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Ana Cristina Viana: O combate à Covid-19 na França

A pandemia da Covid-19 é uma realidade do mundo todo, mas a forma com a qual cada país lida com ela não é a mesma. Por isso, proponho mostrar para os leitores e operadores de Direito brasileiros as medidas sancionatórias que foram adotadas na França para conter a propagação do vírus e suas bases jurídicas.

No dia 25 de fevereiro (uma segunda-feira), enquanto o Brasil festejava o feriado de Carnaval, a Europa se preocupava com o andar da carruagem da Covid-19. No fim do dia, o governo francês determinou a quarentena de todos os residentes que retornavam da Itália, especificamente da região da Lombardia, em razão da rápida propagação do vírus naquele país.

Essa foi a primeira de uma série de medidas tomadas até o dia 16 de março, quando o presidente da República determinou o confinamento da população sobre todo o território pelo período mínimo de 15 dias.

A prerrogativa da puissance publique do governo francês implicou em uma severa imposição: #restez chez-vous (#fiquem em casa). Com o propósito de prevalecer o interesse geral sobre o interesse particular, restringiu-se o direito das pessoas de ir e vir e impôs-se um isolamento social. O cerceamento, que não havia sido aplicado de tal forma nem em período de guerras, consistiu na proibição de todo tipo de deslocamento que não estritamente necessário.

Foram permitidas apenas as saídas das residências para o exercício de atividade profissional (quando não possível o teletrabalho) e para compras de necessidades básicas, como mercado, padaria e tabacarias. Deslocamentos por questões familiares foram tolerados apenas nos casos de assistência a pessoas vulneráveis ou para creche. Concedeu-se, finalmente, a possibilidade de saídas breves, mas no limite de uma hora por dia e num raio máximo de um quilômetro em torno da casa, ligadas à atividade física individual.

Como modo de monitorar o confinamento, exigiu-se a apresentação de justificativa, preenchida em formulário específico disponibilizado na página do governo [1]. O descumprimento das obrigações implicaria em multas e até prisão. Inicialmente, as restrições foram estipuladas por meio do Decreto n° 2020-260. A norma foi fundamentada na teoria das circunstâncias excepcionais, oriunda do Caso Heyriès, decidido pelo Conselho de Estado francês em 1918 [2].

À época, a situação anormal de guerra exigiu autorizações de exercício de poder pelo executivo para estabelecer regras derrogatórias do Direito comum. Definiu-se que em tempos de crise as autoridades públicas têm poderes excepcionalmente amplos para garantir a continuidade dos serviços públicos. Os atos praticados, contudo, devem ser revisados pelo juiz administrativo, que deve verificar se eles foram adotados com o propósito de garantir o interesse geral.

O estado de urgência da crise foi declarado legalmente no dia 23 de março com a publicação da Lei nº 2020-290. A lei acrescentou alterações ao Código Sanitário, sendo dispostas restrições [3], cuja aplicação ficaria ao encargo do primeiro-ministro, a ser estabelecida de modo proporcional aos riscos (Artigo L. 3131-15).

Nela, foram estipuladas as sanções cabíveis no caso de descumprimento das medidas de restrição impostas pelo governo. As sanções foram inscritas no Código Sanitário no título referente às disposições penais no caso de crises sanitárias graves (L. 3136-1) [4]. Estabeleceu-se que a violação de proibições ou obrigações impostas na aplicação dos artigos referentes ao estado de emergência da Covid-19 seriam puníveis com a multa prevista nas multas de quarta classe [5], podendo chegar à quinta classe no caso de reincidência.

A lei francesa distingue três categorias de infrações de acordo com a gravidade: a contravenção, os delitos e os crimes. Por sua vez, o sistema de contravenção francês é dividido em cinco classes, também de acordo com a gravidade. Enquanto a primeira é a mais leve, a quinta é a mais grave. São aplicadas usualmente no caso de condução de veículos e possuem valores tabelados.

A contravenção de quarta classe tem o valor fixo de 135 euros (R$ 860), sendo, portanto, este o valor da multa a ser aplicado às pessoas que descumprirem com as imposições restritivas no caso da Covid-19. Para aquelas pessoas que forem multadas mais de três vezes no mesmo mês, é possível punição de pena de prisão de seis meses, multa de 3.750 (R$ 23,9 mil) euros, além de duas multas adicionais, uma consistindo em serviço comunitário.

Posteriormente, no dia 28 de março, foi publicado o Decreto n ° 2020-357, aumentando o valor das multas para os reincidentes (de 200 para 450 euros — de R$ 1,3 mil para R$ 2,9 mil).

Das sanções aplicadas é possível recorrer perante a Justiça Administrativa francesa. A contestação ou o acompanhamento da multa podem ser feitos online por meio da página da Agência Nacional de Tratamento Automatizado de Infrações (Antai) [6].

Embora de natureza penal, a lei dispôs que a aplicação de sanções penais não obsta a execução automática, pela autoridade administrativa, das medidas prescritas. Assim, além dos policiais nacionais, a lei concedeu jurisdição aos policiais municipais, guardas de campo, controladores da prefeitura de policiais e vigilantes de Paris.

Ou seja, na prática, vários agentes estatais monitoram os deslocamentos dos residentes e possuem prerrogativa para aplicar de modo automático as medidas sancionatórias no caso de uma saída não justificada. Desde que os controles foram implementados em meados de março, 11,8 milhões de pessoas foram advertidas pela polícia e 704 mil crimes foram relatados em toda a França [7].

Após um mês de confinamento os resultados das restrições já são revelados. Segundo estudo realizado por infectologistas da Escola de Altos Estudos em Saúde Pública (EHESP), o confinamento evitou a saturação dos hospitais e a circulação do vírus. Evitou, também, mais de 60 mil mortes, o que corresponde a uma redução de 83,5% do total de número de falecimentos previstos [8].  

O estudo ainda mostra que se nenhuma medida tivesse sido aplicada, cerca de 23% da população estaria afetada no fim de abril (14,8 milhões de indivíduos) [9].

Nesta semana, o país deu início a um desconfinamento lento e progressivo. A população, contudo, está ciente que terá de “aprender a conviver com o vírus”, tal como disse o primeiro-ministro.

 


[3] (L. 3131-1 e L. 3131-15 a L. 3131-17) (tradução livre da autora):

“1°  Restringir ou proibir a circulação de pessoas e veículos nos locais e horários estabelecidos por decreto;

2°  Proibir as pessoas de sair de casa, sujeitas a viagens estritamente essenciais para as necessidades da família ou da saúde;

3°  Ordenar medidas que tenham por objeto a quarentena, na aceção do artigo 1 do Regulamento Sanitário Internacional de 2005, de pessoas suscetíveis de serem afetadas;

4°  Ordenar medidas para colocar e manter o isolamento, na aceção do mesmo artigo 1, em suas casas ou em qualquer outro local adequado para as pessoas afetadas;

5°  Ordenar o fechamento temporário de uma ou mais categorias de estabelecimentos abertos ao público e de locais de reunião, com exceção dos estabelecimentos que fornecem bens ou serviços essenciais;

6°  Limitar ou proibir reuniões na via pública, bem como reuniões de qualquer tipo;

7°  Ordenar a requisição de todos os bens e serviços necessários à luta contra a catástrofe da saúde, bem como de qualquer pessoa necessária ao funcionamento desses serviços ou ao uso desses bens. A compensação para essas requisições é regida pelo Código de Defesa;

8°  Tomar medidas temporárias para controlar os preços de certos produtos necessários para prevenir ou corrigir as tensões observadas no mercado para determinados produtos; o Conselho Nacional do Consumidor é informado das medidas tomadas para esse fim;

9°  Conforme necessário, tome todas as medidas para disponibilizar aos pacientes medicamentos apropriados para a erradicação do desastre sanitário;

10°  Conforme necessário, adote por decreto qualquer outra medida regulamentar que limite a liberdade de empreender, com o único objetivo de pôr fim ao desastre sanitário mencionado no artigo L. 3131-12 deste código”.

 é advogada, professora, pesquisadora e diretora jurídica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (Idasan) e doutoranda em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná com doutorado sanduíche na Universidade Paris 1 Pantheón-Sorbonne, na França.

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Juiz rejeita denúncia contra seis acusados no caso Herzog

A denúncia contra seis acusados de participação na morte do jornalista Vladimir Herzog foi rejeitada nesta segunda-feira (4/5). A decisão é do juiz federal Alessandro Diaferia, da 1ª Vara Criminal Federal de São Paulo.

O jornalista morreu em 1975, na sede do Destacamento de Operações e Informações do II Exército (DOI-Codi).

Herzog foi assassinato em 1975, nas dependência do DOI-Codi

Reprodução

Na peça, o MPF denunciou Audir Santos Maciel, comandante responsável pelo referido destacamento; José Barros Paes e Altair Casadei, chefes de comando da 2ª Seção do Estado-Maior do II Exército; Harry Shibata e Arildo de Toledo Viana, médicos legistas; e Durval Ayrton Moura de Araújo, representante do Ministério Público Militar quando da morte do jornalista.

Lei da Anistia

Para o MPF, a chamada “lei da anistia” (Lei no 6.683/79) não deveria incidir sobre os acusados. Para afastar essa incidência, quatro argumentos foram utilizados.

O principal deles diz respeito à imprescritibilidade dos crimes praticados, pois são crimes contra a humanidade.

Além disso, o MPF adotou entendimento de que as condutas já eram qualificadas como crimes contra a humanidade quando se deram os fatos.

Um terceiro argumento invocou a decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que tem efeito vinculante e não é incompatível com a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), segundo a qual a “lei da anistia” é constitucional.

Por fim, o MPF alegou que os crimes teriam sido praticados em contexto de um ataque sistemático e generalizado contra a população civil brasileira, promovido com o objetivo de assegurar a manutenção do poder pelos militares.

Extinção da punibilidade

Porém, o juiz rejeitou os argumentos do MPF. “Não obstante o louvável empenho do órgão ministerial, nas suas percucientes ponderações introdutórias à denúncia, em que pretende ver afastada a extinção de punibilidade dos fatos narrados; e não obstante a gravidade e a irreversibilidade das consequências dos fatos narrados, considera este Juízo que não há amparo legal ao prosseguimento da presente persecução penal, sendo forçoso reconhecer a extinção da punibilidade em decorrência da concessão de anistia”, afirma Alessandro Diaferia.

Segundo o magistrado, a Lei no 6.683/79 estabelece que os crimes políticos ou conexos com esses, considerando-se conexos os crimes de qualquer natureza relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política, perpetrados entre 2/9/1961 a 15/8/1979, foram anistiados.

“Nesse passo, deve ser dito que a anistia é uma das formas de extinção da punibilidade que se caracteriza pelo esquecimento jurídico do ilícito, concedida pelo Congresso Nacional, por meio de lei, não suscetível de revogação, e que possui como decorrência a extinção de todos os efeitos penais dos fatos, remanescendo apenas eventuais obrigações de natureza cível”, disse o juiz em sua decisão.

Decisão do STF

O juiz ressalta ainda, que, conforme decisão plenária do STF, os efeitos da “lei da anistia” não foram afastados pela Constituição Federal de 1988, alcançando, portanto, os crimes políticos ou conexos como esses.

“A decisão proferida em Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental possui eficácia contra todos e efeito vinculante relativamente aos demais órgãos do Poder Público no que evidentemente se enquadram o Poder Judiciário, o Ministério Público e os demais atores do sistema de distribuição de Justiça vigente no Brasil”, apontou o juiz.

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5001469-57.2020.4.03.6181