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Tiago Barbosa: Quando o que se lê é precisamente o que se lê

O breve texto que me proponho a escrever toca no tema da interpretação. É evidente que não tenho a pretensão de tratar de temática tão desafiadora, mesmo porque gastaria folhas e mais folhas…
De arrancada, serei curto e direto: há freios no ato de interpretar [1]. Diante de uma palavra ou ex…

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A MP 966 e seus efeitos sobre a responsabilidade dos agentes públicos

Fomos quase todos, que trabalhamos o Direito, surpreendidos nesta quinta (14/5) com a publicação da Medida Provisória nº 966, de 13 de maio de 2020, a qual dispôs sobre a responsabilização de agentes públicos por ação e omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19.

Sua edição provocou um imediato alvoroço em juristas, políticos e na imprensa dado o regramento que nela foi sistematizado em relação ao assunto. O que me proponho, numa análise primeira e ainda bem horizontal do citado diploma normativo, é demonstrar que, no relativo à responsabilidade civil, possivelmente, muito desse rebuliço não resista a uma averiguação mais conjuntural.

Sem fazer trocadilhos com algo que é por natureza sério e que se torna ainda mais importante mercê do quadro de crise sanitária por qual passamos, mas talvez aqui se possa dizer tal como na famosa peça teatral do Bardode Avon: much ado aboutnothing (muito barulho por nada).  É que, repito, no que concerne à responsabilidade civil, realmente, as disposições da MP pouco alteram a ordem das coisas existentes. Distinta pode ser, é verdade, a questão no pertinente à responsabilidade administrativa, mas essa já uma questão para os doutos dessa seara do direito…

A Medida Provisória tem como âmbito de incidência material as hipóteses descritas em seu art. 1º, que reproduzo adiante: “Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de: I – enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia da Covid-19; e II – combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19”.

Note-se, de pronto, que ela não muda a responsabilidade objetiva prevista no art. 37, § 6º, da CF/88, a qual continua incólume, pois baseada no risco administrativo. A MP apenas disciplina, no caso da responsabilidade civil, como se dará a ação regressiva ali também prevista.

Para o particular em si, ela tem, com efeito, pouco efeito prático até por força do que restou decidido pelo Supremo Tribunal Federal no RE 1.027.633/SP, julgado com repercussão geral em  agosto do ano passado (Tema 940). A tese fixada pelo STF na ocasião reafirma a orientação pretoriana da Corte prestigiando a doutrina da dupla garantia, pela qual a regra do art. 37, § 6º, estabeleceria uma garantia para a vítima, facultando-lhe ação indenizatória, mas também outra garantia, agora para o agente público, pela qual apenas a pessoa jurídica de direito público a cujo quadro funcional pertence é que seria legitimada para ingressar com a demanda regressiva. Na prática, o que ela faz é retirar da vítima a possibilidade de ingressar com ação contra o agente autor do dano. É sob tal ótica, portanto, que se aborda a polêmica (?) MP.

A isenção excepcional de responsabilidade em decorrência do quadro de transitoriedade normativa que vivemos em virtude da pandemia global e que poderia afastar a ação regressiva  somente se justifica: a) nesse específico quadro de excepcionalidade; b) para atos que especificamente digam respeito a atos públicos relativos destinados ao enfrentamento da emergência sanitária ou de combate aos seus efeitos econômicos sociais. Veja-se, não foi em vão o uso do adjetivo específico e do advérbio especificamente na mesma frase: a repetição teve por fundamento dizer que qualquer forma de interpretação extensiva da MP n. 966/20 deve ser tida por indevida e inválida.

Alguém poderá objetar, com boa razão, inclusive, que a afirmação acima se revela de pouca eficiência em razão da extensão previamente indeterminada dos termos empregados: enfrentamento da emergência sanitária e combate aos seus efeitos econômicos e sociais. Correto?

A resposta é tanto sim como não. Sim, a MP valeu-se de fato de termos amplos; porém, não, isso não é propriamente uma novidade. Toda e qualquer norma é — e deve ser — passível de interpretação jurídica. Desde o Direito Romano é sabido existir uma dialética inerente, inevitável mesmo, entre a lei e o juiz, tendo a doutrina por mediadora Assim, por mais amplos e abertos que tenham sido os termos da MP, parece ser relativamente fácil concluir que sua incidência deve abranger tão somente casos restritos associadas às práticas de saúde ou decisões com repercussão econômica/social pelos órgãos estatais, especialmente os decisórios.

Um exemplo tão simples como elementar para facilitar a compreensão: poderia um policial militar se eximir de contender com um criminoso que acabou de roubar um hospital, público ou privado, ao argumento de que estaria acobertado pela MP n. 966/20? Por certo que não! Em primeiro lugar, na situação ilustrada trata-se de profissão onde o agente estatal assume perante a sociedade em geral um dever de cuidado e proteção os quais, por si somente, já afastariam a incidência do texto normativo dentro da ideia de aplicação contida a que me referi acima. Não pode o policial militar, o bombeiro, o guarda municipal, mas também o servidor da Previdência, o  funcionário da agência de um banco público — aliás, aqui já seria uma outra questão, a de se saber se a MP seria aplicável a eles… —  deixar de atuar e bem desempenhar suas funções sob suas escusas.

Por outro lado, e ainda em prol da ideia de campo limitado de sua incidência, parece restar implícito que a atuação que fica imunizada é a relativa a atos estatais que demandem uma escolha baseada nas opiniões técnicas existentes, como fica expresso § 1º, do art. 1º. Sendo essencialmente polêmica a questão, peço antecipadas desculpas pelos que pensam de forma contrária, mas é mais que apropriada a referência nesse momento. Se, com razão, se cobra que o Estado aja nesse momento gravoso, de modo até mais firme e presente, parece ser de alguma razoabilidade considerar que o agente público seja chamado a responder com seu patrimônio por uma decisão que ele possa ter tomado e que, posteriormente, não se revele adequada, apenas em situações também extraordinárias.

A questão está no cerne das discussões da responsabilidade civil na área sanitária desde o quartel final do Século 20 e ainda hoje suscita, como agora, debates vivazes entre juristas. As consequências deletérias da sociedade de risco[2], rebotalho implacável de suas inúmeras comodidades, impôs mudanças as mais profundas na responsabilidade civil. Mais assertiva e proativa, ela ampliou seu espectro e forma de ser. Ainda no campo onde se cruzam saúde humana e responsabilidade civil, o grande problema é que os danos causados se ocultam sob o manto de uma postergação de efeitos. Basta rememorar, aliás em um passado não tão remoto, dos danos infundidos pela talidomida. Não eram previsíveis em sua origem, revelaram-se desastrosos.

Coloquemos todos esses ingredientes em nossa sopa de Wuhan. Imagine-se a delicada situação pela qual passam os profissionais de saúde e outros técnicos da área econômica que precisam tomar decisões, mas que em um futuro também não tão distante, sejam confrontados com evidências no sentido de que tais técnicas acarretaram danos à saúde, ou financeiros àqueles para os quais foram administrados quando, ao momento em que foram praticados, as evidências técnicas apontavam para sua correção. Não se afigura ponderável a regra sob tal contexto? Vou além, não parece justa mesmo!?

Em uma emissora de televisão, enquanto acabava de escrever o parágrafo acima, escutei exatamente que a MP foi fruto de uma postulação de servidores dos ministérios da Economia e da Saúde diante das circunstâncias acima mencionadas. O temor, como referido, é mais que justificado pela expansão da responsabilidade civil, que cada vez mais tende a ter seus filtros de contenção diminuídos na já difundida imagem de Anderson Schreiber. A propósito, não há que se temer, nem mesmo meramente, a regra constante do § 2º, do art. 1º, da MP n. 966/20 quando diz que “o mero nexo de causalidade entre a conduta e o resultado danoso não implica responsabilização do agente público.”

Se a intenção do artigo foi outra, sequer vem ao caso, porque ele, no ponto, seria até dispensável. Nos termos do § 6º, do art. 37, da CF/88, o agente responde civilmente apenas por imputação subjetiva, não objetiva. Logo, realmente, o nexo de causalidade por si somente não implica responsabilidade. Ainda assim, a Medida Provisória n. 966 traz consigo o debate de importantes questões como: a) poderia o legislador ordinário definir a ação regressiva do § 6º, do art. 37, dispondo que ela somente poderia ser exercida pelas pessoas jurídicas de direito público autonomamente ou a título de dolo ou de culpa? b) seria o resgate da conhecida e por muitos já abandonada doutrina da tripartição da culpa?

Respondendo ao momento sim para ambas indagações espero em breve poder aqui retornar para aborda-las de maneira mais adequada e com o devido fundamento jurídico. Só me resta, para encerrar, agradecer ao professor Otavio Luiz Rodrigues Junior e todos os co-editores desta prestigiada coluna a oportunidade uma vez mais conferida de dividir minhas opiniões com seus leitores.  

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

[2] A expressão sociedade de risco (Risikogesellschaft) criada por UlrichBeck põe em evidência o fato de que os perigos produzidos pela civilização moderna não podem mais ser definidos no espaço ou no tempo. Cf. BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. 2. ed. Tradução de Jesús Alborés Rey. Madrid: Siglo XXI de España, 2006, passim.

Bruno Leonardo Câmara Carrá é juiz federal; doutor em direito civil (USP); professor nos cursos de graduação e pós-graduação em sentido estrito (mestrado acadêmico) da UNI-7; foi pesquisador visitante nas Universidade de Bolonha, Paris V e Oxford.

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Ana Cristina Viana: O combate à Covid-19 na França

A pandemia da Covid-19 é uma realidade do mundo todo, mas a forma com a qual cada país lida com ela não é a mesma. Por isso, proponho mostrar para os leitores e operadores de Direito brasileiros as medidas sancionatórias que foram adotadas na França para conter a propagação do vírus e suas bases jurídicas.

No dia 25 de fevereiro (uma segunda-feira), enquanto o Brasil festejava o feriado de Carnaval, a Europa se preocupava com o andar da carruagem da Covid-19. No fim do dia, o governo francês determinou a quarentena de todos os residentes que retornavam da Itália, especificamente da região da Lombardia, em razão da rápida propagação do vírus naquele país.

Essa foi a primeira de uma série de medidas tomadas até o dia 16 de março, quando o presidente da República determinou o confinamento da população sobre todo o território pelo período mínimo de 15 dias.

A prerrogativa da puissance publique do governo francês implicou em uma severa imposição: #restez chez-vous (#fiquem em casa). Com o propósito de prevalecer o interesse geral sobre o interesse particular, restringiu-se o direito das pessoas de ir e vir e impôs-se um isolamento social. O cerceamento, que não havia sido aplicado de tal forma nem em período de guerras, consistiu na proibição de todo tipo de deslocamento que não estritamente necessário.

Foram permitidas apenas as saídas das residências para o exercício de atividade profissional (quando não possível o teletrabalho) e para compras de necessidades básicas, como mercado, padaria e tabacarias. Deslocamentos por questões familiares foram tolerados apenas nos casos de assistência a pessoas vulneráveis ou para creche. Concedeu-se, finalmente, a possibilidade de saídas breves, mas no limite de uma hora por dia e num raio máximo de um quilômetro em torno da casa, ligadas à atividade física individual.

Como modo de monitorar o confinamento, exigiu-se a apresentação de justificativa, preenchida em formulário específico disponibilizado na página do governo [1]. O descumprimento das obrigações implicaria em multas e até prisão. Inicialmente, as restrições foram estipuladas por meio do Decreto n° 2020-260. A norma foi fundamentada na teoria das circunstâncias excepcionais, oriunda do Caso Heyriès, decidido pelo Conselho de Estado francês em 1918 [2].

À época, a situação anormal de guerra exigiu autorizações de exercício de poder pelo executivo para estabelecer regras derrogatórias do Direito comum. Definiu-se que em tempos de crise as autoridades públicas têm poderes excepcionalmente amplos para garantir a continuidade dos serviços públicos. Os atos praticados, contudo, devem ser revisados pelo juiz administrativo, que deve verificar se eles foram adotados com o propósito de garantir o interesse geral.

O estado de urgência da crise foi declarado legalmente no dia 23 de março com a publicação da Lei nº 2020-290. A lei acrescentou alterações ao Código Sanitário, sendo dispostas restrições [3], cuja aplicação ficaria ao encargo do primeiro-ministro, a ser estabelecida de modo proporcional aos riscos (Artigo L. 3131-15).

Nela, foram estipuladas as sanções cabíveis no caso de descumprimento das medidas de restrição impostas pelo governo. As sanções foram inscritas no Código Sanitário no título referente às disposições penais no caso de crises sanitárias graves (L. 3136-1) [4]. Estabeleceu-se que a violação de proibições ou obrigações impostas na aplicação dos artigos referentes ao estado de emergência da Covid-19 seriam puníveis com a multa prevista nas multas de quarta classe [5], podendo chegar à quinta classe no caso de reincidência.

A lei francesa distingue três categorias de infrações de acordo com a gravidade: a contravenção, os delitos e os crimes. Por sua vez, o sistema de contravenção francês é dividido em cinco classes, também de acordo com a gravidade. Enquanto a primeira é a mais leve, a quinta é a mais grave. São aplicadas usualmente no caso de condução de veículos e possuem valores tabelados.

A contravenção de quarta classe tem o valor fixo de 135 euros (R$ 860), sendo, portanto, este o valor da multa a ser aplicado às pessoas que descumprirem com as imposições restritivas no caso da Covid-19. Para aquelas pessoas que forem multadas mais de três vezes no mesmo mês, é possível punição de pena de prisão de seis meses, multa de 3.750 (R$ 23,9 mil) euros, além de duas multas adicionais, uma consistindo em serviço comunitário.

Posteriormente, no dia 28 de março, foi publicado o Decreto n ° 2020-357, aumentando o valor das multas para os reincidentes (de 200 para 450 euros — de R$ 1,3 mil para R$ 2,9 mil).

Das sanções aplicadas é possível recorrer perante a Justiça Administrativa francesa. A contestação ou o acompanhamento da multa podem ser feitos online por meio da página da Agência Nacional de Tratamento Automatizado de Infrações (Antai) [6].

Embora de natureza penal, a lei dispôs que a aplicação de sanções penais não obsta a execução automática, pela autoridade administrativa, das medidas prescritas. Assim, além dos policiais nacionais, a lei concedeu jurisdição aos policiais municipais, guardas de campo, controladores da prefeitura de policiais e vigilantes de Paris.

Ou seja, na prática, vários agentes estatais monitoram os deslocamentos dos residentes e possuem prerrogativa para aplicar de modo automático as medidas sancionatórias no caso de uma saída não justificada. Desde que os controles foram implementados em meados de março, 11,8 milhões de pessoas foram advertidas pela polícia e 704 mil crimes foram relatados em toda a França [7].

Após um mês de confinamento os resultados das restrições já são revelados. Segundo estudo realizado por infectologistas da Escola de Altos Estudos em Saúde Pública (EHESP), o confinamento evitou a saturação dos hospitais e a circulação do vírus. Evitou, também, mais de 60 mil mortes, o que corresponde a uma redução de 83,5% do total de número de falecimentos previstos [8].  

O estudo ainda mostra que se nenhuma medida tivesse sido aplicada, cerca de 23% da população estaria afetada no fim de abril (14,8 milhões de indivíduos) [9].

Nesta semana, o país deu início a um desconfinamento lento e progressivo. A população, contudo, está ciente que terá de “aprender a conviver com o vírus”, tal como disse o primeiro-ministro.

 


[3] (L. 3131-1 e L. 3131-15 a L. 3131-17) (tradução livre da autora):

“1°  Restringir ou proibir a circulação de pessoas e veículos nos locais e horários estabelecidos por decreto;

2°  Proibir as pessoas de sair de casa, sujeitas a viagens estritamente essenciais para as necessidades da família ou da saúde;

3°  Ordenar medidas que tenham por objeto a quarentena, na aceção do artigo 1 do Regulamento Sanitário Internacional de 2005, de pessoas suscetíveis de serem afetadas;

4°  Ordenar medidas para colocar e manter o isolamento, na aceção do mesmo artigo 1, em suas casas ou em qualquer outro local adequado para as pessoas afetadas;

5°  Ordenar o fechamento temporário de uma ou mais categorias de estabelecimentos abertos ao público e de locais de reunião, com exceção dos estabelecimentos que fornecem bens ou serviços essenciais;

6°  Limitar ou proibir reuniões na via pública, bem como reuniões de qualquer tipo;

7°  Ordenar a requisição de todos os bens e serviços necessários à luta contra a catástrofe da saúde, bem como de qualquer pessoa necessária ao funcionamento desses serviços ou ao uso desses bens. A compensação para essas requisições é regida pelo Código de Defesa;

8°  Tomar medidas temporárias para controlar os preços de certos produtos necessários para prevenir ou corrigir as tensões observadas no mercado para determinados produtos; o Conselho Nacional do Consumidor é informado das medidas tomadas para esse fim;

9°  Conforme necessário, tome todas as medidas para disponibilizar aos pacientes medicamentos apropriados para a erradicação do desastre sanitário;

10°  Conforme necessário, adote por decreto qualquer outra medida regulamentar que limite a liberdade de empreender, com o único objetivo de pôr fim ao desastre sanitário mencionado no artigo L. 3131-12 deste código”.

 é advogada, professora, pesquisadora e diretora jurídica do Instituto de Direito Administrativo Sancionador Brasileiro (Idasan) e doutoranda em Direito do Estado na Universidade Federal do Paraná com doutorado sanduíche na Universidade Paris 1 Pantheón-Sorbonne, na França.