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Entidade pede que STF diferencie discurso de ódio de liberdade

A Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) moveu, nesta quarta-feira (17/6), arguição de descumprimento de preceito fundamental pedindo que o Supremo Tribunal Federal estabeleça os parâmetros de diferença entre discurso de ódio e liberdade de expressão.

Ataques ao Supremo Tribunal Federal são discurso de ódio, diz ABJD

De acordo com a entidade, o discurso de ódio extrapola a liberdade de expressão. Esse abuso “ocorre quando um indivíduo se utiliza de seu direito à liberdade de expressão para inferiorizar e discriminar outrem baseado em suas características, como sexo, etnia, orientação sexual, política, religiosa. Ou quando é adotado em ações para invocar regimes autoritários e antidemocráticos”.

Recentemente, o Brasil tem assistido ao uso de redes sociais para espalhar ódio contra instituições, personalidades públicas, parlamentares e ministros do STF, ajudando a desqualificar o Estado Democrático de Direito, sustenta a ABJD. Ela cita que “milícias digitais” foram uma estratégia essencial da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, e seguem sendo usadas nas disputas políticas.

Além disso, a associação ressalta que as mensagens de ódio vêm alimentando uma série de seguidores, que proferem ameaças às instituições. Um exemplo é o movimento paramilitar que ficou acampado na Praça dos Três Poderes, em Brasília.

“O disparo de fogos de artifício na noite de sábado (13/6) na direção do edifício principal do Supremo Tribunal Federal, pelo grupo que se autodenomina ‘300 do Brasil’ na Praça dos Três Poderes, enquanto xingavam os juízes dessa corte, indica que as emoções, sentimentos de ira, raiva, desprezo, que constituem parte essencial do discurso de ódio não podem ser tratados de forma casuística ou natural quando já identificado que seu potencial de ação representa um perigo para o Estado Democrático de Direito, com ameaças explícitas contra a integridade de uma instituição da democracia e seus membros”, avalia.

Por isso, a ABJD pede que o STF estabeleça os parâmetros entre discurso de ódio e liberdade de expressão, com o objetivo de criar uma jurisprudência que esteja de acordo com os pilares do Estado Democrático de Direito e da democracia.

A entidade requer que uma interpretação conforme a Constituição de 1988 proíba manifestações, nas ruas ou redes sociais, que possuam como bandeiras o discurso de ódio, de instigação de crime e violência contra pessoas, autoridades e coletivos, de discriminação racial, de gênero, de religião, de opção política ou de orientação sexual, ou que atentem contra os poderes constituídos e a democracia.

Além disso, a associação pede liminar para retirar os manifestantes acampados na Praça dos Três Poderes, que as redes sociais bloqueiem contas que propagarem discurso de ódio e a declaração de ilegalidade de atos com bandeiras contra a democracia.

Legitimidade ativa

Em parecer anexado à petição inicial, Lenio Streck (professor da Unisinos e da Unesa), Pedro Estevam Serrano (professor da PUC-SP), Paulo Roberto Iotti Vecchiatti (doutor em Direito Constitucional) e Djefferson Amadeus de Souza Ferreira (mestre em Direito e Hermenêutica Filosófica) afirmam que a ABJD tem legitimidade para propor ADPF.

O artigo 2º da Lei 9.882/1999 aponta como legitimados para propor a ação de descumprimento de preceito fundamental os mesmos sujeitos aptos a propor a ação direta de inconstitucionalidade. E o artigo 103, IX, da Constituição, estabelece que “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional” pode propor ADI.

Para os pareceristas, a interpretação mais coerente com a Constituição é a que diz que devem ser entendidas como entidades de classe com legitimidade ativa para o controle concentrado e abstrato de constitucionalidade todas aquelas que se configurem como entidades de defesa dos direitos fundamentais.

Como fundamento, eles citam a decisão monocrática do ministro Luís Roberto Barroso na ADPF 527. Na ocasião, o magistrado reconheceu a legitimidade ativa da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos para impetrar ações do controle concentrado de constitucionalidade, enquanto entidade de classe.

Barroso propôs a superação da jurisprudência do STF sobre o tema, que sempre atribuiu ao artigo 103, IX, da Constituição, o sentido de que somente classes profissionais em defesa de direitos trabalhistas poderiam propor ADI e ADPF. Na visão do ministro, essa interpretação restritiva prejudicou a defesa de direitos e garantias fundamentais.

Conforme os pareceristas, as principais decisões do STF sobre minorias e grupos vulneráveis e direitos humanos em geral têm se dado no controle concentrado de constitucionalidade. Exemplos são o reconhecimento da validade de uniões homoafetivas, de cotas sociais e raciais em universidades públicas e da homotransfobia como crime de racismo.

“Isto demonstra, sobremodo, que o controle concentrado é o caminho para a busca da garantia de direitos de grupos minoritários e/ou vulneráveis da sociedade. E isto quer dizer, por consequência, que a tese da taxatividade do rol dos legitimados ou ‘tese restritiva’ inviabiliza o acesso de minorias e grupos vulneráveis ao Supremo Tribunal Federal. Seria algo como ‘a Constituição contra a Constituição’”, afirmam Lenio, Serrano, Vecchiatti e Amadeus.

Como a ABJD tem o objetivo de valorizar a ordem constitucional e tem representatividade nacional, deve ser incluída no rol dos legitimados do artigo 103, IX, da Constituição, enquanto defensora do direito à democracia, sustentam os especialistas.

Clique aqui para ler a petição

Clique aqui para ler o parecer

ADPF 696

 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

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Ministros defendem Judiciário independente contra autoritarismo

Os ministros Celso de Mello e Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal, se posicionaram sobre os ataques recentes sofridos pela corte. As declarações foram feitas nesta terça-feira (16/6) durante sessão virtual da 2ª Turma. 

Celso de Mello disse que há um inaceitável resquício autoritário dentro do aparato estatal
 SCO/STF

O decano do Supremo afirmou ser inaceitável que resquícios autoritários continuem existindo no Brasil. 

“É inconcebível e surpreendente que ainda subsista, na intimidade do aparelho de Estado, um inaceitável resíduo autoritário que insiste, de modo atrevido, em dizer que poderá desrespeitar o cumprimento de ordens judiciais, independentemente de valer-se, como cabe a qualquer cidadão, do sistema recursal previsto pela legislação processual”, disse.

Celso também defendeu que “sem juízes independentes, jamais haverá cidadãos livres” e, citando o ex-ministro Aliomar Baleeiro, alertou para o fato de que, enquanto houver pessoas dispostas “a submeter-se ao arbítrio, sempre haverá vocação de ditadores”.

Defesa da Constituição

A ministra Cármen Lúcia abriu a sessão da 2ª Turma expressando preocupação com o cenário sócio-político do país, afirmando que as agressões contra a Suprema Corte estão sendo instigadas, não tendo nada de “eventual ou espontâneo”. 

“Não é aceitável que essa experiência de liberdade, que vem sendo consolidada ao longo dessas três décadas, pela ação de alguns descomprometidos com o Brasil, com os princípios democráticos e com os objetivos da república, seja transformada em tempo de sombras e até de breu”, afirmou a presidente da turma na abertura da sessão. 

Cármen também afirmou que ataques contra instituições, juízes e cidadãos acabam por atentar contra todo o país e que a Constituição de 1988 não é um mero artifício, mas uma conquista humana. 

“A nós, cabe manter a tranquilidade, mas principalmente a coragem e a dignidade de continuar a honrar a Constituição, cumprindo a obrigação que nos é expressamente imposta, de guardá-la, garantindo sua aplicação a todos e por todos. Que não se cogite que se instalará algum temor ou fraqueza nos integrantes da magistratura brasileira. Esse tribunal é presente, está presente e permanecerá presente e atuante, cumprindo seus compromissos constitucionais com a República.”

Ataques

Na noite do último sábado (13/6), milicianos do grupo autointitulado “300 do Brasil”, que apoiam o presidente Jair Bolsonaro, lançaram fogos de artifício em direção ao STF. A ação ocorreu depois que o governo do Distrito Federal desmontou o acampamento do grupo, que estava localizado na Esplanada dos Ministérios. 

Depois do desmonte, integrantes da milícia invadiram a parte de cima da cúpula do Congresso nacional, pelo lado do Senado Federal. O acesso ao local é proibido. Seis integrantes do bando foram presos temporariamente na segunda-feira, por ordem de Alexandre de Moraes.

Clique aqui para ler a manifestação de Celso de Mello

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Aith e Fuziger: A Lei de Abuso de Autoridade e o abuso

O genial escritor francês Paul Valéry certa feita afirmou que “o poder sem abuso perde o encanto”. Nesse sentido, é inequívoco que na esfera pública os poderes investidos a indivíduos não raro geram uma trajetória perniciosa que parte da posição de autoridade para uma concretude em atos autoritários. Tal movimento deturpa o poder estatal, que tem por premissa o seu exercício numa perspectiva técnica, em desencanto — pois sem o deslumbramento típico dos excessos — nunca ensimesmado e jamais direcionado a finalidades ilegítimas a seus estritos propósitos.

Em virtude disso, todo o ordenamento jurídico está permeado por normas que visam a assegurar a contenção do comportamento dos agentes públicos, sendo certo que vasta parcela desse conteúdo está insculpido na Constituição Federal brasileira, profundamente inspirada na limitação do arbítrio estatal como uma necessidade de primeira ordem ao Estado democrático de Direito. Para tanto e inclusive, a noção de freios e contrapesos entre os poderes constitucionais é fundamental na incumbência de balancear forças e limitar abusos.

Ocorre que o equilíbrio nos arranjos entre os três poderes tem uma conformação frágil, notadamente ainda mais em virtude de crises institucionais que marcam o Brasil nos últimos tempos. Há alguns dias, tal contenda ganhou um sensível marco.

Trata-se da decisão recente do ministro do Supremo Tribunal Federal Celso de Mello que determinou o levantamento do sigilo da fatídica reunião ministerial ocorrida no dia 22 de abril. Tal decisão continua reverberando na imprensa e nos meios políticos e jurídicos. Isso porque muitos correligionários do presidente Jair Bolsonaro apontaram que ela teria ofendido o artigo 28 da Lei 13.869/2019 (o próprio presidente publicou um tuíte com a transcrição do dispositivo alguns dias após a decisão). Tal artigo dispõe, in verbis: “Divulgar gravação ou trecho de gravação sem relação com a prova que se pretenda produzir, expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado. Pena: detenção, de 1 (um) a 4 (quatro) anos, e multa”.

Após alguns dias e muitas opiniões depois, é possível sintetizar — depois desse breve, contudo necessário, período de maturação do debate — uma posição desapaixonada sobre o tema, nos estritos limites da dogmática penal e dos preceitos constitucionais atinentes.

Nesse sentido, a decisão do ministro Celso de Mello não perfectibiliza o delito em tela. Há pelo menos três razões indubitáveis (que seriam suficientes, per si, mas quando somadas demonstram que a tentativa de imputar o delito à conduta em questão é uma inequívoca teratologia) para tanto:

O tipo penal em comento exige que a divulgação seja exibida “expondo a intimidade ou a vida privada ou ferindo a honra ou a imagem do investigado ou acusado”. É despiciendo alongar-se no seguinte argumento: tratava-se de uma reunião entre o presidente, seu vice e seus ministros no desempenho de suas funções. Não há qualquer exposição da intimidade, da vida privada ou aviltamento da honra ou imagem, eis que o conteúdo divulgou falas proferidas justamente por tais indivíduos.

Não estão presentes os elementos subjetivo do injusto, previstos no §1º do artigo 1º da Lei de Abuso de Autoridade. O referido disposto estabelece “que constituem crime de abuso de autoridade quando praticadas pelo agente com a finalidade específica de prejudicar outrem ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro, ou, ainda, por mero capricho ou satisfação pessoal”.

Destarte, finalidade específica de para a configuração dos crimes de abuso de autoridade são: 1) prejudicar outrem; 2) beneficiar a si mesmo; 3) beneficiar a terceiro; 4) mero capricho; e 5) satisfação pessoal. Para configuração dos delitos da Lei de Abuso de Autoridade exige-se um dos elementos específicos do injusto, sob pena de atipicidade do delito.

O ministro Celso de Mello em sua decisão pontuou que “ao assistir ao vídeo em questão e ao ler a transcrição integral do que se passou em referida assembleia ministerial, que não foi classificada como ultrassecreta, secreta ou reservada (Lei nº 12.527/2011, arts. 23 e 24), constatei que, nela, parece haver faltado a alguns de seus protagonistas aquela essencial e imprescindível virtude definida pelos Romanos como ‘gravitas’, valor fundamental de que decorriam, na sociedade romana, segundo o ‘mos majorum’, a  ‘dignitas’ e a ‘auctoritas’. Essa é uma das razões pelas quais um dos investigados, o Senhor Sérgio Fernando Moro, pretende, a partir do exame do contexto global em que se desenvolveu semelhante reunião ministerial, identificar e revelar, na busca da verdade em torno dos fatos, os reais motivos subjacentes à conduta presidencial.

Estender-se o manto do sigilo aos eventos que só a liberação total do vídeo seria capaz de revelar implicaria transgredir o direito de defesa de referido investigado, que deve ser amplo (CF, artigo 5º, LV), além de sonegar aos eminentes senhores ministros do Supremo Tribunal Federal (CF, artigo 102, I, ‘b’), aos ilustres senhores deputados federais (CF, artigo 51, I) e aos protagonistas desse procedimento penal o conhecimento pleno de dados relevantes constantes da gravação em referência, vulnerando-se, frontalmente, desse modo, o dogma constitucional da transparência, instituído para conferir visibilidade plena aos atos e práticas estatais”.

Portanto, a fundamentação construída pelo ministro afasta peremptoriamente as finalidades estampadas no artigo 1º, §1º, da Lei 13.869/2019.

Por outro lado, não se pode olvidar que o artigo 1º, §2º, estabelece uma excludente consistente na impossibilidade de se atribuir “crime de hermenêutica”, que assim dispõe: “A divergência na interpretação de lei ou na avaliação de fatos e provas não configura abuso de autoridade”. Trata-se de mais um argumento que afasta em absoluto qualquer vislumbre de incriminação.

Assim, a tentativa de subsunção pela simples análise da descrição típica do artigo. 28 da Lei 13.869 é uma flagrante atecnia, eis que deixa de lado pressupostos e ressalvas previstas no próprio corpo do diploma.

É certo que a Lei 13.869 trouxa uma alvissareira perspectiva de contenção dos frequentes e intoleráveis abusos de agentes públicos. No entanto, a efetividade de tal diploma em tal propósito está imprescindivelmente ligada à sua correta aplicação: intransigente e enérgica quanto às condutas típicas de agentes públicos que abusam de poder e deturpam a razão de ser de suas funções (qual seja, servir à sociedade); com esmero técnico, de modo a não ser instrumentalizada de forma oportunista de modo a constranger agentes públicos que atuam com correção.

Do contrário, o potencial benéfico da lei dará lugar a um cacofônico e pernicioso fenômeno da Lei de Abuso de Autoridade como um instrumento de abuso. Esse parece ter sido o sentido da referência por alguns à lei no episódio da decisão do ministro Celso de Mello: o desiderato de intimidação e enfraquecimento do dever de atuação de um proeminente representante de um dos poderes constitucionais, visando a um desequilíbrio de forças, o que, conforme a História é pródiga em demonstrar, é terreno fértil do arbítrio e autoritarismo.

 é especialista em Direito Criminal e Direito Público e professor de Direito Penal na Escola Paulista de Direito.

 é advogado, PhD e mestre em Direito Penal pela USP, PhD em Estado de Direito e Governança Global pela Universidade de Salamanca e professor da pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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Deputados dos EUA se opõem a acordo comercial com Bolsonaro

Contra direitos

Deputados dos EUA manifestam oposição a acordo comercial com Bolsonaro

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Devido a posturas e atos autoritários, preconceituosos e prejudiciais a trabalhadores e ao meio ambiente do presidente Jair Bolsonaro, o Comitê sobre Maneiras e Meios (Committee on Ways and Means) da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos, responsável por assuntos tributários, manifestou forte oposição à celebração de qualquer acordo comercial com o governo brasileiro.

Bolsonaro não respeita o Estado de Direito e garantias ambientais e trabalhistas, dizem deputados dos EUA
Fábio Rodrigues Pozzebom / Agência Brasil

Em ofício enviado nesta quarta-feira (3/6) ao representante de Comércio dos EUA, Robert Lighthizer, os deputados disseram ser fortemente contrários ao plano de expandir as relações comerciais com o Brasil — como declarou o integrante do governo de Donald Trump após conversar em maio com o ministro das Relações Exteriores do país, Ernesto Araújo.

De acordo com os parlamentares, é “inapropriado” que o governo dos EUA faça parcerias comerciais com um líder brasileiro que “despreza o Estado de Direito e está ativamente desmantelando o duramente conquistado progresso em direitos civis, humanos, ambientais e trabalhistas”.

Como exemplos dessas práticas, os deputados citaram o aumento de invasões de terras indígenas e de queimadas na Amazônia e a diminuição de multas e outras punições aos responsáveis por esses atos.

Além disso, Bolsonaro extinguiu o Ministério do Trabalho, dificultou a regularização de sindicatos e não vem tomando ações para erradicar o trabalho escravo, apontaram. Além de tornar o Brasil um parceiro comercial inadequado para os EUA, destacaram os parlamentares, essas medidas reduzem a competitividade, salários e direitos de trabalhadores norte-americanos.

Eles também destacaram que um acordo comercial aumentaria a força dos produtos agropecuários do Brasil nos EUA, sendo que os produtores brasileiros têm histórico de empregar práticas comerciais injustas.

Clique aqui para ler o ofício (em inglês)

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 é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro.

Revista Consultor Jurídico, 4 de junho de 2020, 18h02

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Rafael Maciel: Os perigos da ditadura pelos dados

Aspirantes a autocratas costumam usar crises econômicas, desastres naturais e, sobretudo, ameaças à segurança guerras, insurreições armadas ou ataques terroristas para justificar medidas antidemocráticas”. Nessa passagem do livro Como as Democracias morrem, Steve Levitsky e Daniel Ziblatt [1] poderiam ter incluído a pandemia como outro “inimigo comum” a justificar atos autoritários.

Provavelmente não imaginariam um vírus com impactos sanitários e econômicos como os provocados pela Covid-19. Relevantes a ponto de provocarem uma grande mudança de hábitos, tanto pela gravidade que a doença tem apresentado, com índices crescentes de fatalidades e contaminação, como pela bancarrota generalizada e aumento do desemprego. Diante de tantos danos, não se tem dúvida de que a atual pandemia se tornou o mal a ser combatido, capaz de justificar, aos olhos menos atentos, toda e qualquer invenção legislativa, sobretudo as arbitrárias as quais, em situação comum, poucos ousariam representar.

É o que temos visto no Brasil. O cotidiano jurídico tem sido inundado por Medidas Provisórias e propostas legislativas visando a modificações ou inovações diversas. Não se tem dúvidas de que boa parte são válidas e necessárias ao combate dos males da pandemia, seja em seus aspectos econômicos ou sanitários; outras, todavia, repousam sobre o falso argumento da urgência pandêmica para terem tramitação ligeira ou oportunista e escondem violações a direitos fundamentais, primeiro front prejudicado nesses levantes populistas.

É o que se dá com a Medida Provisória nº 954, de 17 de abril, pela qual o presidente Jair Bolsonaro, fundando-se no estado de calamidade pública, determina a todas empresas de telecomunicação que disponibilizem a “relação dos nomes, dos números de telefone e dos endereços de seus consumidores, pessoas físicas ou jurídicas” à Fundação IBGE para fins de produção estatística oficial. Logo de partida constata-se um excesso de dados pessoais a serem disponibilizados. Ora, para que fornecer endereço se essa dita necessidade é para pesquisa remota por conta do isolamento? Para piorar, não há sequer menção a qual tipo de estatística que deverá ser realizada e se ela é fundamental para combate à pandemia, primeiro pressuposto para avaliar o cabimento do compartilhamento de dados pessoais. Tem que haver finalidade específica e para essa, somente podem ser fornecidos dados necessários e adequados para atingi-la.

Os despropósitos não param por aí. Não há na MP qualquer controle previsto para esse tratamento que poderá, inclusive, estar sujeito ao vigilantismo ou uso indevido para envio de mensagens fake com viés eleitoral. Se serão sigilosos, como se dará o controle? Quais medidas foram implementadas para registrar os acessos? A única previsão de proteção prevista na MP é de um enviesado Relatório de Impacto à Proteção de Dados Pessoais.

A utilização dessa avaliação de impacto deve ser feita anteriormente a qualquer pretensão de tratar os dados, a fim de analisar todos os riscos envolvidos e, inclusive, os impactos aos titulares, sobretudo às suas liberdades individuais. O relatório de impacto não pode servir para o fim pretendido no §2º do artigo 3º da MP: “Divulgar as situações em que os dados foram utilizados”. Depois que são utilizados, pouco ou de nada importará saber das suas violações, sem falar que será difícil confiar nesse relatório feito casuisticamente. Até as situações divulgadas por alguns estados para o compartilhamento de dados dito anonimizados o que a rigor não se sujeitariam a tais limitações para fins de constatar aglomerações devem ser precedidas de uma análise prévia a fim de se constatar a impossibilidade de (des)anonimização mediante “esforço razoável”.

É claro que para combater a pandemia, por ser questão de saúde pública, o Estado pode utilizar alguns dados pessoais, porém essa permissão não é uma carta em branco para que faça da forma como queira, sem qualquer controle. Os dados de saúde são um bom exemplo: podem ser compartilhados para saber quantos estão contaminados, porém sempre respeitando os indivíduos, sem divulgação desautorizada de seus nomes e limitando o tratamento àqueles dados estritamente necessários.

Agências de proteção de dados pessoais ao redor do mundo têm se manifestado com diretrizes para tais compartilhamentos, pautando pela finalidade e implementação de medidas técnicas e organizacionais de proteção, prestigiando a anonimização. Por aqui, a regra, ao que parece, tem sido o compartilhamento irrestrito, como se aproveitassem da vacatio legis da LGPD ou da própria inércia de não instituir a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD).

Se são ou não medidas com viés antidemocrático, propositais, ingenuidade ou equívoco jurídico o tempo dirá. Enquanto isso, que nossos radares permaneçam atentos, assim como vigilantes nossas instituições.

 é advogado e especialista em Direito Digital e Proteção de Dados Pessoais.