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Bruno Caires: Vivemos tempos de terraplanismo jurídico

Em tempos em que temos a sensação de que o século XXI ainda não floresceu sobre nossa sociedade e o velho insiste em querer governar, não é raro nos depararmos com situações que de tão absurdas são relegadas ao risível. Porém, tal qual o paradoxo da tolerância, no qual ser tolerante até as últimas consequências efetiva a intolerância, fazer troça do absurdo parece legitimá-lo. Há situações nas quais as circunstâncias não possibilitam ignorar o óbvio, se há fantasmas, temos a obrigação de espantá-los, sejam eles reais ou não.

Por isso, não custa retomar certos conceitos sobre Teoria da Constituição e sua construção, passível de ser definida, entre outros, como uma teoria sobre a legitimidade do poder para atribuir reconhecimento às instituições políticas criadas quando se toma a decisão política fundamental de instituir um Estado Novo. A ideia que normalmente se associa à figura do poder constituinte originário consiste em caracterizar esse poder como uma força capaz de criar, a partir de uma ruptura com o poder político vigente, uma ordem jurídica, política e social, sem qualquer limitação a conteúdos jurídicos anteriores.

Por vezes passa despercebido uma sutil, porém fundamental, distinção conceitual promovida por Canotilho, que define em três verbos diferentes experiências constituintes: os ingleses compreendem o poder constituinte como um processo histórico de revelação da “constituição da Inglaterra”; os americanos dizem num texto escrito, produzido por um poder constituinte, “the fundamental and Paramount law of the nation”; os franceses criam uma nova ordem político-jurídica através da “destruição” do antigo e da “construção’ do novo, traçando a arquitetura da nova “cidade política” num texto escrito. Assim, “revelar’, “dizer” e “criar” são os modi operandi de diferentes experiências constituintes. São de sobremaneira importantes estas distinções colocadas, pois criam tradições constitucionais bem distintas.

Na lógica da teologia política da Europa na Revolução Francesa, o povo, instituído como ator político capaz de derrubar o regime e cortar as cabeças da monarquia, vê-se em um momento de elevada consciência política e de apropriação do espaço público. Esse instante de crise gerado pela efervescência revolucionária produz um momento histórico singular, que permite a criação de uma nova ordem política por meio de uma constituição.

Por certo, nosso movimento político que consubstanciou na Constituição de 88, embora despido de efervescência revolucionária, foi produto de uma ação do povo (Diretas Já, greves gerais) instituído como ator político que derrubou o regime vigente. A consciência política e a apropriação do espaço público por esse povo organizado possibilitaram a derrubada da ditadura militar e a criação de uma nova ordem política descrita na Constituição, o que, intuitivamente, por si só, demonstra o tamanho da contradição em pretender extrair a possibilidade de tutela militar de quaisquer uns de seus artigos.

Aventar atribuir alguma função política aos militares para além daquelas adstritas à defesa inexoravelmente ignora a essência da Constituição, que, conforme as lições de Schmitt, não está contida numa lei ou numa norma, porque toda normatização reside de uma decisão política do titular do poder constituinte, o povo como ator político organizado na democracia. Esta essência, ou “fenômeno originário”, é a aclamação, o grito de “aprovação ou de recusa da massa reunida”. Portanto, antes que seja forjada a Constituição, é imprescindível que seja feita uma pergunta fundamental, capaz de atribuir legitimidade à decisão política fundamental através da organização dos desejos esparsos na sociedade.

É evidente e, se de outro modo fosse, não existiria razão para criar uma nova ordem constitucional, que a pergunta oferecida à sociedade brasileira consistia em superar ou não o regime ditatorial e recebeu como resposta um uníssono coro sinalizando uma transcendente vontade de construir um futuro democrático. Assim, a razão de ser de nossa Constituição é, precisamente, a construção de um futuro democrático e é justamente nessa ideia de Direito que reside sua força normativa.

Nessa perspectiva, a Constituição nada mais é senão a resposta que a sociedade dá à crise política vivida no momento constituinte e as ideias (utopias) que exprime como norte a ser buscado pelo Estado que pretende instituir. Do ponto de vista da legitimidade política, e aqui fazendo uma abstração do conceito jurídico normativo, a ser indagado sobre para que serve uma Constituição, a resposta do corpo social poderia ser dada parafraseando Eduardo Galeano: a Constituição está lá no horizonte e serve para caminharmos em direção à superação da crise. A sociedade se aproxima dois passos, ela se afasta dois passos. Caminha dez passos e o horizonte corre dez passos. Por mais que caminhemos, jamais alcançaremos. Para que serve a Constituição? Serve para isto: para que não deixemos de caminhar em direção ao Estado idealizado em um instante político revolucionário.

Esse Estado brasileiro criado tal qual a tradição francesa destrói a ordem política anterior em movimento característico de ruptura. Tal alinhamento teórico é demonstrável na medida em que a própria Constituição insiste em regular diversas minúcias da vida cotidiana, em clara preocupação de constitucionalizar temas ordinários como medida afirmativa dessa transgressão. Se do ponto de vista jurídico esse processo é claramente demonstrável em virtude da própria necessidade de se promulgar uma nova Constituição, também é fato que as forças reais de poder impediram, no caso brasileiro, o “corte das cabeças” dos ditadores, salvos pela Lei da Anistia.

Como presumível, o fato de terem mantido intacto os pescoços apenas reforça o argumento de que perderam o protagonismo. Se o presidente Bolsonaro outrora bradava para forças de esquerda no congresso: “Perderam em 64, perderam em 2016”, não há dúvidas de que os militares perderam em 88, com a singularidade que dessa derrota resultou uma nova ordem constitucional, construída sobre os conceitos de Estado e sociedade daquela quebra de ordem. Esses conceitos, ao serem fixados por meio de uma expressão de linguagem que como tal um texto escrito —, carrega uma forte carga axiológica em sua semântica, não autoriza nenhuma possibilidade de interpretação que permita o país viver sobre qualquer tutela militar.

Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte, no discurso de promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, dizia que ela havia sido escrita com “sopro de gente”, com “ódio e nojo à ditadura” e que “a nação quer mudar. A nação deve mudar. A nação vai mudar. A Constituição pretende ser a voz, a letra, a vontade política da sociedade rumo à mudança”. A mudança ao qual se referia era, acima de todas as outras coisas, uma mudança para o regime democrático e toda sua bagagem de respeito aos direitos humanos e fundamentais.

Temos por claro que a ordem constitucional não se restringe à literal manifestação do poder constituinte. A construção da ordem constitucional pertence à sua comunidade política e inicia-se no momento da promulgação da constituição. Conforme precisamente delimitado por Häberle, a Constituição não se limita a ser um conjunto de normas jurídicas, mas é expressão de desenvolvimento cultural e político de todo um povo que fundamenta nela suas esperanças e desejos. A Constituição, enquanto documento escrito, dotado de legitimidade democrática, de rigidez e supremacia normativa, é ponto de partida do processo de vivência constitucional, que apenas se inicia com o apagar das luzes do trabalho constituinte, carregando consigo uma força própria, motivadora e ordenadora da vida do Estado.

As barreiras do texto impõem ao intérprete apenas duas posturas possíveis, conforme lecionado por Canotilho: a primeira, adotada por aqueles que conscientemente aderem a concepções ideológicas e políticas distintas da mensagem ideológica consagrada no texto, utilizando-se de fundamentos interpretativos que lhes permitam amesquinhar a estrutura normativa da Constituição. Foi a orientação seguida à risca pelos nazistas, perante a Constituição de Weimar, por aqueles que, combatendo o caráter progressista, liberal e democrático do texto, acabaram por sobrecarregar a Constituição real, banalizando seu caráter normativo. Há, contudo, uma posição que guarda sintonia com os princípios fundamentais atinentes à conformação política e jurídica da sociedade, ao qual caracteriza por ser um “prudente positivismo”, indispensável à manutenção da obrigatoriedade normativa do texto constitucional.

Por esta razão, também o texto é um limite ideológico que estabelece o ponto de partida para a interpretação. A ideologia constitucionalmente adotada é perfeitamente determinável e definível no bojo do discurso constitucional, vinculando o interprete na medida em que repudia a postura assumida por quantos optam por concepções ideológicas dela diferentes. Assim, ideologias que não se conformem com o Estado democrático de Direito, como essa impertinente insistência em atribuir protagonismo político às Forças Armadas, resultariam em interpretações inconstitucionais e destoariam do compreendido como limites à atuação política dentro da sociedade brasileira. É justamente o caso daqueles que buscam extrair do artigo 142 da Constituição Federal algum tipo de autorização para as Forças Armadas intervirem em algum conflito entre os poderes. Desnecessário anuir que a Constituição repele qualquer tipo de intervenção militar constitucional. Trata-se do mais claro oxímoro já produzido no debate público brasileiro.

Bruno César de Caires é sócio do escritório Caires, Marques e Mazzaro Advogados, mestrando em Direito Constitucional na Universidade de Lisboa e professor assistente de Direito Constitucional na PUC de São Paulo.

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Marina Amari: A Covid-19 e o planejamento sucessório

Sabe-se com precisão o ponto de partida da Covid-19. Até o momento, contudo, seu término parece não ter data. Ficar em quarentena até a descoberta da vacina? Continuar a abertura gradual do comércio? Perguntas sem respostas. Não se sabe, tampouco, as medidas a serem adotadas a longo prazo. Afinal, quanto tempo durará o longo prazo?    

O pânico inicial gerado pela pandemia da Covid-19 vai se tornando, aos poucos, combustível para a reestruturação social e econômico-financeira. A quarentena que duraria um mês se estende e faz com que a sociedade a ela se amolde. Utilizando-se de sua arte de (quase) sempre se adaptar à dificuldade, o indivíduo espanta sua zona de conforto e obriga-se a encontrar meios de educar, trabalhar e até mesmo consumir nesse período. As tecnologias destacam-se como fortes aliadas desse tempo em que tudo é volátil. A criatividade ganha espaço. Plataformas digitais são construídas para suprir o que antes apenas estava projetado presencialmente.

Em meio a um cenário no qual a incerteza impera, o mínimo de previsibilidade é, mais do que bem-vindo, essencial.

Com números exponenciais de vitimados que abrangem majoritariamente a população idosa, os cartórios do Paraná registraram um crescimento de 70% na procura por testamentos, segundo dados apresentados pela Gazeta do Povo [1]. De mesmo modo, profissionais são procurados para a elaboração de demais atos típicos de um planejamento sucessório. A preocupação com o aumento da tributação é apontada como um fator decisivo nessa mudança [2].

Apesar da inabitualidade de planejamento ─ em todos os seus aspectos ─ na vida dos brasileiros, e o fato de o assunto ser corriqueiramente evitado no seio familiar, o planejamento sucessório passa de mera ferramenta voltada a reduzir o pagamento de tributos, a uma escolha inteligente nesse momento.

Por meio dele, é possível driblar as amarras da sucessão hereditária e a complexidade das normas sucessórias. Isso porque atua em várias frentes, reduz a carga tributária e antecipa atos em vida. Sem que haja previsão de mudanças na legislação sucessória, ainda que tramite projeto de lei com fins de dar maior autonomia ao proprietário do patrimônio [3], é a maneira atual pela qual se evitam conflitos sucessórios e se protegem os bens familiares, respeitada a vontade de quem detém sua titularidade.

O planejamento sucessório é avaliado de acordo com a estrutura familiar e patrimonial, podendo contar com uma conjugação de alternativas jurídicas, como a elaboração de holdings, a doação em vida, a implementação de usufruto, a criação de acordo de acionistas e sócios.

O testamento é ferramenta essencial a um bom planejamento, e suas limitações legais devem ser conjugadas com essas outras alternativas legais a fim de formatar a arquitetura sucessória almejada.

Visando a evitar os problemas que envolvem a invalidação de um testamento, mais recentemente conhecidos em razão da repercussão midiática de figuras públicas, o testador deve se atentar à legítima, correspondente a 50% do patrimônio. Assim, quem possui um ou mais herdeiros necessários (cônjuge, descendentes e ascendentes) pode dispor da outra metade, beneficiando, por exemplo, um terceiro, ou apenas um dos filhos.

A observância da discussão envolvendo o enquadramento do companheiro ─ termo utilizado para parceiros em união estável ─ como herdeiro necessário também é essencial na formulação do planejamento. Isso porque recentemente o STF estendeu ao companheiro as regras sucessórias aplicáveis ao cônjuge. Ainda que na decisão não houvesse discussão direta sobre o alcance do julgado, tendo, de fato, ficado aberto o enquadramento ou não do companheiro como herdeiro necessário, a tendência do Direito de Família e Sucessório atual é a de equiparação dos efeitos do casamento à união estável.

Ademais, é fundamental que seja feito um levantamento dos bens do sucessor, pois não existe fórmula pronta para a implementação das medidas. O trabalho de profissionais especializados consubstancia-se na construção da melhor estratégia, qual seja, a que irá sustentar a vontade do proprietário dos bens.

O planejamento sucessório envolve, necessariamente, um planejamento tributário. A opção pelas holdings, por exemplo, além de estratégia de concentração empresarial, é interessante porque há imunidade tributária do ITBI, em boa parte dos casos [4], quando se incorpora patrimônio à pessoa jurídica em realização de capital. Significa dizer que, se pensado estrategicamente, é possível evitar esse imposto no ato de transferência de imóveis para a holding.

Não sem razão, fundadores de empresas familiares estão se atentando para a necessidade de compatibilização da família, da gestão e do patrimônio. A preocupação é pertinente. Afinal, dados do IBGE e do Sebrae demonstram que a absoluta maioria (90%) dos empreendimentos nacionais correspondem a empresas familiares, mas 30% sucedem à segunda geração e apenas 5% atingem a terceira [5] [6]. A Pesquisa Global da PwC demonstra que 72,4% das empresas familiares não apresentam plano de sucessão [7].

Os mecanismos de proteção patrimonial, especialmente em relação às empresas, são variados. Regras sobre governança, formulação de pactos antenupciais e a contratação de previdência privada são geralmente implementadas. A antecipação da legítima, com a gravação da participação societária com cláusulas de impenhorabilidade, incomunicabilidade, inalienabilidade e usufruto também é medida que pode ser levada a cabo dentro do ambiente empresarial.

É, portanto, recomendada a concentração de esforços para um adequado planejamento sucessório, que equilibre as imposições legais com a autonomia privada do titular dos bens. É, enfim, maneira de assegurar um mínimo de previsibilidade.

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[1] FONTES, Juliana. Cartório do PR registram aumento de 70% em testamentos por causa do coronavírus. Gazeta do Povo. 23/03/2020. Acesso em 03 de abril de 2020. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/parana/cartorios-aumento-testamentos-coronavirus/.

[2] GREGORIO, Rafael. Covid-19 faz crescer consultas sobre sucessão entre gestores e advogados. Valor Investe. Acesso em 14 de maio de 2020. Disponível em: https://valorinveste.globo.com/objetivo/organize-as-contas/noticia/2020/04/20/covid-19-faz-crescer-consultas-sobre-sucessao-entre-gestores-e-advogados.ghtml.

 

[3] De autoria da Senadora Soraya Thronicke, o Projeto de Lei nº 3799/2019 visa à modernização do direito sucessório inscrito no Código Civil, prevendo alterações no tocante aos herdeiros necessários, a ampliação das hipóteses de deserdação, a diminuição das burocracias, etc.

[4] O artigo 156, §2º, I, da Constituição Federal prevê que não incidirá o ITBI na transmissão de bens ou direitos incorporados ao patrimônio da pessoa jurídica em realização de capital, nem sobre a transmissão de bens ou direitos decorrentes de fusão, incorporação, cisão ou extinção da pessoa jurídica, salvo se “a atividade preponderante do adquirente for a compra e venda desses bens ou direitos, locação de bens imóveis ou arrendamento mercantil”.

[5] ABREU, Vitor. Os desafios da empresa familiar: gestão e sucessão. Sebrae. Acesso em 13 de maio de 2020. Disponível em:https://m.sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/ufs/pe/artigos/os-desafios-da-empresa-familiar-gestao-e-sucessao,fae9eabb60719510VgnVCM1000004c00210aRCRD.

[6] Folha de Londrina. Acesso em 13 de maio de 2020. Disponível em: http://www.sebrae-sc.com.br/newart/default.asp?materia=10410.

[7] SAMPAIO, Luciano. Empresas familiares e planos de sucessão. PwC. Acesso em 13 de maio de 2020. Disponível em: https://www.pwc.com.br/pt/sala-de-imprensa/artigos/empresas-familiares-e-plano-de-sucessao.html.

Marina Amari é advogada, integrante do escritório Assis Gonçalves, Kloss Neto, Advogados Associados e mestranda em Direito das Relações Sociais pela Universidade Federal do Paraná.