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Negros são somente 1% dos advogados dos grandes escritórios

Desde o final de maio deste ano, uma série de protestos contra o racismo ganharam força no mundo. O estopim foi a morte de George Floyd, um norte-americano negro assassinado por um policial branco em Minneapolis. 

Para Haderlann, dificuldades dos negros já começa na formação profissional
Reprodução

Dentre as inúmeras denúncias feitas de lá para cá, há uma já bastante conhecida: a quase ausência de negros em cargos considerados elitizados. E se essa é uma verdade em grande parte dos setores, não seria diferente nas bancas de advocacia e na magistratura. 

Um levantamento feito pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert) em 2019 apontou, por exemplo, que os negros representam 1% dos advogados de grandes escritórios.  Na ocasião, a instituição avaliou, em parceria com a Aliança Jurídica pela Equidade Racial, nove bancas de São Paulo. 

Esse dado, se comparado com a porcentagem de negros na sociedade (aproximadamente 55%, de acordo com o IBGE), evidencia um problema: ou os escritórios contratam menos negros ou as disparidades sociais — que afetam a população negra com maior intensidade — acabam fazendo com que grande parte deles fique no meio do caminho.

Haderlann Chaves Cardoso, do Mudrovitsch Advogados, enfatiza o segundo ponto. Para ele, o baixo número de negros nos grandes escritórios tem relação com a desigualdade socioeconômica e com o seu reflexo na formação dos profissionais.

“Há uma série de filtros. Não raramente, a população negra está em condições socioeconômicas menos favorecidas e tem muita dificuldade de acesso às escolas privadas, em que o ensino costuma ser melhor. Isso, por sua vez, acaba impactando na hora de entrar em boas universidades, que muitas vezes são públicas. Apesar do sistema de cotas proporcionar mais acesso às universidades estaduais e federais, muitos negros acabam indo para as faculdades particulares, o que impõe um novo filtro: é preciso pagar e é caro. As que são mais baratas tendem a ter uma qualidade menor, o que impõe mais uma dificuldade: passar no exame da OAB”, diz.

Haderlann, que é negro, estudou a vida inteira em escolas públicas. Ele conta que concluiu a universidade graças a uma bolsa de 50%, obtida por meio do ProUni, programa criado em 2004 pelo Ministério da Educação.

Em 2012, quando estava no terceiro semestre de Direito, conseguiu estágio no escritório em que atua ainda hoje. Em 2015, no nono semestre, obteve aprovação no exame da Ordem. O advogado diz, no entanto, que ele é quase uma exceção. 

“Estudei em uma universidade que está entre as três melhores do Distrito Federal. Às vezes, era o único negro na sala de aula, mesmo tendo cerca de 10 turmas de Direito. Por todas as dificuldades que mencionei, os negros às vezes não chegam sequer a entrar nas universidades, o que impacta no número de advogados, mesmo que autônomos.”

Mercado

A advogada Angela Borges Kimbangu não ignora os impactos da desigualdade socioeconômica. No entanto, segundo ela, o mercado jurídico incorpora, sim, um número menor de negros.

Da esquerda para a direita, as advogadas Carmen Felippe, Giovana Mariano, Angela Borges Kimbangu e Maria Ferreira
Reprodução

“Eu comecei a conversar com as mulheres pretas — com os homens também — e percebi que todas elas passavam por grandes peneiras mas não eram contratadas. Quando você é preto no mundo e vira advogado, é como se parte da sociedade não quisesse que você estivesse em um lugar que sempre foi majoritariamente branco”, afirma. 

Pensando nisso, Angela se uniu a outras quatro colegas e fundou, no Rio de Janeiro, o Borges & Mariano Advogadas Associadas. Além dela, a banca foi concebida pelas advogadas Andrea NascimentoCarmen Felippe, Giovana Mariano e Maria Ferreira.  Em funcionamento desde o começo de 2019, o escritório atua em diversas áreas do Direito, como cível, empresarial e Direito de Família. 

“Por causa dessa dificuldade no mercado jurídico e pelo fato da gente ver que pretos não têm espaço nos grandes escritórios, cheguei à conclusão de que a gente tinha que criar o nosso. E está dando muito certo”, afirma. 

Sobre a atuação em uma área elitizada, conta que por vezes as pessoas não acreditam que ela é advogada. “Já me perguntaram até se eu sou advogada de verdade. Essa estrutura às vezes impede que olhem para mim e vejam que eu sou uma profissional e que posso fazer advocacia de qualidade como qualquer outra pessoa.”

Incluir Direito

Buscando ampliar a inclusão de estudantes negros em escritórios de advocacia, a Comissão de Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, o Centro de Estudos das Sociedades de Advogados (Cesa), juntamente com a Fundação Arcadas, criaram o projeto Incluir Direito

A iniciativa permite a capacitação orientada de estudantes do terceiro ao oitavo semestre e o aprimoramento dos departamentos de recursos humanos dos escritórios filiados ao Cesa para promover a inserção dos beneficiados pelo programa.

Um advogado apontado pelo centro de estudos fica responsável pelo acompanhamento do estudante durante sua permanência no projeto, explica Carlos José Santos da Silva, presidente nacional do Cesa. 

“Dessa forma, será possível potencializar e direcionar as experiências, bem como aumentar a chance de sucesso desses alunos nas seleções dos escritórios envolvidos”, afirmou em março deste ano, quando o projeto foi anunciado.

A formação ocorre ao longo de um semestre, onde também são oferecidos cursos de idiomas aos participantes. Em contrapartida, eles devem assumir o compromisso de participar de ao menos três processos seletivos dos escritórios parceiros. 

Inicialmente o Incluir Direito beneficia um máximo de dez alunos. “Nas edições subsequente o número de beneficiários poderá aumentar”, diz o professor Flávio Batista, um dos responsáveis pela iniciativa na FDUSP.

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Hospital deve permitir acompanhante em partos durante epidemia

Direito da mulher

Hospital deve permitir acompanhante em todos os partos durante epidemia

Por 

A Lei 13.079/20, em seu artigo 3º, § 2º, inciso III, dispõe que a disciplina para os cuidados com a Covid-19 não deve se afastar dos postulados da dignidade da pessoa humana. Com esse entendimento, o juiz Bruno Machado Miano, da Vara da Fazenda Pública de Mogi das Cruzes (SP), obrigou a Santa Casa de Misericórdia a garantir a todas as gestantes o direito a um acompanhante antes, durante e depois do parto.

ReproduçãoHospital deve permitir acompanhante em todos os partos durante epidemia

O descumprimento da decisão ensejará multa de R$ 2 mil por recusa injustificada. A liminar foi concedida em ação civil coletiva impetrada pela Defensoria Pública, que alegou que o hospital restringiu a presença de acompanhantes nos partos em razão da epidemia da Covid-19. Para o juiz, a Santa Casa não pode inviabilizar o direito da mulher.

“A Lei 13.079/20 [que dispõe sobre as medidas para enfrentamento à Covid-19], podendo, não suspendeu a eficácia da Lei 11.108/05, que alterou a Lei do SUS (Lei 8080/90), ao estabelecer o direito ao acompanhante antes, durante e depois do parto”, afirmou. O magistrado destacou que o acompanhante continua garantido, desde que se submeta aos procedimentos da nota técnica da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, referente às medidas de prevenção para os partos durante a epidemia.

Entre as precauções, está a de que o acompanhante deve ser assintomático e não integrar o grupo de risco para a Covid-19. “Após o parto, somente em condições específicas (instabilidade clínica da mulher ou condições específicas do recém-nascido)”, concluiu Miano. Cabe recurso da decisão.

1006473-71.2020.8.26.0361

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 é repórter da revista Consultor Jurídico

Revista Consultor Jurídico, 4 de junho de 2020, 17h28

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Aumento de lives de advogados na crise preocupa tribunais de ética

Desde que a crise causada pelo novo coronavírus se intensificou, uma série de medidas provisórias, projetos de lei e decretos federais, estaduais e municipais foram editados para conter os impactos da epidemia. 

Quarentena e edição de novas normativas fez crescer o número de transmissões feitas por advogados

Isso, assim como a quarentena imposta em grande parte do Brasil, gerou um grande números de lives no Facebook, Youtube e Instagram, além de webnários, em que advogados explicam as mudanças legislativas e as medidas emergenciais. 

Ocorre que, de março para cá, o aumento no número de transmissões fez com que tribunais de ética e disciplina de diversos estados passassem a alertar sobre o crescimento das reclamações envolvendo profissionais que estão desrespeitando as diretrizes impostas à advocacia. 

Ainda não é possível mensurar o número de casos, porque os processos disciplinares, em sua maioria, são físicos, o que dificulta a elaboração de um levantamento. Especialistas ouvidos pela ConJur, no entanto, afirmam que é perceptível a ocorrência de excessos. 

Diplomas

São três os diplomas que preveem o que o advogado pode fazer e quais as punições para o profissional que ultrapassar a linha do que é considerado tolerável: o Código de Ética e Disciplina da OAB (Resolução 2/15), o Estatuto da Advocacia (Lei 8.906/94) e o Provimento 94/00.

Nos três, é feita uma diferenciação entre a publicidade e a propaganda na advocacia. A primeira é permitida à classe, a segunda, vedada. A distinção é mais claramente feita no Provimento 94. 

Segundo o artigo 1º da normativa, “é permitida a publicidade informativa do advogado e da sociedade de advogados, contanto que se limite a levar ao conhecimento público do advogado em geral, ou da clientela, em particular, dados objetivos e verdadeiros a respeito dos serviços da advocacia que se propõe a prestar, observadas as normas do Código de Ética e Disciplina e as deste provimento”.

O artigo 2º define o que é entendido como publicidade: a identificação pessoal e curricular do advogado ou da sociedade de advogados; o endereço do escritório principal, filiais e os telefones; horários de atendimento, entre outros. 

Os artigo 3º e 4º passam a listar o que não é permitido: utilização de cartões de visita; menção a clientes e demandas sob seu patrocínio; uso de expressões persuasivas, de auto-engrandecimento ou de comparação; divulgação de valores dos serviços e formas de pagamento; oferta de atuação para casos concretos e convocação para postulação de interesse nas vias judiciais ou administrativas.

Em sentido semelhante, o artigo 34, IV do Estatuto da OAB prevê como infração disciplinar “angariar ou captar causas, com ou sem a intervenção de terceiros”. O artigo 5º do Código de Ética, por sua vez, afirma que “o exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização”. 

Publicidade x Propaganda

Embora a diferença entre publicidade e propaganda possa parecer clara em um primeiro momento, fato é que elas são definições bastante subjetivas, o que pode confundir os advogados sobre o que pode ou não ser feito.

Segundo Marlon Luiz Garcia Livramento, presidente da subseção da OAB em Jales (SP), se atentar ao que está previsto no artigo 39 do Código de Ética e Disciplina pode poupar os advogados de cometer infrações.

“O artigo é bem claro ao estabelecer que a publicidade é meramente informativa e deve primar pela discrição e sobriedade, assim como ao dizer que o advogado deve evitar a captação de clientela ou mercantilização da profissão”, diz. 

Livramento também dá um exemplo concreto. “Se o advogado abre uma live e explica o que tem de novo em determinada MP, assim como os seus impactos, não há problemas e é uma prática muito bem-vinda. Entretanto, ele não pode, por exemplo, dizer que o escritório em que atua está preparado para lidar com tais e tais questões e que pessoas com determinados problemas podem procurá-lo, pois seu escritório está preparado para ganhar disputas em determinadas causas.” 

Ele admite, no entanto, que é necessário estabelecer mais objetivamente o que configura ou não excessos, já que termos como “publicidade”, “propaganda”, “sobriedade” e “discrição” são bastante subjetivos e podem induzir ao erro. 

“Por via das dúvidas, acho importante reafirmar que está tudo certo com as lives, desde que a classe apenas informe sobre assuntos jurídicos. Eles devem se ater a isso: informar. Ao mesmo tempo, precisam evitar alusões a eles mesmos e a casos em que eles ou demais colegas atuam.”

Punições

O advogado Renato de Mello Almada, sócio do Chiarottino e Nicoletti Advogados e relator da 23º Turma Disciplinar do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP, explica que, caso os advogados ultrapassem a barreira da publicidade e cometam excessos, algumas sanções disciplinares podem ser aplicadas. São elas: advertência, multa, censura, suspensão e exclusão. 

Em 2019, conta, somente em São Paulo 93 advogados foram excluídos dos quadros da OAB e ficaram impedidos de atuar. Além disso, foram registradas 1560 infrações mais leves no estado, como as de censura e suspensão.

“Quase sempre é aplicada a censura. Nesses casos, geralmente pedimos que determinado conteúdo seja retirado das redes sociais e que o advogado não venha mais a repetir certa conduta considerada excessiva”, afirma. 

Ele explica que, quando o advogado não tem nenhuma sanção disciplinar e possui bons antecedentes, as censuras podem ser convertidas em advertência. “Quando é assim, o profissional é comunicado reservadamente e não há registro de sanções nos seus antecedentes, ao contrário da censura, em que esse registro é feito.”

A suspensão, por outro lado, é aplicada quando os profissionais são reincidentes. Nesses casos, ocorre a interdição em todo o território nacional, ficando o advogado impedido de atuar por um prazo que pode ir de 30 dias a 12 meses. 

Por fim, há a sanção mais rígida: a exclusão. “Ela ocorre quando já foram aplicadas três penalidades de suspensão transitadas em julgado. Isso pode acontecer até quando as sanções são referentes a diferentes tipos de infração. Desde que sejam três, o advogado pode ser excluído.”

Provimento defasado

Em setembro de 2019, o Conselho Federal da OAB abriu uma consulta para ouvir a advocacia a respeito das regras de publicidade. O objetivo é atualizar as normas, já que o provimento 94/00 foi criado quando a internet ainda não era tão essencial ao trabalho dos advogados. 

“A ideia surgiu depois que verificamos o número de consultas nos tribunais de ética das seccionais sobre o assunto. Os advogados, principalmente os mais jovens, querem saber, por exemplo, como usar o Instagram”, afirma Ary Raghiant Neto, secretário-geral adjunto da OAB. 

De setembro de 2019 para cá ele fez uma série de reuniões com seccionais de vários estados para pensar em como reformular alguns pontos do provimento. A consulta aberta fez seis perguntas aos advogados:

– É a favor da publicidade/propaganda da advocacia em redes sociais?

– É a favor da flexibilização das regras de publicidade da advocacia?

– É a favor da utilização de plataformas digitais para intermediação e divulgação de serviços profissionais?

– É a favor da divulgação de serviços jurídicos específicos?

– Devem ser regulamentados limites da publicidade da advocacia nas redes sociais (p.ex.: patrocínio de postagens, comentários de casos concretos, etc.)?

Até o começo do mês, 13.327 profissionais já haviam se posicionado sobre o assunto. Mais de 82% deles são favoráveis à publicidade e propaganda da advocacia nas redes sociais. Cerca de 83% disseram que são a favor da flexibilização das regras e 79% disseram querer utilizar plataformas digitais para intermediação e divulgação de serviços. 

Para Neto, os dados mostram que algo deve ser feito para que a publicidade se enquadre dentro da nova realidade. Entretanto, ressalta, a reforma serve para regulamentar normas já existentes e não para criar novas normas. 

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O debate Hart-Fuller: discussão sobre veículos no parque público

Em 1957, a Harvard Law School recebeu a visita de um dos mais renomados juristas da época, o Professor H. L. A. Hart, para ministrar palestra e expor a sua teoria positivista do Direito. Hart havia sido convidado por ninguém menos que Lon Fuller, à época, Catedrático de Jurisprudência da casa, quem esteve presente ao longo de toda sua exposição. Conta-se a história de que, durante a fala de Hart, Fuller, conhecido por seus estudos acerca da moralidade do Direito e por afirmar um posicionamento antipositivista, “ia de lá para cá no fundo da sala como um leão faminto”[1], angustiado com as conclusões que ali estavam sendo concebidas, pedindo, ao final, o direito a sua réplica.

O direito foi concedido, oportunizando, naquele momento, um dos debates mais importantes e mais ricos para a Teoria do Direito, rendendo, no ano seguinte, a publicação de dois artigos na Harvard Law Review: um de Hart, sustentando seus argumentos, e um de Fuller, contrapondo-os, agora de forma escrita.

Mas com o que, afinal, Fuller angustiava-se? É preciso esclarecer o contexto em que se deu a discussão. À época, havia uma grande questão, de natureza dupla, acerca do Direito na Alemanha Nazista: (1) se ele, conforme estabelecido, poderia ser considerado um sistema efetivamente jurídico e (2), a posteriori, como um sistema jurídico pós-Nazismo deveria responder aos atos institucionais autorizados pelo Reich, que eram revestidos de imoralidade.

Após a Segunda Guerra Mundial, os Tribunais alemães viram-se obrigados a julgar alguns casos de crimes de guerra, de espiões e informantes do regime nazi. As pessoas acusadas destes crimes defenderam-se no entendimento de que suas ações não foram ilegais, pois estavam conforme a legalidade do regime dominante naquele momento. Ou seja, tais agentes apenas cumpriram ordens de uma autoridade hierarquicamente superior. Esse argumento foi contraposto a partir da ideia de que tais leis deveriam ser consideradas inválidas, isto por serem contrárias a princípios fundamentais da moralidade. É o caso, por exemplo, de uma mulher que, em 1944, na tentativa de se separar do marido, à época, membro do exército alemão, denunciou às autoridades algumas manifestações injuriosas sobre Hitler que ele havia feito enquanto estava de licença em sua casa, violando as leis que protegiam o Terceiro Reich de afirmações prejudiciais ao governo. Após a queda do regime, a mulher fora acusada do crime de privar uma pessoa de sua liberdade (positivado na Alemanha desde 1871) e defendeu-se sob o argumento de que estava amparada pelas leis anteriores. A questão que se criou, portanto, é a seguinte: a legislação que amparou a conduta da esposa, por ser era contrária a princípios de moralidade, deveria ser considerada inválida?

Positivism and the Separation of Law and Morals, de Herbert Hart
Apesar de Hart iniciar a discussão analisando as teorias de Austin e Bentham, nosso foco não será nesta parte do artigo, tendo em vista que seu propósito foi única e exclusivamente aprofundar tais teorias para adentrar no fio condutor da argumentação acerca da separação entre ser/dever ser. Segundo Hart, há dois problemas que se seguem a partir de uma filosofia que não faz a devida diferenciação conceitual entre as esferas do Direito e da moralidade, que já haviam sido diagnosticados pelos autores utilitaristas referidos acima: a derivação de um dever-ser, ought, de um ser, is; dito de outro modo, a derivação de uma premissa normativa de premissas descritivas. Isso geraria dois tipos de problemas: o primeiro deles é o fato de que, ao permitir a aproximação do sistema jurídico com a moralidade, o intérprete estaria legitimado a desobedecer ao que fora previamente positivado, por acreditar que tal positivação devesse ser diferente. Ou seja, permitiria uma consequente dissolução do Direito e de sua fidelidade nas concepções humanas do que ele deve ser. O segundo deles seria inversamente proporcional, no sentido de dizer que o Direito já é aquilo que ele deveria ser, ultrapassando qualquer crítica reformadora.

Para confrontar as respostas dos realistas americanos, Hart traz à tona uma questão importantíssima, que, futuramente, serviu de guia para o seu raciocínio argumentativo. Ao considerar, por exemplo, uma regra que proíbe veículos nos parques públicos, de pronto compreende-se pela proibição de automóveis. Há, nesse sentido, um núcleo de significação padrão, compreensível a qualquer um, em relação ao termo “veículos”. No entanto, segundo Hart, existem determinados casos concretos que elevam a norma a um nível de indeterminação: “mas o que dizer das bicicletas, skates, automóveis de brinquedo? O que dizer sobre aviões? Estes, como dizemos, devem ser chamados de ‘veículos’ para os fins da regra ou não?”[2]. Tais indeterminações são chamadas por ele de “problemas de penumbra”, impossibilitando a aplicação da regra de forma imediata. Nesse contexto,, em razão da insuficiência do sentido literal do termo, no momento da aplicação prática da regra ao caso em zona de penumbra, alguém deverá assumir a responsabilidade de decidir qual o alcance das palavras, o que elas abrangem e o que deixam de abranger.  Esse alguém, portanto, trata-se do julgador, quem possui a legitimidade para a interpretação.

Seguindo seu raciocínio, Hart conclui a seguinte questão: nos casos em que não exista controvérsia sobre a aplicação da norma, ou seja, em que o problema de penumbra não se faz presente, o intérprete simplesmente descreverá o Direito, aplicando a norma tal como ela está posta. A norma, portanto, apenas é, sem interferências externas, como política, moralidade ou economia. Em contrapartida, quando houver indeterminação em relação à aplicação do sentido literal a algum caso concreto extraordinário, é preciso ir além. O intérprete deverá escolher uma das várias possibilidade daquilo que o Direito deve ser[3], em consonância com a sua concepção, que pode ser tanto política quanto econômica ou moral. Aceita-se, nesse contexto, um poder discricionário que se assemelha ao poder do legislador, capaz de promover a criação da regra. Há, por parte do julgador, um exercício interpretativo criativo. E — apenas — então, aceita-se a interferência de aspectos de moralidade no Direito.

 

Obviamente, Hart identificou o problema da interpretação meramente literal dos textos jurídicos[4], oferecendo como resposta a interpretação criativa do julgador, afirmando a dicotomia existente entre o Direito como ele é e o Direito como ele deve ser (evidenciando a diferenciação juspositivista entre fato e valor). No entanto, é importante ressaltar que tal discricionariedade, conforme os termos elencados por Hart, não significa necessariamente uma junção entre ser/dever ser, ou seja, entre Direito e moral. Obviamente, também é necessária a consideração dos fins, das políticas sociais e dos propósitos utilizados pelos juízes, mas estes devem ser considerados em si mesmos como parte do sistema jurídico. Isso não significa que o termo dever ser seja um produto de intersecção daquilo que o Direito é, mas, sim, que a distinção é feita entre aquilo que o Direito é e as variadas e diferentes concepções daquilo que ele deve ser. Ou seja, refere-se a um standard de análise crítica, rejeitando-se, ainda, que haja uma conexão necessária.

E qual a relação disso tudo com os julgamentos do Tribunal de Nuremberg? Bem, afirmar uma separação entre Direito e moralidade, leia-se, entre o fato e o valor, significa, também, afirmar que o Direito é independente de concepções morais acerca de como ele deve ser. Nesse sentido, após o contexto nazista, a comunidade jurídica da época visualizou a necessidade de se juntar aquilo que os utilitaristas haviam separado. No entanto, Hart descarta que essa possibilidade seja essencial para que os julgamentos tomem um rumo racional. O efeito de uma desobediência aos critérios estipulados pelo Direito, ainda que tais critérios sejam considerados imorais ou injustos, poderiam ensejar o enfraquecimento da própria autoridade do sistema jurídico. Por isso, em que pese tais atos sejam extremamente repreensíveis, estavam dentro da legalidade, ou melhor, dentro da juridicidade, e, sendo assim, Hart compreende que as suas punições apenas poderiam ser feitas por meio de legislação retrospectiva[5]. O contrário seria confundir o Direito como ele é daquilo que ele deveria ser, com todos os problemas que isso pode acarretar.

Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart – Lon Fuller
Será mesmo que uma concepção baseada na relação necessária entre as instâncias do Direito e da moralidade acarretaria tantos problemas assim? Fuller fornece respostas diferentes para a questão, objetando os pressupostos filosóficos da teoria de Hart.

Sua leitura sobre as análises de Hart concluem que há uma confissão positivista de que os fins perversos poderiam ter tanta coerência e lógica interna como os fins não perversos. Fuller se recusa a aceitar tal presunção. Sua crença, embora – assumidamente – “ingênua”, é de que a coerência e a bondade possuem maior afinidade entre si do que a coerência e a maldade. É em razão disso que, quando os indivíduos veem-se obrigados a explicar e justificar suas decisões, geralmente, direcionam-as em uma argumentação que se relacione com a bondade, qualquer que seja o standard de uma boa moralidade. Nesse contexto, se é verdade que o Direito é um dos refúgios mais seguros, não seria assim pelo fato de que, inclusive nos regimes mais corruptos, há uma hesitação em legalizar crueldades, intolerâncias e atos desumanos? E, não é claro que essa hesitação deriva não da separação entre Direito e moral, mas, precisamente, de uma identificação do Direito com as demandas mais urgentes de moralidade?[6]

Fuller, então, contradiz a tese positivista da separabilidade, pois haveria uma finalidade inerente ao Direito e uma consequente conexão deste com a Moral. Para que uma legislação seja efetiva, deve ser aceita, ao menos provisoriamente, não somente como Direito mas também como um bom Direito. Em outras palavras, o filósofo americano compreende que, para que uma legislação tenha condições mínimas de cumprimento, suas disposições devem, por consequência, serem simples e fáceis de entender, não somente em virtude de sua linguagem mas também em razão de seu propósito.

O que ele pretende demonstrar é que, para que seja possível chamar um sistema jurídico de Direito (e tratá-lo como tal), deve haver, necessariamente, uma administração mínima que observe princípios de moralidade procedimentais (posteriormente, em sua obra The Morality of Law[7], Fuller os desenvolve com maior profundidade). Tais princípios de moralidade observam, basicamente, questões como a publicidade, a clareza, a não contradição, a prospectividade e a consistência das regras, considerando que, nos sistemas que não lhes conferem o devido respeito, verifica-se a impossibilidade de serem considerados como sistemas jurídicos. O Direito, nesse sentido, sendo uma ordem, contém sua própria moralidade implícita, que é condição de possibilidade para a sua própria existência. Nas palavras de Fuller, trata-se da moralidade que torna o Direito possível; um sistema jurídico que não observa essas demandas não é apenas um sistema ruim, mas sequer é um sistema efetivamente jurídico digno do rótulo.

É com essas reflexões que Fuller contesta não apenas a diferenciação feita entre fato/valor, Direito/moral, mas, sobretudo, a conclusão de que o regime nazista não poderá ser considerado direito para os julgamentos do Tribunal de Nuremberg (o que possibilita outro campo de debate, que, por questões de limitação de espaço, não nos debruçaremos). Tais princípios de moralidade interna não foram respeitados pelas autoridades nazistas durante a Segunda Guerra Mundial. Um Direito que é injusto, ou seja, que não observou um princípios mínimos para a sua administração, não é (e não deve ser) considerado Direito. Essa aproximação fulleriana das instâncias do is e do ought é explicada por sua concepção teleológica. Fuller entende que não se pode separar os planos do ser e do dever-ser quando tratamos de empreendimentos que se destinam a um fim. Algo só é, ontologicamente, na medida em que se põe como aquilo que se pretende ser. Sendo o Direito um empreendimento coletivo que tem como objetivo coordenar, guiar e orientar a conduta humana por meio de regras estabelecidas, um sistema jurídico só será Direito quando efetivamente respeitar os princípios mínimos que tornam esse objetivo possível.

Mas a discussão não termina nesse ponto. Fuller contrapõe, também, a resposta que Hart oferece ao problema da interpretação das regras. Segundo ele, há um defeito gritante na suposição hartiana de que os problemas de interpretação aparecem tipicamente em relação aos termos termos individualmente considerados, tendo em vista que o significado não está adstrito apenas a uma palavra, mas sim a uma frase, a um parágrafo ou às demais partes do texto. Fuller descarta que exista um significado nuclear das palavras que se mantenha constante independente do contexto em que apareça. Nesse sentido, por meio do significado de uma frase, de um parágrafo ou, até mesmo, de uma página, é possível extrair o propósito daquele conjunto, que sempre estará lá.

Se a regra que proíbe veículos nos parques públicos é aplicada facilmente nos casos considerados não complexos, isso se dá em razão de claramente ser possível interpretar o propósito das regra em linhas gerais, ou seja, de extrair qual finalidade ela possui. Nesse sentido, todos que estão sujeitos a essa regra não precisam se preocupar com a diferença entre Fords e Cadillacs[8]. Também o intérprete não precisará se preocupar em ser discricionário (e nem deverá fazê-lo), tendo em vista que, diante de um caso de grande complexidade, em que o termo não se ajusta de forma direta ao caso concreto, basta que essa busca pelo propósito/finalidade da norma seja novamente percorrido para que a solução seja fornecida. Qual a finalidade da norma que proíbe veículos nos parques públicos? Se ela serve para permitir que se tenha um melhor tráfego de pedestres, não faz sentido, diante dos seus termos, proibir que um veículo seja exposto como monumento histórico no meio do parque. O Direito, afinal, não é apenas um conjunto de regras isoladas e abstratas, mas um corpus juris, que, tomado em seu conjunto, orienta-se em uma determinada direção a partir de sua lógica própria. Os princípios mesmos que informam a possibilidade de existência do Direito qua Direito permitem também que os sistemas sejam orientados a partir de diretrizes que possibilitam sua interpretação como sistemas que são.

Conclusões
O debate Hart-Fuller não se resumiu apenas à discussão acerca da validade do direito nazista, da tese da separabilidade e do problema da interpretação. Tratou-se, sobretudo, de uma divergência acerca do próprio conceito de Direito. Para Hart, as regras jurídicas não são capazes de estabelecer com antecedência todos os casos concretos, abrindo-se a possibilidade extraordinária de existir uma zona de penumbra, que, consequentemente, permitirá a discricionariedade judicial. Para Fuller, a discricionariedade não é necessária nem legítima, pois o julgador deverá observar a finalidade (o propósito) da norma, que está adstrita ao texto, recorrendo àquilo que a própria regra tem a dizer. Hart e Fuller, portanto, cada um a seu modo, desenvolveram, articularam e anunciaram perguntas e proposições que constituem o que há de mais importante na teoria do Direito: questões sobre legitimidade, sobre interpretação, sobre o que é, afinal, Direito.


[1] Lacey, Nicola. A Life of H.L.A. Hart. Oxford University Press, 2004, p. 197.

[2] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 607 (tradução livre).

[3] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 613.

[5] H. L. A. Hart. Positivism and the separation of Law and Morals. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 620.

[6] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 637.

[7] FULLER, Lon L. The Morality of Law. Edição revisada. New Haven: Yale University Press, 1964.

[8] FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to Law: a reply to Professor Hart. Harvard Law Review, Cambridge, vol. 71, nº 4, 1958, p. 663.

 é mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).

Giovanna Dias é graduanda em Direito pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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MPs trabalhistas sobre epidemia geram alto número de ações

De janeiro para cá, o número de processos trabalhistas movidos por consequência da epidemia do novo coronavírus já passou a marca de R$ 10 mil ações e 9 mil demissões e afastamento. O valor total das causas também é espantoso, beirando os R$ 600 milhões. 

Clique aqui para acessar os dados

do Termômetro Covid-19 em tempo real

Os dados, colhidos pela ConJur, em parceria com a instituição de educação Finted e a startup Datalawyer Insights, estão disponíveis na plataforma Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, lançado na última sexta-feira (1º/5).

Segundo a plataforma, a maior parte dos processos tem “Covid-19” como assunto (classificação criada recentemente pelo CNJ), sendo seguidos por ações sobre aviso prévio e multa de 40% do FGTS, que são temas inerentes a casos sobre dispensas, mas também no contexto da epidemia.

Para conter os efeitos da epidemia nas empresas, o governo federal editou uma série de medidas provisórias; entre elas a MP 927, que permite a suspensão de contratos e de salários por até quatro meses; e a MP 936, que cria o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda. 

As mudanças tiveram impacto imediato: segundo o governo federal, até 22/4, 3,5 milhões de trabalhadores fizeram acordos com os patrões para suspender ou cortar salários. Os dados incluem acordos individuais e coletivos. 

A secretaria especial de Previdência do Ministério da Economia diz que os empregados afetados pelos cortes receberão uma compensação — conforme dispõe a MP 936 — em valor proporcional ao do seguro-desemprego. 

Para o governo, as suspensões e cortes possibilitam que os trabalhadores não percam os empregos e sejam reintegrados. De outro lado, permite que as empresas se mantenham funcionando durante a após a crise.

Especialistas, no entanto, afirmam que as medidas provisórias não são claras, deixando empregados e empregadores confusos, o que gera conflitos e maior número de ações trabalhistas. 

Falta de clareza

Para Karen Badaró, especialista em Direito do Trabalho empresarial e sócia do Chiarottino e Nicoletti Advogados, as MPs estão gerando múltiplas interpretações, levando à judicialização dos conflitos trabalhistas. 

“Entendo que as demandas relacionadas à Covid-19 e, consequentemente, demissões, suspensões e reduções salariais se dão diante da falta de clareza nos mais diversos temas das MPs, bem como pelos posicionamentos diversos dos órgãos do Judiciário, trazendo insegurança jurídica às empresas e empregadores em geral”, afirma. 

A advogada diz haver falta de orientação por falta das empresas, o que acarreta na tomada de decisões precipitadas e sem planejamento. 

“O momento é delicado e muitas empresas/empregadores estão sem fluxo de caixa para manter as atividades e honrar os compromissos, mas é necessário ter cautela ao tomar decisões e pensar a médio e longo prazo”, afirma. 

Carlos Eduardo Dantas, sócio do Peixoto & Cury Advogados, tem uma posição parecida. Para ele, as MPs deixaram de regulamentar uma série de questões necessárias. “Assim, cada empresa está aplicando da forma que lhe parece mais razoável, o que, sem dúvida vai gerar diversos questionamentos e processos”, explica. 

Para Wilson Sales Belchior, sócio do Rocha, Marinho e Sales Advogados e conselheiro federal da OAB, “o crescimento da judicialização no direito trabalhista é reflexo da insegurança jurídica provocada pela diversidade interpretativa sobre as novas normas”. 

Assim, prossegue, é importante “o papel exercido pelos tribunais superiores de conferir estabilidade hermenêutica nas relações de trabalho, considerando, igualmente, a urgência desses mecanismos jurídicos para a preservação de empregos e da atividade produtiva do país”.

Termômetro Covid-19

O Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho avaliou toda a base de dados abertos da Justiça Trabalhista, tendo como fonte as publicações relacionadas a esses processos, utilizando técnicas de ciência de dados, metodologia de pesquisa científica e tecnologia de última geração.

Os números foram levantados a partir da análise de todas as ações trabalhistas distribuídas desde o início do ano, feita pelo Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, plataforma que permite a visualização, em tempo real, dos dados dos processos cujas petições iniciais citam “Covid-19”, “coronavírus” ou “pandemia”. 

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Entrevista: Rubens Ricupero, diplomata e ex-ministro da Fazenda

Em 2004, quando deixou sua carreira diplomática, Rubens Ricupero — diplomata e ministro da Fazenda quando da implantação do Plano Real — tinha se acostumado com a posição de prestígio alcançada pela política externa brasileira. Historiador e formado em Direito pela USP, ele deu entrevista à ConJur, por telefone, analisando a política externa brasileira e o legado da “lava jato”.

Desde a redemocratização, em 1985, o modo que o país encontrou para se projetar internacionalmente foi regido pelo mesmo princípio: diplomacia é a busca da autonomia por meio da participação. 

O conceito, segundo o diplomata, começou a cair por terra quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência. De lá para cá, diz, a política externa se tornou cada vez mais alinhada ao governo de Donald Trump e contrária a Pequim.

Mas política externa, antes de vir ao mundo, é gestada intestinamente. Em 2016, Ricupero afirmou que existia à época um “partido togado”, que podia interromper o jogo político a qualquer momento — em referência à força das autodenominadas “operações” que se arvoraram como combatentes da corrupção. 

Revisitando o assunto, Ricupero disse que a “lava jato” perdeu força no decorrer dos anos e dá seus últimos suspiros. “Aqueles filhotes da ‘lava jato’ que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a ‘lava jato’ hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade”, afirma. A conversa ocorreu antes de Sergio Moro deixar o Ministério da Justiça. 

Se a “lava jato” é passado, o “partido da toga” legou ao país um novo presidente — e sua nova política externa, conduzida por agentes que negam o isolamento social como saída para enfrentamento da epidemia de Covid-19, mas que aceleram o isolamento do país no mundo.

“O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas”, afirma.

Confira a entrevista na íntegra: 

ConJur — Em entrevista concedida ao El País, o senhor afirmou que havia dois teatros durante a ditadura: o da vida política e o dos bastidores. Os fardados podiam intervir, interrompendo a peça a qualquer momento. De lá para cá, referindo-se à “lava jato” em Curitiba, disse que o partido fardado deu espaço ao partido togado. Ainda vê essa força toda emanando da “lava jato”?

Rubens Ricupero —
Vejo uma espécie de esgotamento natural da operação, em parte por mudanças políticas — a eleição do Bolsonaro, a decisão de Moro aceitar ser ministro da Justiça, as revelações [do site] Intercept e toda a desmoralização que veio disso. A “lava jato” acabou. Ela continua existindo em tese, porque há condenações pendentes, assim como os recursos relativos ao Lula. Muito está por resolver, mas a “lava jato” acabou, assim como a “mãos limpas” acabou na Itália. O juiz que substituiu Moro não tem, nem de longe, aquele tipo de ativismo jurídico que o Moro tinha, ou aquele entendimento com os procuradores. Houve também uma certa aversão do STF e de outras instâncias. Aqueles filhotes da “lava jato” que tinham sido criados nas justiças federais de diversos estados continuam existindo, mas em fogo brando. Como fenômeno político-judiciário, a “lava jato” hoje pertence mais ao domínio da história do que ao da realidade. 

ConJur — O senhor já afirmou em algumas ocasiões que o confronto inicial gerado pela “lava jato” teve importância e gerou consequências positivas. Hoje, com tudo que se sabe sobre a atuação do ex-juiz Sergio Moro e dos procuradores, mantém essa opinião?

Rubens Ricupero —
Como consequência política, a “lava jato” teve um impacto enorme na história brasileira. É responsável por boa parte do que aconteceu nos últimos anos. Basta ver que os escândalos de corrupção colocaram fim ao período de hegemonia do PT. Até hoje o PT não se reergueu do golpe que levou. Por outro lado, sempre tive dúvidas sobre a duração da “lava jato”, que parecia exagerada enquanto operação judiciária. Além desse aspecto, a operação, em essência, pela própria natureza do Judiciário, continha uma limitação que, cedo ou tarde, acabaria por comprometê-la: operações policiais e judiciárias podem ser importantes para trazer luz sobre esquemas de corrupção, mas não conseguem por fim a eles. Isso acontece porque as soluções só podem ocorrer por meio de mudanças legislativas, algumas até de ordem constitucional, já que o que existia na raiz da corrupção eram problemas que apontavam para as imperfeições das instituições, para os defeitos que vão desde a politização das estatais até a ineficácia dos mecanismos de fiscalização. 

O saldo da “lava jato” é que algumas pessoas foram punidas, com grau maior ou menor de adequação, mas as raízes do problema não foram removidas. Esse problema permanece, tanto que uma das suas consequências foi a de dar ao presidente Jair Bolsonaro a justificativa de não tentar fazer um presidencialismo de coalizão, negociando com os partidos políticos ministérios, verbas e cargos de estatais. Por outro lado, isso cria um conflito maior com o Congresso, o que, novamente, demonstra o quanto as instituições são defeituosas. Em resumo, vejo a “lava jato” como uma tentativa de atacar os sintomas, não as causas da doença. Talvez tenha conseguido inibir os sintomas por um tempo, mas não removeu as causas profundas e não fez isso porque não podia fazer. A operação teve um papel histórico, mas, por todos os defeitos práticos, e em certos momentos deixando visível um ativismo jurídico muito grande, a “lava jato” deixou de existir.

ConJur — Falando agora de política externa: é possível resumir a diplomacia brasileira, a partir da redemocratização, como a busca da autonomia por meio da participação. Com essa atuação, o país conquistou prestígio. Agora, a marca definidora da política externa é o alinhamento com os Estados Unidos. Quais os impactos disso?

Rubens Ricupero —
É mais do que isso. Não é um alinhamento com os EUA, mas com o governo de Donald Trump, que, por sua vez, conduz uma campanha sistemática contra todas as instituições do sistema internacional criado no pós-guerra — o multilateralismo, um sistema que funciona na base de normas, de leis, não da força. Ao se alinhar com esse governo, o Brasil trabalha contra o seu próprio interesse, pois os EUA têm muito poder. Já o Brasil é um país com pouco poder, que pode se tornar vítima da força alheia. Nosso país não é uma potência econômica e militar. Mas tem poder brando, que é a diplomacia do convencimento, da persuasão, da negociação. Ao se alinhar com os EUA, abrimos mão disso e nos subordinamos a um país que, esse sim, tem poder e que pode utilizá-lo de maneira deflagradora, sem nenhum limite. 

O saldo líquido das decisões brasileiras é nos levar ao isolamento — em todos os sentidos do termo — e a uma perda extraordinária do poder brando que o país tinha acumulado. Hoje, sem nenhum exagero, o Brasil é o país cujo governante figura entre os mais menosprezados e mais detestados do mundo. O cenário da política externa é um cenário de ruínas.

ConJur — Outra consequência apontada é o esgarçamento da relação com a China. Essas relações podem se desgastar ainda mais?

Rubens Ricupero —
Essa deterioração é, em grande parte, culpa daquele núcleo mais ideológico, mais fanatizado do governo brasileiro. Mas, para além disso, há uma competição estratégica entre EUA e China, em todos os sentidos — militar, econômico, político etc. Quando o Brasil se alinha a Trump, ele está comprando a agenda norte-americana, que vem com todas as inimizades que os Estados Unidos têm: contra a China, Rússia, Irã, Cuba, e assim por diante.

Portanto, sem nenhuma justificativa para isso, o Brasil está no momento em posição antagônica a todos esses países que constituem grandes mercados para as nossas exportações. É claro que de imediato a China não vai, por exemplo, deixar de comprar soja do Brasil, pois não há uma alternativa fácil para nos substituir como fornecedores de alguns produtos. Mas, no médio e longo prazo, as relações comerciais ser tornarão cada vez mais difíceis. O Brasil está jogando todas as suas esperanças em um país [EUA] do qual ele não pode esperar nada. Nem mercado, nem investimento. 

ConJur — Se não há justificativas, essa postura brasileira com relação à China ocorre por uma questão meramente ideológica?

Rubens Ricupero —
Puramente ideológica. É o equívoco de uma maneira de ver o mundo. O Brasil vê o mundo com os olhos da guerra fria. É uma visão completamente fora do tempo histórico, anacrônica, porque o país se comporta hoje em relação à China como o governo militar do Castelo Branco em 1964 se comportava em relação à União Soviética. O Brasil vê a China como o centro do comunismo mundial, uma espécie de “origem do mal”, quando nada disso corresponde à realidade internacional. 

ConJur — O senhor disse que os EUA — e agora o Brasil — se portam de modo contrário ao sistema criado no pós-guerra, indo no caminho do anti-multilateralismo. Agora o mundo passa por uma pandemia. O coronavírus matou o multilateralismo?

Rubens Ricupero —
O que está acontecendo com a pandemia é que quase todas as reações têm sido majoritariamente de tipo nacional, infelizmente. Em um primeiro momento, é até compreensível que seja assim, porque diante de uma emergência cada nação reage da forma mais rápida que pode e isso quase sempre é mais fácil no plano nacional. Mas deveríamos rapidamente passar a uma fase de coordenação internacional, tanto para combater a doença quanto para combater as consequências econômicas dela. Há algum esboço para utilizar o Grupo dos Vinte [G20, formado pelos ministros de finanças e chefes dos bancos centrais das maiores economias do mundo] para sustentar a dívida dos países mais pobres durante um ano. Mas são reações fracas.

Mesmo na União Europeia, os países mais afetados pelo coronavírus, como a Itália e a Espanha, não receberam uma ajuda significativa da comunidade europeia. A Itália recebeu mais ajuda da China do que dos seus vizinhos no começo. Agora a União Europeia começa a reagir, mas o panorama é de sombras e luzes — mais de sombras. Existe algum grau de cooperação, mas é pequeno. E existe muitos, infelizmente muitos exemplos de egoísmo nacional, inclusive esses que afetaram o Brasil, de países que se atravessaram para comprar equipamentos que já tinham sido negociados. Então, sem dúvidas, o multilateralismo está em crise. Mas não desespero dele, porque acho que existem inúmeras perspectivas de que isso melhore. Por exemplo, ainda é incerto o que vai acontecer na eleição dos EUA. É possível que, devido a tudo isso, as eleições acabem enfraquecendo o atual presidente e ele não consiga se reeleger. Se ele não se reeleger, teremos condições de recuperar muito do que se perdeu em matéria de multilateralismo, porque 90% ou mais do que está acontecendo é praticamente resultado da ação do governo Trump. 

ConJur — Dentro desse cenário de pandemia, o senhor vislumbra a possibilidade de que surja uma nova ordem econômica e jurídica?

Rubens Ricupero —
Sobre isso eu tenho dúvidas. Pandemias e epidemias, mesmo as muito mais graves que essa, em geral nunca mudaram o sistema econômico-político. Quando elas foram muito fortes, elas afetaram tendências que já existiam. Mas mesmo a peste negra, a peste bubônica, assim como as pestes que se seguiram, nunca afetaram o sistema político das monarquias da época. As tendências, as rivalidades que existiam, assim como os sistemas econômicos de troca, permaneceram iguais. Os sistemas econômicos, políticos e jurídicos obedecem à ação de forças profundas.

O que podem ocorrer são mudanças de curto prazo, que às vezes se seguem quando há acontecimentos suficientemente poderosos. Eu não ficaria surpreso, por exemplo se, passada essa crise, os países buscarem adquirir uma certa autonomia, uma certa autossuficiência em matéria de produtos farmacêuticos e médico-hospitalares. As nações podem buscar reduzir a dependência sobre esses produtos que existe com relação à China e outros países asiáticos. Isso pode acontecer, mas não vejo a possibilidade de uma reforma profunda na estrutura do capitalismo ou do sistema político que temos hoje. 

ConJur — Com o avanço do novo coronavírus, aliás, foram adotadas algumas medidas emergenciais. O Senado aprovou, por exemplo, o PL 1.179/20, que, entre outras coisas, flexibiliza dispositivos do Código Civil. O que acha de medidas como essa?

Rubens Ricupero —
A ideia básica de tentar encontrar uma solução para o momento é correta. Há um abalo muito grande até no sistema normal de pagamentos. Muitas empresas e indivíduos não são capazes de cumprir suas obrigações. Em certos casos, as regras precisam ser suspensas, da mesma forma como está se fazendo com regras de contrato de trabalho, flexibilização que busca manter a existência do emprego. Portanto, acredito que essas iniciativas são necessárias. Não me refiro especificamente ao PL citado, mas à tentativa de dar uma resposta ao que está acontecendo. Os contratos são vigentes enquanto mantidas as condições em que eles foram celebrados. Quando as condições se alteram de modo muito radical, muitas vezes não há a possibilidade de manter os termos tal como foram acordados. 

ConJur — Nos últimos anos, uma série de conflitos entre Legislativo e Executivo acabaram sendo resolvidos pelo Judiciário. O que pensa a respeito dessa judicialização?

Rubens Ricupero —
Eu tenho a impressão de que esse fenômeno coincide com o agravamento da crise institucional. Vivemos uma crise prolongada, que começa no primeiro governo da Dilma Rousseff e que se prolonga até hoje. O impeachment não resolveu a crise e em cada governo surgem problemas novos. No fundo, o quadro é de mau funcionamento das instituições. O sistema presidencialista tem uma rigidez que não permite a solução de problemas quando há impasse entre Executivo e Legislativo — e a tendência é a de que esses poderes entrem cada vez mais em conflito.

Um exemplo que vem logo à mente é a incapacidade que o Legislativo tem de resolver problemas com conteúdos ligados à questões de tipo moral: moral familiar, moral sexual, aborto, casamento entre homossexuais etc. O Legislativo fica paralisado diante dessas questões porque há uma representação grande de grupos religiosos. Então, embora sejam claramente do âmbito do Legislativo, esses temas acabam indo ao Judiciário. Quase todas as grandes decisões envolvendo temas como esses — o aborto no caso de fetos anencéfalos, casamento homoafetivo — foram talhadas pelo Judiciário. Creio que isso continuará acontecendo, porque a solução definitiva é fazer uma reforma profunda do sistema político, o que não parece estar no horizonte. Assim, as pautas continuarão indo ao Judiciário. 

ConJur — Em casos como esses, em que o Legislativo deixa um vácuo ao não tratar de certas questões, é justificável a atuação do Judiciário?

Rubens Ricupero —
Existe a necessidade colocada pelo próprio sistema político. Não se pode conviver com o vácuo de poder. Há decisões que precisam ser tomadas. Se não forem pelas instâncias que normalmente deveriam resolver o problema, acabam indo aos tribunais. Nesse sentido, a necessidade justifica as decisões judiciais. Não é o ideal, mas não vejo outra saída. 

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Número de ações trabalhistas durante epidemia será cada vez maior

A ConJur, em parceria com a instituição de educação FintedLab e a startup Datalawyer Insights, lançou nesta sexta-feira (1º/5) o Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, plataforma que permite a visualização, em tempo real, dos dados dos processos cujas petições iniciais citam “Covid-19”, “coronavírus” ou “pandemia”. 

Clique aqui para acessar os dados

do Termômetro Covid-19 em tempo real

Os números mostram, de modo claro, alguns dos impactos imediatos da epidemia: de primeiro de janeiro para cá foram mais de 10 mil processos e 9 mil demissões e afastamentos. O valor total das causas já é de R$ 596 milhões. 

Somente na semana de 6 e 13 de abril, 2.493 novos processos foram ajuizados. Os dados, segundo advogados, evidenciam que há a tendência de que os conflitos entre empregados e empregadores desemboquem cada vez mais no Judiciário. 

“A crescente judicialização das questões afetas à Covid-19 na seara laboral demonstra que isso é uma tendência cada vez maior, durante esse período de pandemia, devendo ser vista com preocupação pelos empresários e as empresas de nosso país”, afirma Ricardo Calcini, professor de pós-graduação da FMU, mestre em Direito do Trabalho pela PUC/SP e organizador do e-book Coronavírus e os Impactos Trabalhistas

Segundo o professor, os advogados devem transmitir orientações mais conservadoras aos clientes, para conter uma outra epidemia: a de processos judiciais.

“O comportamento de hoje, seguramente, vai repercutir no retorno das atividades no dia de amanhã, razão pela qual se deve empreender maiores esforços para frear esse número preocupante de quase R$ 600 milhões em passivo trabalhista, até para que se evite a quebra das empresas que, conquanto tenham sobrevivido no período de crise, podem ter que fechar as portas em razão do tsunami de ações judiciais que passarão a sofrer. Isso, aliás, passa a ser visualizado, doravante, graças a belíssima iniciativa da ConJur”, afirma. 

Demissões

Segundo o termômetro, a maior parte dos processos tem “Covid-19” como assunto (classificação criada recentemente pelo CNJ), sendo seguidos por ações sobre aviso prévio e multa de 40% do FGTS, que são temas inerentes a casos sobre dispensas. 

Tendência, segundo especialistas, é a de que número de processos aumente ainda mais
Reprodução

Mariana Machado Pedroso, especialista em Direito do Trabalho e sócia do Chenut Oliveira Santiago Sociedade de Advogados, diz que o número de processos envolvendo demissões  não é uma surpresa. 

“Normalmente o momento em que empregados procuram o ajuizamento de ações é após sua dispensa e, como têm havido muitos desligamentos, era esperado que o volume de ações judiciais aumentasse”, afirma. 

Ela ressalta, ainda, que o fato de não ser possível saber quais empresas permanecerão ativas depois que a epidemia passar faz com que os empregados não esperem muito para abrir novos processos. 

Quebradeira

A preocupação dos especialistas quanto à possibilidade de que muitas empresas fechem as portas ou tenham problemas para permanecer em funcionamento é justificada. 

Segundo estimativa da consultoria Alvares & Marsal divulgada pelo jornal O Estado de S. Paulo no último dia 22, a queda de 3% do PIB pode gerar 2,2 mil pedidos de recuperação judicial. O boletim Focus divulgado pelo Banco Central daquela segunda-feira (20/4) previu retração de 2,96% do PIB para este ano.

De acordo com a mesma consultoria, caso a queda fique em 5% — o Fundo Monetário Internacional projetou recuo de 5,3% —, a estimativa é que 2,5 mil empresas batam às portas do Judiciário invocando a Lei 11.101/05, que trata da recuperação judicial, extrajudicial e da falência. O número de casos, se verificado, será 40% maior ao registrado em 2016, quando 1,8 mil sociedades empresárias recorreram à Justiça — cifra até então recorde.

Para Patrícia Suzuki, especialista em Direito do Trabalho e sócia do escritório Nascimento e Mourão, os dados do Termômetro mostram a necessidade de adequação da justiça trabalhista para atender à enxurrada de ações.

“O Termômetro Covid-19 é uma inovação na esfera trabalhista que permite o acesso a informações relevantes, que servirão como norte para a atuação dos setores públicos e privados no enfrentamento da crise”. 

O Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho avaliou toda a base de dados abertos da Justiça Trabalhista, tendo como fonte as publicações relacionadas a esses processos, utilizando técnicas de ciência de dados, metodologia de pesquisa científica e tecnologia de última geração.

A plataforma permite o monitoramento constante do fenômeno nos próximos meses, com base nas publicações da Justiça do Trabalho, por meio de uma plataforma online e de relatórios semanais sobre a evolução dos casos.