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Humberto Martins: Marco Aurélio, 30 anos de contribuição à nação

Paga-se um preço por se viver em uma democracia e ele não é exorbitante, mas módico, encontrando-se ao alcance de todos os homens de boa vontade. Implica apenas o respeito irrestrito ao arcabouço normativo” [1]. Esse excerto, por si só, suscita reflexões várias, mas hoje nos ateremos ao seu autor, o Ministro Marco Aurélio.

Em 13 de junho de 1990, há exatos 30 anos, tomou posse no Supremo Tribunal Federal o Ministro Marco Aurélio Mendes de Farias Mello, em vaga decorrente da aposentadoria do saudoso Ministro Carlos Madeira. Trazia ele uma trajetória que comprovava notável experiência para os seus 43 anos.

Após bacharelar-se, em 1973, em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, instituição pela qual concluiu posteriormente o mestrado em Direito Privado, atuou como advogado no Foro do Estado do Rio de Janeiro, na chefia do Departamento de Assistência Jurídica e Judiciária do Conselho Federal dos Representantes Comerciais do Rio de Janeiro, bem como na Federação dos Agentes Autônomos do Comércio do Antigo Estado da Guanabara. De 1975 a 1978, foi integrante do Ministério Público do Trabalho e, de 1978 a 1981, juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 1ª Região. Em 1981, foi nomeado Ministro do Tribunal Superior do Trabalho, cargo que desempenhou até 1990, quando ocorreu sua nomeação para a Suprema Corte. Exerceu, ainda, por três vezes, o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral, nos períodos correspondentes a junho de 1996 a junho de 1997, maio de 2006 a maio de 2008 e novembro de 2013 a maio de 2014, sendo bastante lembrado por presidir a corte eleitoral quando o Brasil experimentou a primeira eleição por voto eletrônico em 1996. Como se não bastasse, o Ministro Marco Aurélio dedicou-se à docência em faculdades de direito, contribuindo para a formação de muitos profissionais da área jurídica [2].

Numa das ocasiões em que ocupou interinamente a presidência da República, foi o Ministro Marco Aurélio quem sancionou a Lei nº 10.461/2002, que criou a TV Justiça, canal reservado ao Supremo Tribunal Federal para, de modo pioneiro, divulgar atos do Poder Judiciário e serviços essenciais à Justiça e que, atualmente, leva informação jurídica a todos os cidadãos brasileiros.

É, sem dúvida, uma honrada e profícua carreira pública, ainda mais quando quem a desempenha é pessoa de notórias qualidades, profissionais e humanas.

Desbravando a interpretação da então recente Constituição de 1988, marcaram o Ministro Marco Aurélio, desde logo, a sabedoria e a espirituosidade no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Essas características se projetaram aos dias atuais, sendo reforçadas por seu empenho em cultivar o mesmo afinco e a mesma emoção com os quais iniciou na Suprema Corte em 1990 afinco e emoção hoje ainda mais redivivos, visto que ganharam as tintas da experiência dessas três décadas.

Em todos esses anos como juiz constitucional, o Ministro Marco Aurélio demonstra zelo constante pelos valores da Justiça; afinal, não se deve invertê-los, sob o risco latente de deturpações, tais como o “justiçamento’ e o atropelo ao devido processo legal, capazes, a exemplo do direito penal, de nivelar os números da “população carcerária provisória” aos números da “população carcerária definitiva” e, sobretudo, de frustrar as expectativas da sociedade.

Sua preocupação com os direitos humanos e os direitos sociais sempre vem expressa em seus julgados, como no emblemático caso em que determinou que um Estado da federação providenciasse a acessibilidade das escolas a cadeirantes ou nos casos em que compreendeu a luta de professores da rede pública por melhores condições de ensino e remuneratórias.

O Ministro Marco Aurélio, a quem se presta hoje esta homenagem (que, embora sincera, nem de longe consegue abranger a dimensão de seu contributo à nação), é um respeitoso apreciador do debate e da dialética, um incentivador de novos olhares sobre o Direito. Isso explica o fato de que, como exímio formador de jurisprudência e fiel a seu posicionamento de vanguarda, muitas de suas teses, ainda que não hajam sido vencedoras num primeiro momento, despertaram intrigantes reflexões no colegiado e, depois, vieram a formar jurisprudência pacífica na Suprema Corte. Que o digam seus votos sobre a inconstitucionalidade da prisão do depositário infiel, a declaração de inconstitucionalidade da vedação da progressão de regime aos réus condenados por crimes hediondos, a constitucionalidade da prisão apenas com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e o reconhecimento da infidelidade partidária!

A celeridade na prestação jurisdicional também é um dos faróis que norteiam a sua atuação na Suprema Corte. É sabida a prontidão com que o Ministro Marco Aurélio, de segunda a segunda, lavra suas decisões, assim como a apresentação de seus votos-vista ao colegiado em tempo hábil, tudo em nome da satisfação jurisdicional devida à sociedade.

Todos nós, magistrados e profissionais do Direito, sabemos quantas vezes o Ministro Marco Aurélio defendeu a harmonia entre os poderes, para que a cidadania não encontrasse seu derradeiro refúgio apenas num desses, mas, sim, fosse igualmente protegida e respeitada por todos eles; quantas vezes o Ministro Marco Aurélio exteriorizou sua preocupação com o crescente número de feitos que tramitam hoje no Judiciário brasileiro; e quantas vezes o Ministro Marco Aurélio reconheceu os interesses das minorias e dos “menos abastados”.

Nesses 30 anos no Supremo Tribunal Federal, Ministro Marco Aurélio, magistrado imparcial, erudito e à frente do pensamento comum, rendemos-lhe nossas sinceras homenagens. Creia que suas qualidades e predicados lhe asseguram a condição de um dos maiores magistrados deste país, mas, principalmente, evidenciam um ser humano de espírito altamente democrático.

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Ex-presidente do Palmeiras é condenado por atuação como cambista

Nenhum direito fundamental, tampouco a liberdade econômica, é absoluto, encontrando, isso sim, limites frente a outros direitos fundamentais, tal como ocorre diante do direito fundamental à regularidade das relações de consumo.

Mustafá Contursi foi presidente da Sociedade Esportiva Palmeiras entre 1993 e 2004
Reprodução

Com base nesse entendimento, o juiz Ulisses Augusto Pascolati Junior, do Juizado do Torcedor do Tribunal de Justiça de São Paulo, condenou por cambismo o ex-presidente do Palmeiras Mustafá Contursi, uma sócia do clube e um integrante de torcida organizada.

Consta nos autos que Contursi repassava para os outros dois réus ingressos que recebia gratuitamente da Crefisa, patrocinadora do clube. A ideia da empresa era que Contursi distribuísse as entradas entre conselheiros, sócios e torcedores do Palmeiras, a fim de popularizar o time e estreitar relações com a patrocinadora. No entanto, o réu, segundo a denúncia, repassava os bilhetes para que fossem vendidos por preço superior ao estampado.

O esquema se encerrou quando a atual presidente da Crefisa, Leila Mejdalani Pereira, passou a suspeitar da destinação que era dada aos ingressos de cortesia, pois não recebia nenhuma ligação em agradecimento das pessoas supostamente beneficiadas, além do fato de que o departamento de marketing passou a receber ligações de terceiros interessados em “comprar ingressos”.

De acordo com o juiz, ficou comprovada a infração aos artigos 41-F e 41-G do Estatuto de Defesa do Torcedor. “Tais normas penais incriminadoras tutelam a regularidade das relações jurídicas que circundam o torcedor-consumidor, especialmente no que toca ao preço dos ingressos de eventos esportivos e ao acesso isonômico aos estádios de futebol”, disse.

Além disso, afirmou o magistrado, o estatuto garante ao torcedor-consumidor, e por isso o reforço das normas penais, um sistema de vendas de ingressos ágil, transparente, seguro e com amplo acesso às informações, “bem como um sistema que garanta ao espectador torcedor um lugar determinado no estádio, direitos estes que ficam prejudicados pela venda ilegal de ingressos”.

Junior também destacou “inúmeros elementos de prova angariados nos autos” que, segundo ele, são “mais do que suficientes” para embasar a condenação. Contursi foi punido com três anos e dez meses de reclusão. Ele teve a pena privativa de liberdade convertida em duas restritivas de direitos: pagamento de 25 salários mínimos em favor de uma instituição social e de 34 dias-multa pelo valor unitário de 1/2 do salário mínimo vigente na data dos fatos.

0110689-68.2017.8.26.0050

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Jhonny Prado: Benefícios fiscais devem ser concedidos em período eleitoral

Sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro traz uma série de limitações para o gestor público no último ano do seu mandato, visando a impedir o tão recorrente uso da máquina pública como forma de propaganda eleitoral antecipada. Sucede que, na esteira do que vem acontecendo no resto do mundo, o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis que a memória recente nos traz. Em decorrência da pandemia causada pela Covid-19, estudos apontam queda do PIB brasileiro em até 6% [1] para o ano de 2020. Grandes municípios, como o de Porto Alegre, estimam queda de arrecadação em até 60% do estimado para o corrente ano. Empresas, independentemente do porte, estão encontrando dificuldades em manter seus quadros de funcionários, muitas estão enfrentando dificuldades financeiras, diante da paralisação das atividades, em decorrência da quarentena que foi determinada em todo o território nacional.

Nesse cenário é que surge a dúvida: é possível que agentes políticos municipais, diante da crise generalizada enfrentada, concedam benefícios fiscais no ano das eleições municipais?

Para o deslinde da dúvida jurídica submetida à análise, imperiosa se faz a análise do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997, que dispõe sobre as condutas vedadas aos agentes públicos em período eleitoral:

“Artigo 73 São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

§10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa”.

O supramencionado artigo é o mais importante para o objeto do presente estudo, trazendo uma série de condutas vedadas aos agentes públicos no ano da eleição, período que se convencionou chamar de calendário eleitoral. Decorre do §10 do a referido texto legal que, no ano relativo ao pleito, fica proibida a distribuição de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública. Assim, pode-se afirmar que, em regra, a Lei 9.504/1997 é obstáculo a ter-se, no ano das eleições, para o implemento de benefício fiscal referente à dívida ativa do município. Contudo, como não poderia ser diferente, não se trata de regra absoluta.

Com efeito, as referidas vedações possuem uma razão de ser: afastar a conduta do agente público que se vale dos bens e mecanismos da Administração Pública para desigualar a disputa a seu favor, em decorrência do cargo público ocupado. “A interpretação teleológica do preceito revela a impossibilidade de a máquina administrativa ser manipulada com vistas a conquistar simpatizantes para determinada candidatura”. (TSE. Consulta 1531-69/DF. Relator: ministro Marco Aaurélio. 20/9/2011).

Pode-se dizer que a regra geral prevista no dispositivo só é aplicável em situações de normalidade, não sendo a simples prática da conduta que se amolde àquela descrita no texto legal que caracterizará, inexoravelmente, conduta vedada, exigindo-se, nas palavras do TSE, “em qualquer das situações, é necessário que tais irregularidades possuam uma mínima correlação, um liame, com o pleito eleitoral” (RO nº 9-80 e RO nº 3230-08, relator ministro Henrique Neves, DJE de 12/5/2014).

Deveras, nem toda conduta praticada pelo gestor público que se subsumir àquela prevista na moldura normativa, merecerá reprimenda do ordenamento jurídico, exigindo-se do agente público o dolo específico de se beneficiar diretamente daquele ato na corrida eleitoral ou, ao menos, que seu ato seja capaz de afetar a igualdade da disputa (Recurso Especial Eleitoral nº 3289-97.2014.616.0000) [2].

Sucede que, afora as condutas que possam configurar promoção pessoal ou causar desiquilíbrio ao pleito eleitoral, ao gestor deve ser assegurada todas as demais atribuições para gerir a máquina pública, podendo lançar mão de todos os instrumentos disponíveis para o melhor desenvolvimento das necessidades públicas, visando à consecução do interesse público. Com efeito, o legislador não é capaz de antever o cenário ao qual estarão submetidos os destinatários da norma, devendo, por essa razão, a aplicação da regra geral ficar restrita à situação de normalidade, tendo em vista que, a depender das circunstâncias fáticas, poderá ser exigido do administrador funções proativas destinadas à solução da crise social, que, numa primeira análise, ficaria em uma linha tênue entre a conduta necessária e a vedada pela lei eleitoral.   

Não foi por outro motivo que o próprio texto legislativo trouxe, expressamente, uma ressalva: “os casos de calamidade pública, de estado de emergência e os programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior”. Deveras, nesses casos, seria ilógico impor limitações ao gestor público que o impeçam de adotar medidas políticas e sociais que conduza a situação novamente à normalidade. Seria, em outras palavras, submeter toda a população aos efeitos deletérios da crise, pelo simples medo do uso eleitoral da máquina pública. Em última análise, mediante uma interpretação teleológica da norma, seria um contrassenso, tendo em vista que geraria um desequilíbrio eleitoral reverso, para o ocupante do cargo público, diante da imposição de limitações ilógicas perante a realidade posta, impedindo-o de solucionar a situação emergencial, transformando-o no capitão do naufrágio. A aplicação da vedação no caso concreto transformaria a norma no mal para o qual pretendia ser o remédio. Assim, tendo em vista o fim para o qual a norma foi criada, a interpretação para a sua aplicação absoluta deve ser afastada.

Nesse contexto, de pronto, pode-se afirmar que, verificada a existência da exceção de calamidade pública, duas condutas vedadas descritas no artigo 73 da Lei n.º 9.504/97, restarão legalmente permitidas, quais sejam: a) a realização de transferência voluntária de recursos da União aos estados e municípios, e dos estados aos municípios nos três meses que antecedem o pleito; e b) assim como a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública. Trata-se de interpretação inafastável do texto legal, extraída da simples leitura, tendo em vista que a hipótese é expressamente prevista como exceção. Em que pese a clareza da previsão, no atual cenário brasileiro, a dúvida é pertinente. O gestor zeloso, preocupado em seguir os ditames legais e atento à possibilidade de ter sua conduta tida como não autorizada pelos órgãos de controle, tende a se deparar com o dilema. André Cyrino e Gustavo Binenbojm tratam do referido dilema enfrentado pelo administrador público, fazendo uma pertinente crítica ao controle desenfreado que se tem exercido no Brasil, na tendência de se limitar cada vez mais a atuação do gestor público. Vale a transcrição do seguinte trecho:

‘Somente o administrador médio está confortável e seguro. Sem tal clarividência, no entanto, os incentivos ao administrador público que quiser ser honesto serão de adoção de postura estritamente burocrática, em sua pior conotação. Será um sujeito preso a ritos e cautelas que tendem a gerar paralisia decisória. É o apagão das canetas, como se tem referido. Um quadro de temor e inação”. (Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, nov. 2018.)

No entanto, o momento exige do administrador público uma atuação proativa, de boa governança e gestão eficiente (artigo 37, CF), destinada ao afastamento da crise, à preservação do mínimo existencial e da vida humana. Diante do delicado momento que se atravessa, não há como cogitar que a vontade geral, para a qual os representantes são eleitos para fazer prevalecer (artigo 1, parágrafo único da CF), seja pela inanição do administrador. Há que se fazer uma ponderação dos valores envolvidos, merecendo prevalecer os direitos fundamentais dos cidadãos, previstos no artigo 5 da CF, bem como a busca do pleno emprego, a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna (artigo 170, da CF). 

Nessa esteira, o STF, reconhecendo a situação de excepcionalidade e realizando a referida ponderação de valores, na ADI 6357, afastou a exigência de diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal durante a situação de crise, tendo em vista que sua aplicação, no momento, seria incompatível com a Constituição Federal.

Desse modo, salvo melhor juízo, pode-se afirmar, com segurança, que a atual situação está abarcada pela exceção legal. A situação de calamidade foi reconhecida pelas três esferas federativas, pelo menos nos principais centros urbanos. Pode-se citar como exemplo o Decreto Legislativo nº 06/2020, no âmbito da União, que reconheceu o estado de calamidade pública no país (ademais, anteriormente, a Portaria n.º 188/2020 já havia declarado Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, que, salvo melhor juízo, já seria suficiente para enquadramento na ressalva legal). Estados como São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, bem como os municípios São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, também reconheceram em seus territórios o estado de calamidade. Inafastável, portanto, a conclusão pelo preenchimento do pressuposto exigido no §10º do artigo 73 da lei 9.504/97.

Do mesmo modo, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é pacífica em reconhecer plena aplicabilidade à exceção supramencionada, conforme se demonstrará a seguir:

“Agravo regimental. Recurso especial. Eleições 2012. Prefeito. Ação de impugnação de mandato eletivo. Abuso de poder político. Artigo 22 da lc 64/90. Conduta vedada a agente público. Artigo 73, § 10, da Lei 9.504/97. Calamidade pública. Reexame fático-probatório. Desprovimento.

Inexiste, no caso, afronta ao artigo 275 do Código Eleitoral, porquanto a Corte Regional manifestou-se sobre a tempestividade do recurso eleitoral interposto pelos agravados.

O TRE/PA, em análise do conjunto fático-probatório, entendeu que o programa assistencialista temporário criado durante as cheias do Rio Xingu, no Pará, em 2012, impunha-se diante de estado de necessidade e calamidade pública, afastando, dessa forma, conduta vedada a agente público (artigo 73, § 10, da Lei 9.504/97) e abuso de poder político (artigo 22 da LC 64/90). Para modificar essa conclusão, é imperioso, como regra, reexame de fatos e provas, vedado na via extraordinária, nos termos da Súmula 7/STJ.

Agravo regimental não provido.” (Recurso Especial Eleitoral nº 79973, Acórdão, relator ministro Herman Benjamin, Publicação:  DJE – Diário de justiça eletrônico, Data 25/05/2016, Página 51)

Na mesma esteira, julgou a Consulta n° 56-39.2014.6.00.0000; o Ac de 25/9/2014 no AgR-REspe nº 5410280, relator ministro Henrique Neves e o Ac de 15/2/2007 no AgRgREspe nº 25.980, relator ministro Gerardo Grossi.

Realizando a mesma interpretação, diversos municípios concederam benefícios fiscais aos seus administrados, como Belo Horizonte, que por meio do Decreto 17.308/2020 dispôs sobre medidas excepcionais de diferimento tributário para a redução dos impactos sobre a atividade econômica do município causados pelas ações de contenção da pandemia ocasionada pela Covid-19; a prefeitura de Niterói, que concedeu a ampliação dos prazos para recolhimento do ISS, por meio da resolução SMF n. 44; a prefeitura de São Paulo, que expediu diversos atos normativos concedendo benefícios fiscais aos seus contribuintes, podendo-se citar como exemplo a Lei Municipal n.º 17324/2020, Decreto 59.293/2020 e 59.326/2020. Esses são apenas alguns exemplos de atos normativos expedidos por administrações municipais, mesmo dentro do calendário eleitoral, visando a contornar a crise gerada pela pandemia do coronavírus. 

Assim, a adoção de medidas assistenciais e de amparo aos munícipes, como a distribuição de alimentos, cestas básicas, etc., bem como a previsão e estabelecimento de alguns benefícios tendentes a mitigar os prejuízos causados pela pandemia, como a concessão de benefícios fiscais, podendo ser consubstanciada, por exemplo, pela prorrogação do prazo de pagamento de tributos; a postergação dos prazos para a entrega das obrigações acessórias; a concessão de moratória; a previsão de parcelamento dos impostos de sua competência e, até mesmo, a isenção de taxas e tarifas, entre outras medidas possíveis. Trata-se, na verdade, de meros exemplos, trazidos em abstrato, em que a atuação da Administração Pública restaria acobertada pela ressalva legal, desde que utilizados com razoabilidade e em respeito às formalidades legais exigidas para a respectiva instituição do benefício.

Vale ressaltar, por fim, que os benefícios concedidos devem guardar estrita relação com o enfrentamento e superação da crise, vedando-se toda e qualquer conduta que possa configurar desrespeito ao princípio da impessoalidade, previsto no artigo 37 da CF. Para tanto, é recomendável a fixação de critérios objetivos para a concessão dos benefícios, evitando-se, ao máximo, a atribuição de benefícios a grupos específicos, sem que haja discrímen razoável ou fundamentação relevante. É recomendável, também, a adoção de instrumentos que assegurem a transparência das condutas adotadas, permitindo aos órgãos de controle eleitoral, a fiscalização definida no § 10 do artigo 73 da norma de regência.

Diante do exposto, entendo, embasado na literalidade do texto legal, bem como na jurisprudência pacífica do Tribunal Superior Eleitoral, que as medidas adotadas visando ao afastamento da crise, sobretudo no atual cenário em que a situação de calamidade é mundialmente reconhecida, não só devem ser permitidas, como revelam-se um poder-dever do gestor público diligente.

O momento é de flexibilização da burocracia administrativa, do apego à legalidade estrita, entendendo a relação circular existente entre o Direito e a realidade, de modo a permitir que os agentes políticos dos poderes das três esferas federativas consigam contornar a grave e inesperada situação. Tal condução deverá sempre ter como pano de fundo a Constituição Federal e sempre sob vigilância (necessária e moderada) dos controles internos, externos e popular. 

 é procurador do município de Porto Alegre e integrante da força-tarefa do município para o combate à Covid-19.