhor caminho para o enfrentamento de uma crise de tal magnitude. Acima de tudo, deve-se crescer à altura das desafiadoras circunstâncias.

 é membro associado do Instituto de Estudos Culturalistas (IEC) e da Associação Brasileira dos Estudantes de Arbitragem (ABEArb).