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Tomimaru e Peixoto: Depósitos de marcas relacionadas à Covid-19

O mundo que conhecíamos ficou para trás. Esse é entendimento de grande parte da sociedade que acredita em um “novo mundo” pós-pandemia. Os impactos sociais, culturais, econômicos e políticos, especialmente referentes à prevenção e saúde, são inevitáveis, ocasionando em uma mudança significativa da sociedade em vários aspectos. Além dessas mudanças, alguns reflexos serão vistos no campo da propriedade intelectual, principalmente no que tange ao Direito Marcário e o ordenamento jurídico.

A palavra “coronavírus”’ ganhou visibilidade mundial, posto que é possível nos depararmos com tal expressão facilmente em qualquer noticiário e/ou redes sociais. Sendo assim, não demorou muito para que terceiros depositassem pedidos de registro de marca relativos à pandemia da Covid-19 nos escritórios de marcas ao redor do mundo.

A tentativa de capitalizar sobre uma tragédia de proporção mundial desencadeia questões jurídicas e éticas, além de outras diversas. Dessa forma, em pelo menos alguns casos, esses depósitos certamente enfrentarão alguns obstáculos legais que podem resultar em seu indeferimento.

Em razão de a China ser um dos países que mais recebeu depósitos de marcas relacionados à Covid-19, o escritório de marcas chinês emitiu Diretrizes para o Exame de Marcas Relacionadas à Prevenção e Controle de Epidemia. Nessa esteira, na tentativa de evitar depósitos maliciosos referentes à pandemia, o Departamento de Supervisão do Mercado Distrital de Chaoyang impôs uma multa de 100.000 RMB (aproximadamente R$ 75 mil) à Agência Internacional de Propriedade Intelectual de Beijing Yijie Shunda, pois a mesma depositou marcas em nome de dois clientes, usando os nomes de dois hospitais em Wuhan que tratam pacientes infectados pelo vírus. Ao realizar uma investigação, o departamento determinou que a agência cessasse suas atividades e impôs a multa máxima permitida no auxílio de registros de má-fé.

Já os Estados Unidos têm enfrentado outro problema, qual seja, a comercialização de marcas relativas a “coronavírus”, reivindicando a proteção de produtos destinados à prevenção ou cura da Covid-19. Em outras palavras, os depositantes buscam conseguir o registro para vender a marca posteriormente às indústrias farmacêuticas ou convênios de saúde.

No Brasil, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) já recebeu pedidos de registro, como “Covid”, “CoronaVírus”, “MataCorona”, “Quarentena” e “Quarentena Bar”.

Há uma grande expectativa na decisão do INPI, haja vista que as marcas relativas à pandemia serão consideradas muito valiosas.

Porém, em que pese já existir registros de marcas compostas com a expressão “corona”, há grandes chances de o INPI julgá-los improcedentes, por entender que tais pedidos esbarrariam em uma das hipóteses previstas no artigo 124 da Lei da Propriedade Industrial (LPI). Entre esses, é possível enquadrar os termos “Covid”, “MataCorona”, “coronavírus”, “Quarentena” e “Quarentena Bar” no inciso VI   “expressões de caráter genérico, comum ou vulgar”, pois a marca deve diferir de um termo necessário ou comum ao qual caracteriza o produto ou serviço sem a suficiente forma distintiva. Tanto é que o INPI, em 2007, indeferiu o pedido de registro nº 825692105, referente à marca “Quarentena”, com fundamento no referido inciso VI, do artigo 124 da LPI.

Nesse contexto, por tratar-se de uma expressão necessária a todas as classes, em especial nos dias atuais em decorrência do contexto da pandemia, na hipótese desses pedidos serem deferidos, é bem plausível prever um aumento no ajuizamento de ações, seja na busca de sua nulidade e/ou, na de proibir terceiros de usá-la sem a autorização de seu titular.

A exclusividade decorrente do registro de uma marca genérica cria entraves indevidos à livre concorrência, pois nas situações em que o depositante se apropria de um termo genérico como uma marca, impede-se que terceiros concorrentes usem uma expressão comum, necessária ou genérica em seu segmento econômico.

Ainda em relação aos pedidos de registros referente as marcas “MataCorona” e “coronavírus” para álcool e comércio de desinfetantes, respectivamente, o INPI poderá impedir o registro com base no inciso X do artigo 124 da LPI, tendo em vista a previsão de proibição de registro para qualquer  “sinal que induza falsificação quanto à origem, procedência, natureza, qualidade ou utilidade do produto ou serviço a que a marca se destina”.

Pelo fato de a descoberta da Covid-19 ser muito recente, não há estudos e testes que possam comprovar que determinado produto é capaz de matar o vírus, podendo induzir o consumidor a erro e, pior, colocar em risco a sua saúde ou vida, além de expor terceiros ao mesmo risco.

Portanto, a concessão de registro para as marcas relativas ao “coronavírus” podem causar os seguintes sintomas: 

I) Prejuízo à livre concorrência, impedindo que terceiros concorrentes se utilizem de expressão necessária e comum em seus produtos e/ou serviços; e

II) indução do consumidor em erro pelo fato de o produto não cumprir com o seu objetivo.

Além disso, temos a esperança de que a cura e/ou o método de prevenção sejam encontrados.

Nesse sentido, não poderá haver impedimentos que restrinja a população ao conhecimento de outros produtos e/ou serviços disponíveis no mercado e que eventualmente poderão vir a serem fagocitados pelo monopólio das empresas que anteriormente depositaram o pedido de registro de marca referente aos termos associados à doença.

Uma alternativa viável a evitar esse desastroso cenário é o INPI emitir Diretrizes para o Exame de Marcas Relacionadas à Prevenção e Controle de Epidemia, como no caso da China.

Com toda a atenção do mundo voltada para a cura da doença e a criação da vacina que combata o vírus, caberá ao respectivo órgão responsável a cuidadosa análise dos eventuais pedidos de registro de marcas que contenham nome de doença em voga, afim de minimizar ao máximos os possíveis danos à saúde e à segurança jurídica que possivelmente serão desencadeadas.

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Bruno Caires: Vivemos tempos de terraplanismo jurídico

Em tempos em que temos a sensação de que o século XXI ainda não floresceu sobre nossa sociedade e o velho insiste em querer governar, não é raro nos depararmos com situações que de tão absurdas são relegadas ao risível. Porém, tal qual o paradoxo da tolerância, no qual ser tolerante até as últimas consequências efetiva a intolerância, fazer troça do absurdo parece legitimá-lo. Há situações nas quais as circunstâncias não possibilitam ignorar o óbvio, se há fantasmas, temos a obrigação de espantá-los, sejam eles reais ou não.

Por isso, não custa retomar certos conceitos sobre Teoria da Constituição e sua construção, passível de ser definida, entre outros, como uma teoria sobre a legitimidade do poder para atribuir reconhecimento às instituições políticas criadas quando se toma a decisão política fundamental de instituir um Estado Novo. A ideia que normalmente se associa à figura do poder constituinte originário consiste em caracterizar esse poder como uma força capaz de criar, a partir de uma ruptura com o poder político vigente, uma ordem jurídica, política e social, sem qualquer limitação a conteúdos jurídicos anteriores.

Por vezes passa despercebido uma sutil, porém fundamental, distinção conceitual promovida por Canotilho, que define em três verbos diferentes experiências constituintes: os ingleses compreendem o poder constituinte como um processo histórico de revelação da “constituição da Inglaterra”; os americanos dizem num texto escrito, produzido por um poder constituinte, “the fundamental and Paramount law of the nation”; os franceses criam uma nova ordem político-jurídica através da “destruição” do antigo e da “construção’ do novo, traçando a arquitetura da nova “cidade política” num texto escrito. Assim, “revelar’, “dizer” e “criar” são os modi operandi de diferentes experiências constituintes. São de sobremaneira importantes estas distinções colocadas, pois criam tradições constitucionais bem distintas.

Na lógica da teologia política da Europa na Revolução Francesa, o povo, instituído como ator político capaz de derrubar o regime e cortar as cabeças da monarquia, vê-se em um momento de elevada consciência política e de apropriação do espaço público. Esse instante de crise gerado pela efervescência revolucionária produz um momento histórico singular, que permite a criação de uma nova ordem política por meio de uma constituição.

Por certo, nosso movimento político que consubstanciou na Constituição de 88, embora despido de efervescência revolucionária, foi produto de uma ação do povo (Diretas Já, greves gerais) instituído como ator político que derrubou o regime vigente. A consciência política e a apropriação do espaço público por esse povo organizado possibilitaram a derrubada da ditadura militar e a criação de uma nova ordem política descrita na Constituição, o que, intuitivamente, por si só, demonstra o tamanho da contradição em pretender extrair a possibilidade de tutela militar de quaisquer uns de seus artigos.

Aventar atribuir alguma função política aos militares para além daquelas adstritas à defesa inexoravelmente ignora a essência da Constituição, que, conforme as lições de Schmitt, não está contida numa lei ou numa norma, porque toda normatização reside de uma decisão política do titular do poder constituinte, o povo como ator político organizado na democracia. Esta essência, ou “fenômeno originário”, é a aclamação, o grito de “aprovação ou de recusa da massa reunida”. Portanto, antes que seja forjada a Constituição, é imprescindível que seja feita uma pergunta fundamental, capaz de atribuir legitimidade à decisão política fundamental através da organização dos desejos esparsos na sociedade.

É evidente e, se de outro modo fosse, não existiria razão para criar uma nova ordem constitucional, que a pergunta oferecida à sociedade brasileira consistia em superar ou não o regime ditatorial e recebeu como resposta um uníssono coro sinalizando uma transcendente vontade de construir um futuro democrático. Assim, a razão de ser de nossa Constituição é, precisamente, a construção de um futuro democrático e é justamente nessa ideia de Direito que reside sua força normativa.

Nessa perspectiva, a Constituição nada mais é senão a resposta que a sociedade dá à crise política vivida no momento constituinte e as ideias (utopias) que exprime como norte a ser buscado pelo Estado que pretende instituir. Do ponto de vista da legitimidade política, e aqui fazendo uma abstração do conceito jurídico normativo, a ser indagado sobre para que serve uma Constituição, a resposta do corpo social poderia ser dada parafraseando Eduardo Galeano: a Constituição está lá no horizonte e serve para caminharmos em direção à superação da crise. A sociedade se aproxima dois passos, ela se afasta dois passos. Caminha dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que caminhemos, jamais alcançaremos. Para que serve a Constituição? Serve para isto: para que não deixemos de caminhar em direção ao Estado idealizado em um instante político revolucionário.

Esse Estado brasileiro criado tal qual a tradição francesa destrói a ordem política anterior em movimento característico de ruptura. Tal alinhamento teórico é demonstrável na medida em que a própria Constituição insiste em regular diversas minúcias da vida cotidiana, em clara preocupação de constitucionalizar temas ordinários como medida afirmativa dessa transgressão. Se do ponto de vista jurídico esse processo é claramente demonstrável em virtude da própria necessidade de se promulgar uma nova Constituição, também é fato que as forças reais de poder impediram, no caso brasileiro, o “corte das cabeças” dos ditadores, salvos pela Lei da Anistia.

Como presumível, o fato de terem mantido intacto os pescoços apenas reforça o argumento de que perderam o protagonismo. Se o presidente Bolsonaro outrora bradava para forças de esquerda no congresso: “Perderam em 64, perderam em 2016”, não há dúvidas de que os militares perderam em 88, com a singularidade que dessa derrota resultou uma nova ordem constitucional, construída sobre os conceitos de Estado e sociedade daquela quebra de ordem. Esses conceitos, ao serem fixados por meio de uma expressão de linguagem que como tal um texto escrito —, carrega uma forte carga axiológica em sua semântica, não autoriza nenhuma possibilidade de interpretação que permita o país viver sobre qualquer tutela militar.

Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no discurso de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, dizia que ela havia sido escrita com “sopro de gente”, com “ódio e nojo à ditadura” e que “a nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”. A mudança ao qual se referia era, acima de todas as outras coisas, uma mudança para o regime democrático e toda sua bagagem de respeito aos direitos humanos e fundamentais.

Temos por claro que a ordem constitucional não se restringe à literal manifestação do poder constituinte. A construção da ordem constitucional pertence à sua comunidade política e inicia-se no momento da promulgação da constituição. Conforme precisamente delimitado por Häberle, a Constituição não se limita a ser um conjunto de normas jurídicas, mas é expressão de desenvolvimento cultural e político de todo um povo que fundamenta nela suas esperanças e desejos. A Constituição, enquanto documento escrito, dotado de legitimidade democrática, de rigidez e supremacia normativa, é ponto de partida do processo de vivência constitucional, que apenas se inicia com o apagar das luzes do trabalho constituinte, carregando consigo uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado.

As barreiras do texto impõem ao intérprete apenas duas posturas possíveis, conforme lecionado por Canotilho: a primeira, adotada por aqueles que conscientemente aderem a concepções ideológicas e políticas distintas da mensagem ideológica consagrada no texto, utilizando-se de fundamentos interpretativos que lhes permitam amesquinhar a estrutura normativa da Constituição. Foi a orientação seguida à risca pelos nazistas, perante a Constituição de Weimar, por aqueles que, combatendo o caráter progressista, liberal e democrático do texto, acabaram por sobrecarregar a Constituição real, banalizando seu caráter normativo. Há, contudo, uma posição que guarda sintonia com os princípios fundamentais atinentes à conformação política e jurídica da sociedade, ao qual caracteriza por ser um “prudente positivismo”, indispensável à manutenção da obrigatoriedade normativa do texto constitucional.

Por esta razão, também o texto é um limite ideológico que estabelece o ponto de partida para a interpretação. A ideologia constitucionalmente adotada é perfeitamente determinável e definível no bojo do discurso constitucional, vinculando o interprete na medida em que repudia a postura assumida por quantos optam por concepções ideológicas dela diferentes. Assim, ideologias que não se conformem com o Estado democrático de Direito, como essa impertinente insistência em atribuir protagonismo político às Forças Armadas, resultariam em interpretações inconstitucionais e destoariam do compreendido como limites à atuação política dentro da sociedade brasileira. É justamente o caso daqueles que buscam extrair do artigo 142 da Constituição Federal algum tipo de autorização para as Forças Armadas intervirem em algum conflito entre os poderes. Desnecessário anuir que a Constituição repele qualquer tipo de intervenção militar constitucional. Trata-se do mais claro oxímoro já produzido no debate público brasileiro.

Bruno César de Caires é sócio do escritório Caires, Marques e Mazzaro Advogados, mestrando em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa e professor assistente de Direito Constitucional na PUC de São Paulo.