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Tainá Junquilho: Prós e contras do contact tracing

Mind the App! Cuidado com o aplicativo! A expressão foi usada por Luciano Floridi [1], professor de Oxford, em referência ao Mind the Gap, ou cuidado com o vão entre o trem e a plataforma, frase utilizada nos metros londrinos para alertar cidadãos. O alerta do autor, todavia, é para os cidadãos estarem atentos com os aplicativos usados durante a pandemia.

As tecnologias têm sido grande aliado no combate à Covid-19. Em recente artigo [2], Vaishya et al., descrevem sete possíveis usos e consequências da inteligência artificial na ajuda à pandemia: 1) Detecção e diagnóstico precoce da infecção; 2) Projeção de número de casos e de mortalidade; 3) Desenvolvimento de medicamentos e vacina; 4) Redução da carga horária dos profissionais da saúde com a utilização, por exemplo, de robôs para limpeza e esterilização de quartos de hospital; 5) Análise preditiva; 6) Monitoramento do tratamento; e 7) Rastreamento de contato dos indivíduos.

Essa última consiste no que se tem chamado de contact tracing, a qual vinha sendo utilizada para prevenção e controle de epidemias, como por exemplo a zika nos Estados Unidos [3]. Entretanto, o rastreamento por contato teve sua utilização fortalecida diante da pandemia da Sars-Covid. Mas, afinal, em que consiste essa tecnologia?

O rastreamento por contato permite o monitoramento de pessoas que estiveram próximas da distância necessária para transmissão de doenças por meio do bluetooth de aparelhos telefônicos. O cidadão baixa o aplicativo e cede seus dados, fornecendo sua geolocalização e informando caso tenha sintomas, ou seja, diagnosticado com a doença. Cria-se um ID que informa a todos com quem o cidadão teve contato de que passou por alguém possivelmente infectado [4].

O monitoramento por contact tracing ocorre, portanto, por meio de adesão voluntária dos usuários. O ID de cada cidadão armazena os IDs dos usuários pelos quais passou durante o período estimado de contágio da doença. Permite-se, assim, que quem esteja infectado avise a todos com quem teve contato de forma automática. Forma-se um perfil individual, cujas informações são inseridas pelo próprio usuário e um perfil interativo que serve para notificar por convergência usuários por proximidade física.

Com os dados obtidos dos usuários é possível desenvolver sistemas que utilizem inteligência artificial para realização de análises preditivas, isso é, avaliação de previsão que identifique conjuntos de indivíduos infectados, possibilidade de futuro desenvolvimento da infecção, locais de provável concentração, reaparecimento da doença e monitoramento [5].

A combinação dessas informações gera a possibilidade de realização de distribuição de probabilidades personalizadas para cada indivíduo. Como explica Dora Kaufman, por meio de aprendizado de máquina é possível realizar análise preditiva que avalie, por exemplo, a  probabilidade de o usuário ser infectado, quando a infecção pode ter ocorrido, e a contagiosidade esperada em diferentes dias após a infecção [6].

Existem atualmente pelo menos 47 aplicativos de contact tracing disponíveis ao redor do mundo. China (Zhang et al., 2020), Austrália, Coreia do Sul e Singapura são exemplos de países que adotaram esse tipo de tecnologia (Morley et al., 2020).  No Canadá desenvolveu-se o aplicativo COVI, que utiliza aprendizado de máquina para realizar análises que pretendem auxiliar a gestão de políticas públicas na saúde (Alsdurf et al., 2020). Além disso, recentemente, Google e Apple anunciaram parceria inédita para desenvolverem aplicativo de rastreamento por contato, que será adotado por alguns países, e a França seguiu com as pesquisas para desenvolver seu próprio aplicativo, denominado StopCovid, recusando a tecnologia norte-americana [7].

A utilização da tecnologia de contact tracing traz vários benefícios. Por meio de seu uso e com base nos dados fornecidos, é possível melhorar a tomada de decisões na esfera da saúde pública e privada, bem como aprimorar as estratégias e investimentos no combate à doença. Além disso, é possível por meio dela, identificar quais cidadãos têm mais ou menos risco de contrair Covid-19, reduzindo a disseminação viral. O aplicativo desenvolvido no Canadá, por exemplo, persegue objetivos como:

Reduzir a propagação da Covid-19 e, assim, reduzir mortalidades associadas à doença e a superlotação do sistema de saúde;

— Informar o governo sobre os dados demográficos e de mortalidade obtidos [8].

Esses benefícios são possíveis graças ao uso de técnicas de aprendizado de máquina que permitem combinação de dados e análises preditivas capazes de melhorar as avaliações epidemiológicas para investimentos e realização de políticas públicas no âmbito coletivo. Além disso, individualmente permite a autogestão da doença, empoderando o cidadão por meio de informação sobre si e a sociedade.

Entretanto, há algumas limitações: por exemplo, a de que para que tal tecnologia seja eficaz pelo menos 60% da população do país deve ter baixado o aplicado e consentido com a obtenção de dados e o fato de que os dados usados deve ser o mais próximo possível das características dos cidadãos e do local que onde se utiliza o aplicativo, sob pena de estar enviesado [9]. Além dessas limitações, existem certos perigos em sua utilização que precisam ser apontados.

O direito à privacidade dos usuários é um dos mais podem ser afetados. Nesse sentido, uma série de garantias devem ser asseguradas pelos desenvolvedores. Ainda que o cidadão consinta com o uso de dados pessoais, encontrando-se essa em situação de vulnerabilidade em virtude da pandemia, vários cuidados devem ser tomados.

Nesse sentido, o aplicativo deve ser acessível a toda coletividade, garantindo-se acessibilidade, o que inclui explicabilidade das funcionalidades, riscos e vulnerabilidades do mesmo (garantias mínimas ao falso negativo e positivo). É necessário assegurar o mínimo de efetividade científica e devem-se utilizar os dados coletados apenas para finalidade específica de combate à doença, além de compartilhar tais dados com a administração pública afim de que gestores possam atuar de forma mais eficiente.

Morley et al. [10] resumem em quatro os princípios mínimos para o rastreamento ético. O aplicativo deve ser: necessário, proporcional, cientificamente válido e com prazo determinado. Portanto, é importante que se utilizem tecnologias que garantam a como não identificação (anonimização) dos usuários, como um perfil com ID (identificação) randômica, que mude constantemente para garantir a privacidade. E é fundamental que os dados obtidos cumpram apenas a finalidade de combate à Covid-19 no período pandêmico. A transparência das empresas e governos desenvolvedores é princípio fundamental que serve para resguardar informação da população quanto aos dados usados, o tempo de manipulação, a finalidade e à organizações que acessam esse tipo de base.

É certo que os desafios impostos pela Covid-19 são globais e por essa razão é fundamental a cooperação mundial entre empresas, sociedades civis e estados nacionais. Como afirmam Luengo-Oroz et al. [11] em relação ao desenvolvimento de soluções que envolvem inteligência artificial, é necessário que haja cooperação global para respostas eficazes à pandemia e que essas iniciativas possibilitem maior troca de dados, códigos e modelos; adaptação dos modelos desenvolvidos aos contextos e prioridades locais; que os aplicativos respeitem os direitos humanos; que haja de fato uma cooperação digital internacional solidária.

O anseio por soluções para o fim da pandemia é grande. Mas isso não pode servir de justificativa para que se abra mão de direitos fundamentais. O perigo da erosão da privacidade e hipervigilância governamental e privada justifica a essencialidade do respeito às balizas éticas como as referidas.

 


[4] Alsdurf, H., et.al.. COVI White Paper – Version, 1.0. 2020, p. 1–63.

[11] Luengo-oroz, M., Pham, K. H., Bullock, J., Kirkpatrick, R., Luccioni, A., Rubel, S., Wachholz, C., Chakchouk, M., Biggs, P., Nguyen, T., Purnat, T., & Mariano, B. (2020). Artificial intelligence cooperation to support the global response to Covid-19. Nature Machine Intelligence. https://www.nature.com/articles/s42256-020-0184-3

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Aumento de lives de advogados na crise preocupa tribunais de ética

Desde que a crise causada pelo novo coronavírus se intensificou, uma série de medidas provisórias, projetos de lei e decretos federais, estaduais e municipais foram editados para conter os impactos da epidemia. 

Quarentena e edição de novas normativas fez crescer o número de transmissões feitas por advogados

Isso, assim como a quarentena imposta em grande parte do Brasil, gerou um grande números de lives no Facebook, Youtube e Instagram, além de webnários, em que advogados explicam as mudanças legislativas e as medidas emergenciais. 

Ocorre que, de março para cá, o aumento no número de transmissões fez com que tribunais de ética e disciplina de diversos estados passassem a alertar sobre o crescimento das reclamações envolvendo profissionais que estão desrespeitando as diretrizes impostas à advocacia. 

Ainda não é possível mensurar o número de casos, porque os processos disciplinares, em sua maioria, são físicos, o que dificulta a elaboração de um levantamento. Especialistas ouvidos pela ConJur, no entanto, afirmam que é perceptível a ocorrência de excessos. 

Diplomas

São três os diplomas que preveem o que o advogado pode fazer e quais as punições para o profissional que ultrapassar a linha do que é considerado tolerável: o Código de Ética e Disciplina da OAB (Resolução 2/15), o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e o Provimento 94/00.

Nos três, é feita uma diferenciação entre a publicidade e a propaganda na advocacia. A primeira é permitida à classe, a segunda, vedada. A distinção é mais claramente feita no Provimento 94. 

Segundo o artigo 1º da normativa, “é permitida a publicidade informativa do advogado e da sociedade de advogados, contanto que se limite a levar ao conhecimento público do advogado em geral, ou da clientela, em particular, dados objetivos e verdadeiros a respeito dos serviços da advocacia que se propõe a prestar, observadas as normas do Código de Ética e Disciplina e as deste provimento”.

O artigo 2º define o que é entendido como publicidade: a identificação pessoal e curricular do advogado ou da sociedade de advogados; o endereço do escritório principal, filiais e os telefones; horários de atendimento, entre outros. 

Os artigo 3º e 4º passam a listar o que não é permitido: utilização de cartões de visita; menção a clientes e demandas sob seu patrocínio; uso de expressões persuasivas, de auto-engrandecimento ou de comparação; divulgação de valores dos serviços e formas de pagamento; oferta de atuação para casos concretos e convocação para postulação de interesse nas vias judiciais ou administrativas.

Em sentido semelhante, o artigo 34, IV do Estatuto da OAB prevê como infração disciplinar “angariar ou captar causas, com ou sem a intervenção de terceiros”. O artigo 5º do Código de Ética, por sua vez, afirma que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”. 

Publicidade x Propaganda

Embora a diferença entre publicidade e propaganda possa parecer clara em um primeiro momento, fato é que elas são definições bastante subjetivas, o que pode confundir os advogados sobre o que pode ou não ser feito.

Segundo Marlon Luiz Garcia Livramento, presidente da subseção da OAB em Jales (SP), se atentar ao que está previsto no artigo 39 do Código de Ética e Disciplina pode poupar os advogados de cometer infrações.

“O artigo é bem claro ao estabelecer que a publicidade é meramente informativa e deve primar pela discrição e sobriedade, assim como ao dizer que o advogado deve evitar a captação de clientela ou mercantilização da profissão”, diz. 

Livramento também dá um exemplo concreto. “Se o advogado abre uma live e explica o que tem de novo em determinada MP, assim como os seus impactos, não há problemas e é uma prática muito bem-vinda. Entretanto, ele não pode, por exemplo, dizer que o escritório em que atua está preparado para lidar com tais e tais questões e que pessoas com determinados problemas podem procurá-lo, pois seu escritório está preparado para ganhar disputas em determinadas causas.” 

Ele admite, no entanto, que é necessário estabelecer mais objetivamente o que configura ou não excessos, já que termos como “publicidade”, “propaganda”, “sobriedade” e “discrição” são bastante subjetivos e podem induzir ao erro. 

“Por via das dúvidas, acho importante reafirmar que está tudo certo com as lives, desde que a classe apenas informe sobre assuntos jurídicos. Eles devem se ater a isso: informar. Ao mesmo tempo, precisam evitar alusões a eles mesmos e a casos em que eles ou demais colegas atuam.”

Punições

O advogado Renato de Mello Almada, sócio do Chiarottino e Nicoletti Advogados e relator da 23º Turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, explica que, caso os advogados ultrapassem a barreira da publicidade e cometam excessos, algumas sanções disciplinares podem ser aplicadas. São elas: advertência, multa, censura, suspensão e exclusão. 

Em 2019, conta, somente em São Paulo 93 advogados foram excluídos dos quadros da OAB e ficaram impedidos de atuar. Além disso, foram registradas 1560 infrações mais leves no estado, como as de censura e suspensão.

“Quase sempre é aplicada a censura. Nesses casos, geralmente pedimos que determinado conteúdo seja retirado das redes sociais e que o advogado não venha mais a repetir certa conduta considerada excessiva”, afirma. 

Ele explica que, quando o advogado não tem nenhuma sanção disciplinar e possui bons antecedentes, as censuras podem ser convertidas em advertência. “Quando é assim, o profissional é comunicado reservadamente e não há registro de sanções nos seus antecedentes, ao contrário da censura, em que esse registro é feito.”

A suspensão, por outro lado, é aplicada quando os profissionais são reincidentes. Nesses casos, ocorre a interdição em todo o território nacional, ficando o advogado impedido de atuar por um prazo que pode ir de 30 dias a 12 meses. 

Por fim, há a sanção mais rígida: a exclusão. “Ela ocorre quando já foram aplicadas três penalidades de suspensão transitadas em julgado. Isso pode acontecer até quando as sanções são referentes a diferentes tipos de infração. Desde que sejam três, o advogado pode ser excluído.”

Provimento defasado

Em setembro de 2019, o Conselho Federal da OAB abriu uma consulta para ouvir a advocacia a respeito das regras de publicidade. O objetivo é atualizar as normas, já que o provimento 94/00 foi criado quando a internet ainda não era tão essencial ao trabalho dos advogados. 

“A ideia surgiu depois que verificamos o número de consultas nos tribunais de ética das seccionais sobre o assunto. Os advogados, principalmente os mais jovens, querem saber, por exemplo, como usar o Instagram”, afirma Ary Raghiant Neto, secretário-geral adjunto da OAB. 

De setembro de 2019 para cá ele fez uma série de reuniões com seccionais de vários estados para pensar em como reformular alguns pontos do provimento. A consulta aberta fez seis perguntas aos advogados:

– É a favor da publicidade/propaganda da advocacia em redes sociais?

– É a favor da flexibilização das regras de publicidade da advocacia?

– É a favor da utilização de plataformas digitais para intermediação e divulgação de serviços profissionais?

– É a favor da divulgação de serviços jurídicos específicos?

– Devem ser regulamentados limites da publicidade da advocacia nas redes sociais (p.ex.: patrocínio de postagens, comentários de casos concretos, etc.)?

Até o começo do mês, 13.327 profissionais já haviam se posicionado sobre o assunto. Mais de 82% deles são favoráveis à publicidade e propaganda da advocacia nas redes sociais. Cerca de 83% disseram que são a favor da flexibilização das regras e 79% disseram querer utilizar plataformas digitais para intermediação e divulgação de serviços. 

Para Neto, os dados mostram que algo deve ser feito para que a publicidade se enquadre dentro da nova realidade. Entretanto, ressalta, a reforma serve para regulamentar normas já existentes e não para criar novas normas.