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Qual será o futuro do controle da administração pública

O período estranho que estamos vivendo naturalmente tem despertado nas pessoas sentimentos e emoções fortes, muitas vezes conectados com questionamentos a respeito de continuidade e mudança. Como será o mundo doravante? Como será o “novo normal”? As perguntas se avolumam e, na ausência de respostas, reflexões e intuições tomam nossa mente de assalto. O direito não fica imune nesse cenário inquietante, ao contrário: não só o direito privado mas, especialmente, o direito público, são objetos de análises, preocupações e vaticínios. O controle da Administração Pública, em especial, tem merecido a atenção dos juristas em razão de sua importância nesse momento: sintetizando uma das muitas preocupações ligadas à pandemia, há necessidade de garantir agilidade nas contratações públicas, buscar eficiência de métodos e processos e, finalmente, resguardar o Erário diante de oscilações de preços tão anormais quanto o momento. Estas breves colocações já sinalizam que a resposta à pergunta “qual o futuro do controle da Administração Pública” não demanda resposta única, tampouco fácil. Entretanto, a observação de alguns posicionamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal talvez ajude a compreender alguns dos desafios que já estão se apresentando. Por outro lado, a verificação do comportamento de entidades controladoras durante o período também pode servir como prenúncio a respeito de sua percepção — das entidades — sobre o novo cenário em construção.

O primeiro entendimento interessante vindo do STF no período é perceptível no julgamento do RE 636.886, que fixou a tese segundo a qual “é prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas”. O julgamento talvez tenha trazido mais dúvidas do que certezas, mas alguns aspectos merecem atenção. Inicialmente, convém analisar a decisão conjuntamente com o entendimento consagrado pelo mesmo STF no tema 897, segundo o qual são imprescritíveis apenas as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato de improbidade administrativa doloso tipificado na Lei de Improbidade Administrativa. Com efeito, houve expressa referência no voto do relator proferido no RE 636.886 à atualidade do tema 897 para ressaltar que o caso julgado não abrangia tutela específica da probidade. O relator, ministro Alexandre de Moraes, ainda criticou a estrutura dos processos de contas, que não permitiriam ampla defesa e contraditórios realmente efetivos. A crítica não é nova e foi tecida de forma especialmente incisiva na fixação da tese referente ao tema nº 835, que trata do julgamento dos prefeitos pelas câmaras municipais. Trata-se de crítica que merece temperamentos, pois muitas vezes as flexibilizações às regras que materializam contraditório e ampla defesa ocorrem de forma a torná-los tão efetivos (com incontáveis oportunidades de defesa) ao ponto de comprometerem a razoável duração do processo. De qualquer maneira, o julgamento do RE nº 636.886 reforça a importância da devida caracterização do elemento subjetivo nos processos de contas, para fins de responsabilização, ainda que não se esteja concluindo diretamente a respeito da existência de ato de improbidade administrativa. A natureza e as peculiaridades dos “processos de contas” ainda merecem maiores estudos, mas o STF reitera firmemente a importância do devido processo legal, da devida atenção aos elementos subjetivos da conduta e também a necessidade de racionalidade (sobretudo, agilidade) na atuação de controle, para evitar que o passar do tempo — somado à lentidão — comprometam a efetividade do controle.

O segundo posicionamento relevante veio com o julgamento de sete ADIs interpostas em face da Medida Provisória nº 966/2020, que trata sobre a responsabilização dos agentes públicos durante a pandemia. O STF deferiu parcialmente a cautelar para:

a) conferir interpretação conforme à Constituição ao art. 2º da MP 966/2020, no sentido de estabelecer que, na caracterização de erro grosseiro, deve-se levar em consideração a observância, pelas autoridades: (i) de standards, normas e critérios científicos e técnicos, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente conhecidas; bem como (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção; e b) conferir, ainda, interpretação conforme à Constituição ao art. 1º da MP 966/2020, para explicitar que, para os fins de tal dispositivo, a autoridade à qual compete a decisão deve exigir que a opinião técnica trate expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades reconhecidas nacional e internacionalmente; (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção

No mesmo julgamento, foram firmadas as seguintes teses:

1. Configura erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância: (i) de normas e critérios científicos e técnicos; ou (ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção. 2. A autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente: (i) das normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria, tal como estabelecidos por organizações e entidades internacional e nacionalmente reconhecidas; e (ii) da observância dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção, sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos.

O julgado sepulta discussão a respeito da constitucionalidade do artigo 28 da LINDB, segundo o qual “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro”. Há um recado claro para gestores públicos: decisões técnicas devem ser embasadas em critérios técnicos-científicos, não estando à livre disposição do voluntarismo de quem quer que seja. Devem ser amplamente motivadas, inclusive para que seja possível conhecer a racionalidade decisória. Há um outro recado, igualmente claro, para os órgãos de controle: é necessário dialogar com o ponto de vista exteriorizado pelo gestor público competente para as decisões administrativas, não cabendo responsabilização diante de condutas pautadas pela boa fé e de escolhas feitas mediante parâmetros técnicos e jurídicos razoáveis e motivados. Nesse particular, o STF afasta o falso dilema entre admitir o erro de boa fé e incentivar a corrupção (em sentido amplo) e permitir impunidade.

Os julgados são importantes e, sendo honesto, já eram objeto de debate no âmbito do controle externo, notadamente dos Tribunais de Contas. O chamado “sistema tribunais de contas” tem aproveitado o momento singular e também as críticas — muitas vezes exageradas — que tem recebido para discutir as mudanças necessárias para bem servir à sociedade e à proteção do Erário. Entidades representativas ligadas ao sistema aprovaram, por exemplo, Resolução Conjunta com diretrizes e recomendações quanto às medidas que possam ser adotadas pelos tribunais de contas, de modo uniforme e colaborativo com os demais poderes, para minimizar os efeitos internos e externos decorrentes do coronavírus (Covid-19).

Outro exemplo interessante encontra-se consolidado na obra “Contribuição ao sistema tribunais de contas em tempos de coronavírus: pareceres técnicos das comissões especiais”, coordenada pelo Conselho Nacional de Presidentes dos Tribunais de Contas. A obra contempla estudos aprofundados voltados a oferecer mais que soluções, mas sobretudo segurança jurídica ao gestor, em tempos de incerteza e demandas urgentes. Questões relativas às contratações diretas, ao impacto nas economias locais e regionais, redução de receitas, gestão colaborativa e prestação de contas, dentre outras, são analisadas em pareceres técnicos que não se limitam à abordagem jurídica.

O acompanhamento da retomada das aulas na educação infantil e o impacto na educação pública também estão sendo objeto de detida atenção. Nesse tema, o projeto “A educação não pode esperar”, desenvolvido pelo Instituto Rui Barbosa (IRB), em parceria com o Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), é destinado destinada a minimizar os impactos no ensino provocados pelas ações de enfrentamento à pandemia, com a oferta de recomendações e sugestões aos Tribunais de Contas para dar suporte à atuação dos gestores e dos profissionais da educação. Merece também destaque a criação do Gabinete de Articulação para enfrentamento da Pandemia na Educação, tendo o Estado de Rondônia como laboratório inicial. O Gabinete, criado a partir de uma parceria do IRB com o Instituto Articule e com a Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), cria estrutura de governança interinstitucional, funcionando como instância de pactuação para articular todos os agentes que executam, fiscalizam e julgam. A iniciativa busca, de um lado, garantir que a tomada de decisões seja eficaz durante e pós pandemia e seus resultados cheguem rapidamente aos estudantes e, por outro lado, evitar as consequências da ausência de um espaço de diálogo interinstitucional no campo da segurança jurídica.

Outras iniciativas variadas, observadas em vários tribunais, denotam a percepção da importância da atuação colaborativa e informativa, voltada inicialmente à necessidade de contribuir para a qualidade das decisões administrativas nesse período sensível, sem descurar a essencialidade da transparência para que seja possível o controle social. Essa constatação permite ligar, para concluir, os dois temas tratados neste artigo. Acompanhar os diversos processos decisórios, dialogando e respeitando as decisões consistente e tecnicamente motivadas, é o que se espera dos órgãos de controle como um todo. A afirmação não caracteriza intuição ou mesmo exercício de futurologia, mas mero cumprimento do dever constitucional de avaliar a gestão pública, zelando por sua eficiência, eficácia e economicidade.


Trata-se da RESOLUÇÃO CONJUNTA ATRICON/ABRACOM/ AUDICON/ CNPTC/ IRB Nº 1, de 27/03/20. Disponível em http://www.atricon.org.br/normas/resolucao-conjunta-atriconabracom-audicon-cnptc-irb-no-1/

http://cnptc.atricon.org.br/conselho-publica-obra-contribuicao-ao-sistema-tribunais-de-contas-em-tempos-de-coronavirus-pareceres-tecnicos-das-comissoes-especiais-cnptc/

https://irbcontas.org.br/tag/a-educacao-nao-pode-esperar/

O GAEPE/RO é composto pelo Tribunal de Contas do Estado de Rondônia, o Ministério Público de Conta, o Ministério Público Estadual, o Tribunal de Justiça, a Defensoria Pública do Estado, a Secretaria Estadual de Educação de Rondônia, o Conselho Estadual de Educação de Rondônia, a UNDIME-RO e a UNCME-RO.

Fabrício Motta é conselheiro do TCM-GO e professor da Universidade Federal de Goiás (UFG).

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Daniela Lustoza: A invisibilidade das mulheres na pandemia

Estamos vivendo uma pandemia. Para alguns, uma guerra contra um inimigo imperceptível, silencioso e poderoso, que já tirou a vida, até agora, de muitas e muitas pessoas em todo o planeta. Para a presidente da Fiocruz, primeira mulher no cargo em 120 anos de existência da instituição, uma crise sanitária e humanitária e, no Brasil, a situação ainda é agravada por um ambiente de forte desigualdade social [1].

A Covid-19 não pediu licença para modificar a vida das pessoas no mundo inteiro, assim como fez com que as instituições se reinventassem, inclusive as mais tradicionais, que desenvolvem atividades do sistema de Justiça, possibilitando a não interrupção dos serviços públicos do Poder Judiciário, por exemplo, a partir dos mecanismos proporcionados pela tecnologia da informação, com o incremento das atividades profissionais não presenciais.

Nesse cenário, e atenta à nova realidade, no dia 12 de maio a Folha de São Paulo publicou a matéria intitulada “Em casa, procuradores, ministros e advogados conciliam processos com filhos e lives” [2]. Importantes atores foram ouvidos e compartilharam a rotina de trabalho desenhada para ser realizada em casa. O que chama a atenção? O lugar de fala é completamente masculino. Os personagens principais da narrativa são homens e as mulheres são referenciadas como coadjuvantes, mesmo quando dividem o espaço físico de trabalho e desempenham profissão também integrante do sistema de Justiça.

Algo está errado. Apesar de esforços de séculos, a invisibilidade das mulheres ainda é naturalizada por um grande e importante veículo de comunicação, e o papel que lhes é oferecido não é de protagonismo. É certo que não é apenas na mídia que as representações e estereótipos persistem. O fenômeno da invisibilidade naturalizada faz com que as pessoas “não percebam” a reprodução do homem como centro da história, do poder, como medida de todas as coisas, descrito pelo androcentrismo, criando a necessidade de se dizer, e repetir “que o rei está nu”. Ainda está nu, mesmo nos dias de hoje, no século XXI, quando se observa a reprodução de estereótipos que reforçam a internalização do papel do homem no exercício do poder e tomada de decisão, quando a narrativa é vista do ponto de vista masculino.

Em artigo denominado “Mídia e estereótipos: as representações da diversidade social no discurso jornalístico” [3], Denise Mantovani reflete sobre o “discurso hegemônico presente no conteúdo noticioso dos meios de comunicação tradicionais, que tende a reforçar estereótipos de gênero, raça e posições de classe, colaborando, assim para a sustentação de hierarquias e posições socialmente dominantes”. Para Mantovani, é necessário refletir sobre “as dinâmicas da construção discursiva numa perspectiva interseccional e, assim, verificar como determinadas visões de mundo atuam e dão forma para o texto jornalístico”.

Atento ao viés de gênero e comunicação, a Área Prática de Gênero do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento da América Latina e Caribe elaborou o “Manual de Género para Periodistas” [4], indicando orientações, exemplos específicos, mas, principalmente, convidando os profissionais do jornalismo “ao desafio de olhar com diferentes lentes a realidade que nos cerca”, mostrando formas de comunicação que contribuam à igualdade, construindo ativamente, além de informar.

No sistema de Justiça, muitas mulheres estão trabalhando em casa. São advogadas, magistradas, integrantes do Ministério Público, defensoras públicas, advogadas da União, procuradoras, servidoras públicas e a invisibilidade naturalizada em relação ao trabalho feminino merece ser rejeitada.

Adaptar-se ao trabalho em home office, em um momento de pandemia, exige de todos, mas, para muitas mulheres, exige-se o malabarismo próprio de quem ainda é responsável, em regra, pela amplidão das tarefas de cuidado [5]. Além disso, exige demais daquelas que enfrentam a violência doméstica em suas variadas formas, fenômeno multiplicado em tempos de pandemia, pela convivência diária com o próprio algoz, no lugar em que se vive.

 No resumo técnico “Covid 19: um olhar para o gênero. Proteção da saúde e dos direitos sexuais reprodutivos e promoção da igualdade de gênero” [6], elaborado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA), publicado em março de 2020, duas de suas mensagens-chave evidenciam que: 1) “Os surtos de doenças afetam mulheres e homens de maneira diferente, e as pandemias tornam piores as desigualdades existentes para mulheres e meninas e a discriminação de outros grupos em situação de vulnerabilidade, como pessoas com deficiência e pessoas em extrema pobreza. Isso precisa ser considerado, dados os diferentes impactos em torno da detecção e acesso ao tratamento para mulheres e homens”; 2) “Em tempos de crise, como um surto, mulheres e meninas podem estar em maior risco de violência por parceiro íntimo e outras formas de violência doméstica devido ao aumento das tensões na família. Como os sistemas que protegem mulheres e meninas, incluindo estruturas comunitárias, podem enfraquecer ou quebrar, medidas específicas devem ser implementadas para proteger mulheres e meninas do risco de violência por parceiro íntimo com a dinâmica de risco imposta pela Covid-19”.

A crise humanitária e de saúde pública trazida pela Covid-19 precisa de muita solidariedade em seu enfrentamento. Muitos perderam a vida, cidades no mundo ficaram desertas, pessoas perderam seus postos de trabalho, empresas se redescobriram e se redesenharam para continuar funcionando e outras, infelizmente, não sobreviveram ou não se manterão ativas quando tudo melhorar, quando tudo residir no passado.

E, mesmo assim, em um cenário tão difícil e triste, ainda é necessário que se ilumine, com a luz de uma lua inspiradamente cheia, a condição das mulheres, principalmente quando inseridas em uma situação de crise como a da pandemia da Covid-19. Foi o que fez o coletivo UMA União de Mulheres Advogadas e a Rede Feminista de Juristas deFEMde, publicando manifesto de descontentamento em relação à matéria publicada pela Folha de São Paulo, devidamente publicizado pelo veículo jornalístico [7].

Nísia Trindade Lima, presidente da Fiocruz, com a competência de dirigir a instituição em meio a uma pandemia extremamente grave, e que leva em seu nome a lembrança do nome de uma brasileira, potiguar, reconhecida internacionalmente, que lutou pelo avanço das mulheres, Nísia Floresta, nos alerta que as “mulheres são maioria entre trabalhadoras e pesquisadoras, mas minoria nos cargos diretivos”, e assume a responsabilidade quando sentencia “que a minha posição na presidência não sirva só como exemplo, mas como motor de reduzir essa iniquidade”.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) afirmou que se não forem tomadas ações firmes, o coronavírus pode se tornar uma doença endêmica e não desaparecer, sendo muitos os desafios para controlar a doença, mesmo com uma vacina. Temos muito trabalho pela frente e, certamente, a humanidade vencerá a Covid-19, com um legado de aprendizado importante. Mas não é somente esse vírus que precisamos combater. Precisamos, todas e todos, ser agentes de transformação para eliminar de vez o vírus que provoca a invisibilidade das mulheres. Há muito trabalho a ser feito.

 é juíza titular da 11ª Vara do Trabalho de Natal, vice-presidente da Associação dos Magistrados do Trabalho da 21ª Região (Amatra 21), integrante do Conselho Fiscal da Anamatra, membro da Comissão Anamatra Mulheres e doutoranda em Direito Constitucional na Universidade de Fortaleza (Unifor).

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Wellington Santos: Sobre crimes de racismo na internet

Por motivos de economia de caracteres, racismo e injúria racial neste artigo serão tratados como se a mesma coisa fossem. Mesmo reconhecendo que há uma definição distinta para cada um, ambos possuem a mesma natureza e motivação: a ideia de superioridade racial. Dizer que o racismo é uma eterna pedra no sapato da sociedade brasileira seria subestimar a complexidade e extensão de um problema que traz conflitos sociais desde o período colonial. Na verdade, o racismo para nós está mais próximo de um grande elefante vivendo na sala.

Dados e estatísticas nos mostram como ainda estamos longe de uma resolução do problema, mesmo após a promulgação da Constituição Cidadã. Ainda que devidamente reconhecendo que a legislação brasileira, ao longo dos anos, tentou tratar do racismo e da tutela de vidas negras, produzindo leis históricas como a do Ventre Livre (1871), a Lei Áurea (1888), a Lei 7.716/1989 (ou Lei Caó, que definiu os crimes de raça ou cor), assim como também os artigos da própria Constituição que objetivam a promoção da igualdade racial (artigo 3º, IV). Mas ainda há de ser criada uma norma própria para o racismo praticado na internet.

Quando falamos sobre racismo, a ideia principal que vem à mente é a do crime com discurso de ódio, ofensas pessoais e agressões físicas, em que um indivíduo (ou grupo) grita, vocifera e esbraveja diante de um ou mais ofendidos. Ou, por definição legislativa (artigo 140, § 3º, do Código Penal), um indivíduo tem sua dignidade ou decoro ofendidos devido a uma ofensa baseada em sua cor, raça, etnia, religião ou condição física. Independentemente da definição, motivação ou ambiente em que o crime é consumado, a ideia permanente na consciência coletiva é a de que o racismo acontece pessoalmente, com ofensor e ofendido se encarando, frente a frente. Porém, com o advento da tecnologia e sua onisciência em todas as camadas de nossas vidas (em que 79,9% da população brasileira têm acesso à internet [1]), ela se tornou o campo de atuação perfeito para que o crime ocorra. O racismo praticado na internet (e por internet entende-se todo ambiente online onde exista interação entre pessoas, incluindo jogos, fóruns, redes sociais ou blogs) é algo que pode ser testemunhado por qualquer pessoa hoje em dia, quando observamos como a ideia de superioridade racial atravessa barreiras e se consuma em apenas um clique.

Para ilustrar o elefante na sala, somente no ano de 2019 a Safernet Brasil recebeu 8.337 denúncias de racismo na internet [2]. O dado sozinho pode não demonstrar a amplitude e extensão dos crimes de ódio que ocorrem em ambientes virtuais, mas nos dá uma boa ideia do quão presente o racismo é na internet, pois 8.337 denúncias são aproximadamente 23 denúncias por dia, quase uma por hora, o que significa que existem mais crimes de racismo online do que tráfico de pessoas (509 denúncias), intolerância religiosa (1.084 denúncias), maus tratos contra animais (1.142 denúncias) e neonazismo (4.244) somados. E, para pintar de branco este grande elefante, em relação a 2018,os crimes de racismo na internet tiveram um aumento de 37,71% [3].

Ao nos depararmos com esses dados surgem as perguntas preliminares: por que e como esse tipo de crime se propaga em ambientes virtuais? Por que continuamos assistindo a um aumento significativo dessa prática, inclusive após a promulgação do Marco Civil da Internet, em 2014?

Como uma das possíveis causas, temos o fato de que vivemos em uma sociedade em que racistas não se sentem inibidos para cometer seus atos online, tendo em vista que a falsa sensação de liberdade, somada ao medo das vítimas de denunciarem, surge como explicação para que esse comportamento continue sendo visto repetidas vezes na web. Devemos, também, levar em consideração que o racismo não escolhe classe social ou econômica, e que mesmo famosos e pessoas de grande alcance nacional sofrem com este tipo de ofensa.

Como exemplo disso, vimos o caso sofrido pelo ator carioca Bruno Gagliasso, que em 2017 foi forçado a buscar a Justiça para defender sua filha adotiva (nascida no Malawi, país do continente africano), que havia sido vítima de ofensas na internet pela escritora brasileira Day McCarthy [4]. Em vídeo, a escritora ofendeu sua aparência, falando sobre a cor de sua pele e sobre seu cabelo. Na época, a filha do ator tinha apenas quatro anos de idade. Em outro exemplo, vimos a jornalista da Rede Globo de Televisão Maria Julia Coutinho, em 2015, sofrer diversos ataques por meio de comentários na página oficial da emissora no Facebook, em que ridicularizaram a cor de sua pele, seus traços afrodescendentes e seus cabelos, com a ressalva de que, diferentemente do caso de Bruno Gagliasso, as ofensas não vieram de apenas uma pessoa, mas sim de várias [5].

A sensação de que a internet é terra de ninguém e que os atos não terão consequências motivam muitos comportamentos dessa natureza. Como outra possível causa, temos a dificuldade de provar que o crime foi cometido, já que mecanismos modernos (como programas que “escondem” o endereço de IP do computador utilizado) auxiliam na dificuldade de se identificar os perfis agressores. Nos dias de hoje, qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo pode ter em suas mãos as ferramentas necessárias para criar um perfil falso, anônimo ou de difícil detecção. O medo de se expor e a dificuldade de arcar com as custas de um possível processo também são demonstrativos de que a complexidade do problema não deve ser subestimada.

O problema é real, existe e está enraizado nas nossas estruturas sociais. A partir de onde será longe o bastante? Até quando justificaremos as lacunas legislativas que permitem este tipo de crime? Quando incluiremos artigos específicos que tratem de racismo e injúria racial na internet na Lei 12.965/2014?

O que se torna inadmissível é permanecermos inertes. Educar a população acerca de seus direitos (e deveres) na internet é outro ponto passível de discussão pertinente, capaz de diminuir o tamanho do problema. Ensinar em escolas, do ensino básico ao ensino médio, o que é correto e o que é crime em ambientes online (território em que crianças e adolescentes interagem cotidianamente) é questão de humanidade. Quando começarmos a tratar o problema por meio de suas especificidades e admitir que possui natureza própria, o Judiciário conterá formas e procedimentos para combatê-lo. Expandir e fortalecer delegacias especializadas em crimes virtuais também será de grande valia neste combate. 

Tratar do racismo na internet é tema íntimo dos direitos humanos e é dele que nasce a necessidade de estabelecer diretrizes que possam erradicar este tipo de comportamento nas relações interpessoais nos dias de hoje, construindo assim (esperamos, de maneira otimista) um futuro em que o elefante não esteja mais incomodando a passagem de nenhuma pessoa.

 

[1] https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,ibge-35-7-dos-brasileiros-vive-sem-esgoto-mas-79-9-da-populacao-ja-tem-acesso-a-internet,70003077941. Acessado em 12/5/2020, às 15h37.

[2] https://canaltech.com.br/seguranca/brasil-registra-aumento-de-1600-em-denuncias-de-crimes-online-contra-mulheres-132103/. Acessado em 12/5/2020, às 15h38.

[3] [Idem]

[4] http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/11/bruno-gagliasso-denuncia-ofensas-raciais-publicadas-contra-filha-titi.html. Acessado em 12/5/2020, às 15h43.

[5] http://g1.globo.com/pop-arte/noticia/2015/07/maria-julia-coutinho-maju-e-vitima-de-racismo-no-facebook.html?utm_source=blog&utm_campaign=rc_blogpost. Acessado em 12/5/2020, às 15h45.

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Ana Prudente: Sobre as eleições municipais de 2020

Vivemos hoje um momento de um profundo paradoxo: no mundo todo, estamos vivendo um distanciamento social que transformou drasticamente nossa rotina, ao mesmo tempo muitas necessidades humanas estão mais latentes, de maneira pouco vista antes. A mudança de estilo de vida fez com que precisemos mais nos comunicar e nos conectar com pessoas. Um exemplo concreto são os pais que trabalhavam fora e cujos filhos estudavam presencialmente na escola. Neste momento em que estão aprendendo a auxiliar os filhos nas atividades escolares virtuais e lidando com o home office, além dos cuidados com a casa, eles acabam por criar redes de contato para dividir seus dilemas. Muitas vezes, conversa-se até com desconhecidos para encontrar soluções e compartilhar problemas em comum. Conectados, esses pequenos grupos acabam também por debater outras questões sociais conjuntamente.

Há, portanto, uma maior união entre as pessoas que vivem em condições semelhantes, mesmo com o distanciamento, um fenômeno que surgiu por conta da pandemia. Acredito que uma das grandes virtudes humanas é saber colaborar com estranhos, os seres humanos criaram a reciprocidade e carregam um grande senso de cooperação com o próximo. Nossa vida corrida nos distanciou dessa vertente, mas este momento de crise fez com que descobríssemos novamente esse aspecto. A reciprocidade para com aquele que vive uma condição semelhante e o compartilhamento de soluções é cada vez mais urgente agora. Trata-se de ser empático com o próximo, uma qualidade que envolve perceber o seu próximo também como um eu.

Richard Swift, estudioso da economia, diz que sem reciprocidade a sociedade não poderia mais existir. Em momentos adversos como os que estamos enfrentando, o egoísmo não pode mais prevalecer sobre o coletivo. Essa articulação entre as pessoas agora tem também impactado o cenário político brasileiro, já que novos grupos sociais estão florescendo, em busca de soluções ou formulando críticas à sociedade juntos.

Assim, sairá na frente pela disputa política o candidato que melhor conseguir mapear os diversos grupos que vêm surgindo e entender suas necessidades. Aquele que souber dialogar com essas pessoas e criar pautas específicas que atendem às suas demandas. Pautas políticas amplas não serão mais suficientes para as próximas eleições.

Sabemos que a democracia pressupõe que a maior parte possível dos cidadãos seja representada politicamente e que todos possam atuar, dialogando para construção de uma sociedade mais justa e inclusiva. Nesse contexto, o Brasil enfrenta um grande desafio democrático por ser um país extremamente plural, com grandes dimensões continentais, muito populoso e com uma diversidade enorme. Como fazer então para que essa diversidade seja representada e tenha voz?

Nossa estrutura político-partidária conta com muitos partidos que, mesmo similares e com pautas parecidas, têm suas peculiaridades. Ainda assim, até hoje os partidos não deram conta de atender todos os grupos sociais. A crise provocada pela Covid-19 chega num período delicado, de eleições municipais importantíssimas porque são os governos municipais os mais próximos da população, seus feitos, acertos e erros são mais visíveis para ela. Portanto, num ambiente caótico de isolamento social necessário como se darão as próximas eleições, visto que há um grande risco de contágio da população com a votação presencial?  Há dois pontos que estão sendo debatidos: 1) devem ou não acontecer as eleições neste ano?; e 2) a crise de representação política no país.

Já não é de hoje que muitos grupos não se sentem plenamente representados, mesmo dentro de partidos que abrem espaço, de certa maneira, para a diversidade. Há diversos coletivos e redes que não encontram apoio político da forma como gostariam. Alguns exemplos são: o empreendedorismo feminino, cuja rede de mulheres em todas as regiões brasileiras cresce e é cada vez mais forte; grupos com foco na economia criativa, cuja visão da economia e de diversos aspectos sociais é mais moderna ou diferente; educadores embora a educação seja uma pauta reconhecida, ainda são poucas as lideranças políticas que de fato a priorizam ou têm uma relação mais estreita com seus agentes; grupos que defendem a agricultura sustentável ainda que contemos no Brasil com uma forte bancada ruralista, os temas da sustentabilidade são pouco ou quase nada debatidos.

Soma-se a isso a grande crise política provocada pela última eleição presidencial que polarizou nossa sociedade de forma violenta, rachando o país, sem deixar espaços para o diálogo. Ainda que a polarização tenha mascarado essa crise de identidade já existente, fez também com que esses grupos se fortalecessem em busca de soluções não encontradas. Agora, diante da pandemia, esse gap ficou ainda mais evidente, voltando às mesas de debates.

Por isso, quem pensa em se eleger daqui para a frente terá que se aproximar e dialogar com essa diversidade, incorporar e envolver as minorias, trazer essas pessoas para perto. É uma oportunidade para candidatos que buscam ampliar seu eleitorado. E a internet é um ponto comum onde o diálogo eleitoral e o diálogo de grupos mais ou menos organizados – acontece (ou deveria acontecer) de maneira mais atuante.

Muitos desses grupos não representados usam a internet como ponto de encontro. O empreendedorismo feminino, hoje, pode ser uma espécie de grupo político, que se utilizou da internet e das redes sociais para se articular e criar sororidade entre seus diversos coletivos regionais. Uma das justificativas para um possível adiamento das eleições é que os candidatos não poderiam fazer campanhas presenciais, mas já há muito tempo as redes sociais têm sido um espaço de articulação política de candidatos. Portanto, já está mais do que na hora de virtualizar as eleições, com votação online. Se podemos movimentar a economia virtualmente, pedir auxílio emergencial pela internet, se é possível realizar audiências de forma virtual, entre outras tantas atividades, precisamos amadurecer o processo eleitoral online. Essa mudança será inevitável no futuro.

Voltando às novas formações de grupos na sociedade atual, embora haja um pequeno grau de organização entre eles, muitas redes ainda estão pulverizadas, com diversos núcleos regionais e sem uma única liderança forte (há diversos expoentes importantes, mas não uma figura única que os represente). Ainda que bastante articulados, muitos desses coletivos estão em processo de amadurecimento político. Alguns procuram respaldo em partidos políticos já existentes, mas começam a se organizar para se tornar partidos independentes. Muitos, que se consideram apartidários, como os grupos do setor filantrópico, acabam tendo afinidade com algumas ideologias políticas, mesmo não tendo filiação, e assim construindo demandas sociais específicas. Outros grupos, que sustentam pautas suprapartidárias como a questão ambiental, têm a tendência de se tornarem partidos políticos ou a se juntarem a algum partido ou candidato que melhor dê voz às suas demandas.

No entanto, é preciso lembrar que a formação de agremiações políticas no Brasil é bastante complexa e leva em média três anos e meio; envolve também diversas etapas: elaboração de um programa e estatuto com assinaturas de mais de cem fundadores, registro em cartório, publicação do estatuto no Diário Oficial da União, entre outras. Além disso, a criação de um partido político no país exige uma grande articulação nacional e para redes e grupos locais pulverizados esse movimento é quase impossível.

A formação de um grande partido de mulheres empreendedoras, por exemplo, seria, portanto, fruto de uma união de várias redes de empreendedoras. Essa atitude precisa de um amadurecimento político que poucos grupos por enquanto possuem, seja por contar com atuação de muitos jovens ou de minorias ainda muito discriminadas e marginalizadas. Mas a existência de organizações políticas oriundas desses grupos é inevitável no futuro: não há um retrocesso nesse ponto, porque a articulação dessas pessoas tende a crescer, cada vez mais. Seu surgimento está atrelado à falta de sensibilidade dos partidos políticos atuais em lidar com a sua própria diversidade e à falta de uma gestão empática para as minorias. No caso das mulheres já inseridas numa sigla, é difícil se desenvolver porque o machismo estrutural está presente e se manifesta na rotina política, assim como para os negros e para os cidadãos LGBT, que enfrentam muitos preconceitos. É preciso que se incluam representantes desses coletivos na cena política.

Assim, com ou sem eleição, o cenário político, daqui para frente, sofrerá muito mais pressão por parte dessas novas organizações sociais que estão sendo mais fortemente impactadas pela pandemia ou que têm novos olhares para a construção de um estado de bem-estar social. Há uma conexão muito maior entre essas redes e um contexto muito favorável para se criar uma unidade e uma formação mais sólida como voz social.

Por isso, acredito que nesse momento é precoce falar de adiamento de eleições. Estamos num momento de instabilidade nunca vista antes. O caos social é tanto que não sabemos como estaremos daqui a uma semana. Recentemente, vimos que em algumas localidades, como Blumenau (SC), houve o afrouxamento da quarentena e, por consequência, um novo pico da doença na região — próxima a triplicar os casos da Covid-19 depois da reabertura do comércio. Como as eleições em nosso país ainda significam deslocamento e aglomeração, essa discussão deve ser adiada para que nosso foco seja a preservação de vidas. Nesse momento, seria mais produtivo pensar no uso do fundo eleitoral, pauta que deveria ser prioridade para veículos de comunicação e para os próprios partidos. É hora de se debater como e porque usá-lo, deve-se ter cautela nas decisões em relação às eleições para priorizar a saúde de todos cidadãos, incluindo líderes políticos e figuras públicas.

Ana Beatriz Prudente é gestora de Economia Criativa, educadora de mulheres empreendedoras, membro da Comissão Permanente de Combate à Covid-19 da Faculdade de Educação da USP e da Comissão de Cooperação Internacional da FEUSP e multiplicadora de Sustentabilidade Ambiental.

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Faccini Neto: A pandemia e o Direito Penal

1. Estamos vivendo um tempo completamente inusitado. Há, em curso, uma pandemia e praticamente todos nós estamos experimentando um período de reclusão difícil. Os sentimentos se apresentam de uma maneira completamente distinta daquela que normalmente acontece, na medida em que estamos oprimidos por uma realidade que nunca vivenciamos. Somam-se ao medo, o tédio, a angústia, na medida em que a nossa própria liberdade de trânsito é, com amplas justificativas, comprimida.

Numa situação complexa como essa, é importante discutir algumas questões jurídicas, mormente no campo do Direito Penal. Isto porque há alguns tipos penais que sobressaem, que tem sua incidência, por assim dizer, mais pertinentes a esse momento, e, além disso, há corolários em termos de dogmática, ou de teoria do Direito Penal, que se revelam importantes. De maneira que a ideia deste texto é tratar das figuras típicas correlacionadas com esse momento.

2. De início, porém, realizarei uma abordagem geral, e, depois, pretenderei ir especificando os termos dessa discussão, para, finalmente, ingressar na temática mais particular dos tipos penais que se poderiam revelar numa situação de pandemia.

A primeira vertente dessa abordagem mais ampliada revela o seguinte: que neste período de pandemia, pelo menos três categorias do Direito Penal, muitas vezes rechaçadas por alguma doutrina, adquirem novo significado e mostram a importância que têm.

A primeira delas alude à temática dos bens jurídicos coletivos.

Sabemos que a trajetória da teoria do bem jurídico começa no século 19, com a perspectiva de que o bem jurídico haveria de ser considerado em termos de lesões aos interesses das pessoas. Isto tinha uma dimensão importante, já era uma espécie de densificação teórica do conceito, mas não respondia, sobretudo, a um questionamento pertinente àquela época, e que dizia respeito aos crimes contra os sentimentos religiosos. Muito em função disso, a evolução da ideia de bem jurídico passou a abarcar as lesões coletivas e, até o presente, vimos assistindo a uma espécie de reforço muito consistente na temática da criminalização de condutas que afrontem interesses não individualizáveis. Os exemplos são vários, como o meio ambiente, o sistema financeiro, o patrimônio público, para ficar apenas nisso.

Quando se vive um período como este, de pandemia, aqueles que são críticos à criminalização de condutas que violam interesses coletivos têm o ônus de explicar de que maneira se poderia cuidar desse tipo de situação. Há autores muito relevantes que defendem a ideia de que o Direito Penal deveria seguir aferrado ao seu chamado padrão clássico, ou seja, aquele Direito Penal cuja tutela estivesse concentrada na propriedade, no patrimônio, e, consequentemente, que aludisse exclusivamente à proteção dos interesses individuais. Se essa é uma visão aparentemente elitista, na medida em que retira do Direito Penal exatamente aquelas condutas praticadas pelas classes sociais mais abastadas, e relega o Direito Penal unicamente para que tenha sua incidência naqueles casos de delitos praticados pelas pessoas mais pobres, além disso, a verdade é que, quando se fala de proteção da saúde pública, ou seja, da incidência criminal na proteção deste interesse coletivo, máxime em tempos de pandemia, efetivamente estamos a reconhecer a importância dessa categoria, qual seja, a dos bens jurídicos coletivos.

De maneira que quem recusa a ideia dos bens jurídicos coletivos acaba deixando a saúde pública e, consequentemente, os interesses mais expressivos das pessoas, desprotegidos numa situação como essa.

A segunda categoria que é resgatada, neste momento de pandemia, é a dos chamados crimes de perigo. Tais crimes, como cediço, são alvo de diversos ataques doutrinários, no sentido da sua ilegitimidade, porquanto o Direito Penal haveria de incidir somente quando houvesse dano, ou seja, resultado lesivo ao bem jurídico. A questão, entretanto, é que vivemos numa época em que a dimensão do risco, ou seja, da probabilidade de dano, é significativamente importante, e, muitas vezes, evitável. Atualmente, é possível prevermos situações que, em ocorrendo, terão uma gravidade brutal, de consequências tremendas. Quando isso sucede, é natural que se antecipe a tutela penal, de modo que, antes mesmo de que a lesão ocorra, e com o desiderato de inibi-la, o Direito Penal já atua para tutelar e proteger o bem jurídico.

A terceira categoria que se afigura importante neste quadro é a das chamadas normas penais em branco. Não é necessário ingressar em sua classificação, que alguma doutrina realiza, sobre serem as normas penais em branco lato sensu ou stricto sensu. A nomenclatura não se revela importante, pois o certo é que as normas penais em branco, que são aquelas cujo conteúdo carece de complemento e, sobretudo, cujo conteúdo carece de um complemento não legislativo, mormente em termos de atos administrativos, afeiçoam-se com o princípio da legalidade, visto que o conteúdo da proibição já vem expresso pela lei. Sucede que determinadas situações carecem de uma espécie de velocidade normativa que o parlamento não é capaz de dar, seja no sentido do preenchimento do conteúdo, seja no sentido de alterações que, eventualmente, se afigurem necessárias. Quer dizer, os atos normativos expedidos pelo Poder Executivo, por seus diversos órgãos, como o Ministério da Saúde, têm a possibilidade de regular muito mais adequadamente os meios de combate e os efeitos da pandemia.

Para além disso, embora não seja exatamente um tópico de Direito Penal, parece importante referir que o momento atual também nos faz pensar a respeito do chamado confronto entre o interesse público e o interesse particular. O Direito Constitucional e o Direito Administrativo de outrora consagraram a parêmia cediça da preponderância do interesse público sobre o interesse particular, mas, como se sabe, isso foi sendo alterado ao longo do tempo, principalmente por algumas decisões judiciais. A situação que vivenciamos mostra, contudo, que a Carta Constitucional não é formada somente de direitos, visto que também estabelece deveres. Isso significa que o interesse público, sobretudo em situações dramáticas de crise, fala mais alto do que o interesse particular, e, portanto, devemos nos submeter às variadas determinações que, no fim das contas, têm muito menos um sentido paternalista, de proteger o indivíduo de si próprio, e mais de proteger a coletividade. Noutras palavras, isso quer dizer que quando somos tolhidos da possibilidade de sair às ruas do modo como fazíamos há alguns meses, isto não é, exclusivamente, para garantir que não nos contaminemos, mas, sim, para evitar que nos tornemos um vetor de contaminação de outras pessoas, em especial daquelas pessoas mais frágeis e situadas em grupos de risco. Ou seja, busca-se evitar que nos tornemos uma “fonte de perigo”, uma espécie de bomba relógio, e que vai levar o vírus e as suas consequências a uma infinidade de outros indivíduos.

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 é juiz de Direito, doutor em Ciências Jurídico-Criminais pela Universidade de Lisboa, mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e professor no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP), na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e na Escola da Magistratura do Rio Grande do Sul.