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Tórtima, Bottini e Warde: Quando o Estado bloqueia tudo

São dispensáveis maiores digressões sobre as dificuldades que já são experimentadas — e serão ainda mais — pelas sociedades empresárias, no Brasil e no resto do mundo, notadamente nos países em que as consequências da pandemia se fizeram sentir mais gravemente. Pouquíssimas empresas mantém o mesmo nível de receitas, muitas já demitem em massa e deixam de cumprir suas obrigações. E isso produz um enorme efeito cascata que antecipa um longo período de recessão e, depois dela, esforços coordenados para reconstruir as economias.

Nesse contexto, o mínimo que se pode esperar, para além de medidas de socorro a serem apresentadas pelo Poder Público, é um maior cuidado, por parte dos órgãos responsáveis pela persecução penal, com as consequências econômicas de suas ações. As medidas cautelares constritivas patrimoniais em desfavor de pessoas jurídicas, ainda que, por meio delas, seus executivos e funcionários tenham praticado crimes, demandam especial atenção.

Não é de hoje que se alerta para o fato de que, em matéria de crimes que envolvem empresas, o poder punitivo estatal deve ser implementado de forma a comprometer na menor medida possível a sua atividade econômica. É necessária uma ponderação entre, de um lado, o interesse da persecução penal e da rigorosa administração da Justiça e, de outro, o da sobrevivência da sociedade empresarial.

Destruir empresas é ceifar postos de trabalho, esmaecer o consumo e a arrecadação de impostos, desperdiçar o conteúdo nacional, diminuir a competitividade do país e, no fim do dia, inviabilizar o seu desenvolvimento.

Nesse contexto, importante que se faça uma análise das medidas constritivas de patrimônio de empresas no processo penal: o sequestro e o arresto. Na primeira, são bloqueados bens de possível origem criminosa. Na segunda, a medida recai sobre patrimônio licito para assegurar futura reparação de danos em caso de condenação.

No primeiro caso, a legitimidade da medida é indiscutível. A empresa que recebeu bens ou valores de origem ilícita pode ser alvo de medidas constritivas patrimoniais, ainda que o autor do respectivo crime não seja seu funcionário ou executivo, desde que os ativos ilícitos tenham passado a compor seu patrimônio, e isso independentemente da prática de atos de lavagem de capitais.

Já no arresto alguma cautela é necessária.

Um dos autores deste artigo, em outra oportunidade, (1), já alertava para a impossibilidade de decretação de medida de arresto em desfavor de pessoas jurídicas, ainda que em casos de acusação dos respectivos executivos ou funcionários por prática de lavagem de dinheiro. Como exposto, o arresto destina-se a garantir a reparação do dano, o pagamento de multas e as despesas processuais em caso de condenação. Bem por isso, apenas pessoas físicas podem ter bens arrestados, pois somente elas podem ser condenadas criminalmente (2).

Antes de adentrar a análise do tema principal desse artigo, voltado para as medidas cautelares penais contra o patrimônio de pessoas jurídicas, faremos breve digressão a respeito de cautelares da mesma natureza decretadas em desfavor de pessoas físicas. É que, considerando-se a necessidade urgente de aquecimento da economia, ou seja, de circulação de capitais, diante da brutal recessão que se avizinha, talvez a maior desde a grande depressão de 1929, é preciso cuidado com implementação de tais medidas, mesmo em relação a pessoas físicas.

No cenário atual, não raro, sequer se pode identificar em cautelares patrimoniais a exata natureza da medida, ou seja, não se sabe ao certo quando se trata de medida de sequestro (de ativos ilícitos) ou de arresto (de ativos a serem usados futuramente para eventual ressarcimento de prejuízos).

São comuns figuras híbridas de bloqueio de ativos, que acabam por tornar indisponíveis todo o patrimônio do acusado — presente e futuro —, sem que se saiba exatamente quais bens e valores foram sequestrados e quais foram arrestados.

Essa diferenciação se torna tanto mais necessária quando se trata de cautelar decretada em caso de imputação de crime de lavagem de capitais, situação em que, por expressa determinação legal, inverte-se o ônus da prova, devendo o acusado, que pretenda ter seus ativos disponibilizados, provar a origem lícita dos bens, em caso de decretação de sequestro.

Caso se trate de constrição cautelar com natureza de arresto — e, repita-se, a natureza da medida deve estar definida na decisão — é preciso, antes de tudo, dimensionar, com base em dados fáticos, o prejuízo causado, para que se tenham os parâmetros correspondentes para a medida.

Apenas um exemplo: em casos de crime de corrupção, há decisões cautelares, visando futura reparação de danos, que tomam como parâmetro o valor da propina paga a determinado funcionário público, o que, por óbvio, nada tem a ver com prejuízo eventualmente causado ao erário. Aliás, pode-se dizer que, na verdade, nem sempre há prejuízo diretamente aferível e a ser ressarcido em caso de condenação por crime de corrupção, circunstância que parece ser diuturnamente desconsiderada.

Nas fraudes em licitações, é frequente a determinação de arresto de ativos de acusados, como base no valor recebido pela empresa de que são sócios, em contraprestação a serviços prestados no âmbito de determinado contrato, até mesmo quando não há indicação de superfaturamento. Ora, considerando terem sido prestados serviços, é possível afirmar que todo o valor contratado e recebido pela empresa em questão consiste em prejuízo a ser ressarcido? Parece claro que não.

Portanto, mesmo no que diz com pessoas físicas, em se tratando de indisponibilidade cautelar de bens, não se pode prescindir de critérios e parâmetros muito bem determinados, mormente, como se disse, em tempos de depressão econômica.

Retomemos agora o tema inicialmente proposto, qual seja, o das medidas cautelares penais contra o patrimônio de pessoas jurídicas.

No que se refere ao sequestro, embora a medida seja legítima, alguns cuidados devem ser tomados para que a cautelar não inviabilize o funcionamento da empresa antes de um juízo definitivo acerca da origem ilícita dos bens. Empresas em graves dificuldades econômicas deixam de pagar impostos, funcionários e credores. Exatamente por isso, é preciso ter cautela, ainda quando se trate de sequestro de ativos de origem supostamente ilícita.

Em artigo sobre a persecução penal contra sociedades empresárias, especialmente sobre o caso Arthur Andersen (3), a Professora Patrícia H. Bucy, da Universidade do Alabama, informou que a experiência no referido caso tornou os membros do Ministério Público americano mais cautelosos quando o alvo é uma corporação (4). Em seguida, explicou a Professora que além da preocupação no sentido de que persecuções penais agressivas podem destruir negócios viáveis, os órgãos de acusação querem que as corporações exponham atos ilícitos eventualmente ocorridos (5).

Em outras palavras: não fosse o comedimento na aplicação do direito penal e respectivas medidas cautelares,  recomendável para preservar empresas, também o seria como incentivo a que atos ilícitos praticados isoladamente por seus executivos ou funcionários sejam denunciados por seus departamentos de conformidade às instâncias adequadas, interna e externamente. Parece bastante claro ser um desincentivo ao correto funcionamento dos sistemas de compliance a possibilidade de que o disclosure acerca de ilicitudes praticadas no âmbito da sociedade findem por destruí-la.

Isso não quer dizer, por óbvio, que não se possa decretar sequestro sobre ativos ilícitos que tenham passado a compor o patrimônio de determinadas sociedades, mas sim que tais medidas devem ser empreendidas com alguma cautela, olhos postos no atual cenário de devastação econômica, em evidente processo de agravamento.

É preciso, em primeiro lugar, tratar o ativo circulante de empresas — necessário ao pagamento de funcionários e credores — de forma responsável.

De saída, a fungibilidade de valores depositados em conta corrente já dificulta a indicação de que tenham eles origem ilícita, salvo em casos específicos, em que se venha a determinar a indisponibilidade de depósitos que tenham sido feitos como exata contrapartida a atos ilícitos praticados. É evidente que estamos falando aqui de sociedades empresárias com real atividade operacional e não de empresas de fachada constituídas com o propósito de viabilizar o recebimento de valores de origem espúria.

Quanto ao ativo não circulante, a exemplo do imobilizado, é preciso que a decisão de sequestro traga fundadas suspeitas acerca do caminho do dinheiro percorrido, desde a realização do suposto ato ilícito até a aquisição do bem alvo da medida cautelar de sequestro.

Por fim, feitas já tantas considerações visando limitar, o quanto possível, o uso de medidas cautelares patrimoniais, notadamente em desfavor de pessoas jurídicas, cabe ainda tratar de eventuais alternativas de lege ferenda para garantir a manutenção das atividades econômicas de empresas contra as quais medidas cautelares patrimoniais sejam justificadas, a não ser nos casos em que a empresa é mera fachada, sem atividade alguma para além da prática criminosa.

Nesse sentido, é possível pensar na elaboração de mecanismos para preservar minimamente a liquidez de empresas, mesmo se e quando necessária a constrição cautelar de seus ativos.

A exemplo do que se fez em relação a medidas cautelares pessoais, criando-se alternativas às prisões preventivas, é possível pensar em opções para mitigar os efeitos nefastos das medidas cautelares patrimoniais contra pessoas jurídicas.

Nesse sentido, pode-se indicar,  a título de exemplo, a obrigatoriedade de contratação de auditorias externas e monitorias para fiscalizar medidas de proibição de distribuição de dividendos ou de saídas de caixa para fins não operacionais, depósito paulatino e viável — de acordo com o ability to pay a ser aferido por auditoria externa — de valores a serem futuramente perdidos, e ainda a prestação de garantias judiciais sob a forma de fiança bancária ou seguro-garantia, todas medidas a serem cumpridas em substituição ao sequestro dos ativos, principalmente daqueles destinados ao cumprimento de obrigações que digam respeito à sobrevivência da sociedade.

Em breve síntese, o que se pretende é demonstrar ser possível construir um direito penal — e, nesse caso, processual penal — que siga ao propósito último de servir à sociedade, não apenas para punir os responsáveis por violações intoleráveis às normas jurídicas, mas também para garantir que apenas esses, e não terceiros absolutamente alheios a essas infrações, venham a sofrer as graves consequências jurídicas, de natureza pessoal e patrimonial, próprias desse ramo do direito.

(1) Em: https://www.conjur.com.br/2019-ago-05/direito-defesa-bloqueio-bens-empresas-crimes-lavagem-dinheiro.

(2) Como se sabe, pelo direito brasileiro, apenas em casos de crimes ambientais, pessoas jurídicas podem figurar como acusadas em ações penais.

(3) A Arthur Andersen, uma das maiores empresas de auditoria do mundo, foi acusada e condenada por obstrução de justiça por ter supostamente destruído documentos de sua então cliente, Enron. Dois anos depois a condenação foi revista pela Suprema Corte americana.

(4) No sistema jurídico americano, pessoas jurídicas podem ser acusadas e condenadas criminalmente, sem as restrições do direito brasileiro. De qualquer forma, ainda que o texto trate de persecução penal, e não apenas de medidas cautelares, contra empresas, o alerta é plenamente aplicável para o que se pretende expor aqui.

(5) Disponível, mediante, assinatura, em:  https://heinonline.org/HOL/LandingPage?handle=hein.journals/amcrimlr44&div=44&id=&page= (página 1287).

Fernanda Lara Tórtima é advogada criminalista, sócia do Tórtima Tavares Borges Advogados Associados.

 é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

 é advogado, presidente do IREE — Instituto para a Reforma das Relações entre Estado e Empresa, é autor do bestseller “O Espetáculo da Corrupção”.

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Paulo Torquato: Cláusula de força maior ganha importância nos contratos

O avanço da Covid-19 em nível global e a decretação de pandemia pela Organização Mundial da Saúde criaram um impacto exponencial negativo jamais visto na atividade econômica, em um efeito cascata sobre diversos setores produtivos, aumentando as incertezas das organizações quanto à possibilidade de cumprimento de contratos celebrados.

Tais impactos levam as partes contratantes à discussão sobre a necessidade de renegociação de cláusulas contratuais ou, em casos mais extremos, pressionam para a aplicação do instituto da força maior do Código Civil (artigo 393), previsto em alguns contratos, o qual exclui a responsabilidade do devedor pelo inadimplemento das obrigações em razão de acontecimentos imprevisíveis e inevitáveis quando da celebração do contrato e que conduzam a  um impedimento real e comprovado do seu cumprimento.

A questão que se coloca no atual momento é se a pandemia da Covid-19, a priori, pode ser considerada um  motivo de força maior que possa gerar um empecilho para o cumprimento das obrigações previstas no contrato, seja de forma temporária ou definitiva.  

A pandemia em si, de forma estritamente genérica, não é motivo de força maior sob a luz do Direito brasileiro. A configuração de elementos comuns para sua aplicação, contudo, como a imprevisibilidade do evento e seus impactos para o cumprimento de determinadas obrigações essenciais à atividade em questão, possibilita a aplicação do mecanismo jurídico.

Pela leitura do artigo 393 do Código Civil, o devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior se não tiver responsabilidade expressa por eles. O caso fortuito ou de força maior verifica-se ainda quando os efeitos decorrentes do acontecimento não podem ser evitados ou impedidos.

Dessa forma, para aplicação do instituto da força maior, deve ser realizada uma análise completa dos impactos concretos decorrentes do evento, através dos fatos que a motivaram e não apenas a sua simples presunção, a fim de excluir a responsabilidade daquele que quer se beneficiar de tal instituto.

No caso dos impactos causados pela Covid-19, os prejuízos de cada parte devem ser observados em uma avaliação cuidadosa sobre a possibilidade de continuidade de cumprimento das obrigações contratuais. Caso a Covid-19 resulte em significativo impacto nas operações de determinada parte, é necessário haver a devida comprovação da relação direta do evento imprevisível com os efeitos  que deram causa ao inadimplemento ou desequilíbrio contratual, como a perda de faturamento ou o fechamento de estabelecimentos determinadas pelo poder público, entre outras provas.

A revisão dos termos contratuais só é possível, por assim dizer, mediante a apresentação de provas substanciais. Vale destacar que essa exigência se aplica sobretudo aos contratos que possuem cláusulas genéricas que versam sobre força maior e não àqueles que possuem cláusulas específicas e abrangentes, determinando quais são as hipóteses que ensejam a alegação de força maior, como, por exemplo, contratos de seguro. Estes possuem entre as excludentes de força maior as pandemias, ou contratos que tenham como território países em moratória/default, impedindo ou dificultando assim a remessa/pagamento de royalties ou demais valores em moeda estrangeira.

Importante ainda observar que o devedor em mora ou contumaz não pode alegar força maior quando a pandemia causou impacto em sua atividade, se este já estava em descumprimento contratual.

O cenário polêmico e incerto atual demonstra que será necessário que a parte contratante entenda o ponto de partida do contrato para se posicionar quanto a uma possível negociação, bem como estar preparado para lidar com qualquer situação adversa, evitando, na medida do possível, que tais decisões e consequências sejam arbitradas por um terceiro alheio às partes.

Certo é que os acontecimentos advindos da Covid-19, ensinam que as partes contratantes deverão, daqui por diante, atentar para a previsão contratual de cláusula de força maior decorrente de pandemias e isolamento social, assim como delinear cenários estratégicos para cada relação contratual, com balanceamento de riscos e revisão de direitos e obrigações de cada parte.

 é advogado do escritório Montaury Pimenta, Machado & Vieira de Mello.