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Taís Vaz: O sistema constitucional de crises e a Covid-19

O mundo atravessa uma época sombria, de rotina e ações inéditas. O indivíduo se força a ficar em casa, pela sua própria sobrevivência, com a interrupção de sua rotina habitual. D’outro lado, o Estado busca meios de passar pelo momento de crise sanitária e econômica, de nebuloso horizonte.

Fato é que, inegavelmente, nós nos encontramos em um momento de crise. E, para contextos como o atual, a Constituição Federal de 1988 traz o que a doutrina denomina de sistema constitucional das crises, composto pelas também apelidadas Válvulas de Panela de Pressão.

Esse sistema foi construído com o intuito de retomar a estabilidade em casos de tumulto institucional. São medidas excepcionais modeladas para situações de crise, como meios de resposta a determinadas anormalidades, restritas a certos locais e períodos. Por isso, regem-se pelos princípios da necessidade e da temporariedade.

A doutrina enumera como hipóteses: a intervenção federal, o estado de defesa e o estado de sítio. A primeira afasta a autonomia de determinado ente federativo, por meio da intervenção da União, nas hipóteses taxativamente previstas no artigo 34 da Constituição, com o fim de cessar conduta do ente atingido que comprometa a estabilidade institucional. As outras duas se prestam ao restabelecimento da ordem pública e paz social, às quais se restringe a presente análise.

A decretação dos estados de defesa e de sítio são de competência privativa do presidente da República, após oitiva dos Conselhos da República e da Defesa Nacional órgãos de consulta do presidente, cujo pareceres não têm caráter vinculativo. Ocorre que, diferentemente do estado de defesa, o estado de sítio pressupõe prévia aprovação do Congresso Nacional acerca da decretação por parte do presidente. Nesse caso, não havendo a aprovação, o presidente está impedido de decretá-lo.

O estado de defesa, assim como o estado de sítio, repercute em uma situação de legalidade extraordinária. Ou seja, a Administração Pública, dentro desse contexto, está autorizada a atuar em certas situações, independentemente da existência de lei, em lógica contrária à regra geral da observância do princípio da legalidade, segundo o qual toda a atuação da Administração Pública deve obediência ao previsto na lei.

Outra distinção reside no seu tempo de duração. Enquanto o estado de defesa pode ser decretado por período de até 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, uma única vez, o estado de sítio pode ser, inicialmente, decretado por 30 dias, prorrogáveis por mais 30 dias, quantas vezes for necessário.

A decretação do estado de defesa deve estar fundada em uma das duas hipóteses do artigo 136 da Constituição: grave e iminente instabilidade institucional que ameace a ordem pública ou a paz social; ou manifestação de calamidade de grandes proporções na natureza que atinja a ordem pública ou a paz social.

Depois de ouvidos os órgãos de consulta supramencionados, o presidente da República instaura o estado de defesa por meio de decreto, que especifica as áreas abrangidas e as medidas a serem adotadas.

O decreto presidencial, então, deve ser submetido à apreciação do Congresso Nacional em até 24 horas, acompanhado da sua respectiva justificação. Em dez dias, o Congresso deve apreciá-lo e deliberar sobre a questão por maioria absoluta. Entendendo pelo seu descabimento, a medida deve ser cessada.

Durante o estado de defesa, algumas medidas anormais podem ser adotadas, conforme previsão do artigo 136, §1º, inciso I, da Carta Magna. São elas: restrição aos direitos de reunião, sigilo de correspondências e comunicações, bem como ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos por parte da União, nos casos de calamidade pública.

O decreto do estado de sítio, por sua vez, possui como pressupostos: comoção grave de repercussão nacional, ocorrência de fatos que comprovem a ineficácia das medidas tomadas em prévio estado de defesa ou declaração de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.

Durante a sua vigência, podem ser adotadas medidas ainda mais restritivas, como obrigação de permanência em determinadas localidades, restrições à prestação de informações e liberdade de imprensa, suspensão da liberdade de reunião, busca e apreensão em domicilio, intervenção nas empresas de serviços públicos e requisição de bens.

Ante todo o aqui exposto, indaga-se: diante de um sistema constitucional de crises, não seria proveitoso a sua utilização no momento atual de Covid-19? De fato, estamos em um contexto de calamidade pública expressa, com necessidades eminentes de isolamento e resguarde, que se mostram necessários para a superação desta crise do modo menos lesivo possível.

Todavia, diante de um governo de perfil eminentemente populista, de extrema preocupação com a economia e resistência expressa acerca do isolamento social, evidente que não seria de grande valia a decretação de um estado de defesa ou de sítio.

De outro lado, à parte de qualquer ideologia ou plano de ação, a adoção desse sistema constitucional de crise implica na incidência de efetivos controles políticos e judiciais, concomitantes e posteriores. Exemplos disso são os artigos 140 e 141 da Constituição.

Esses dispositivos preveem a designação de comissão especial de congressistas para fiscalizar a execução das medidas adotadas, bem como a obrigação de o presidente da República, ao final desses estados excepcionais, remeter ao Congresso mensagem com a especificação e justificação das providências adotadas.

Nem poderia ser diferente. A excepcionalidade de tais estados advém da possibilidade de adoção de condutas estatais restritivas de direitos individuais. E, diante da relevância de tais direitos, mormente em uma sociedade fundada na dignidade da pessoa humana, é muito tênue a linha divisora do necessário à superação de um estado de crise e da efetiva violação de direitos fundamentais. Este último cenário poderia, por si só, configurar crime responsabilidade do presidente da República e causar seu impeachment.

Por isso, a decretação desses estados de excepcionalidade, naturalmente, carregam consigo um temor natural de responsabilização por parte do presidente da República, que pode, tentando acertar, cair em erro e cavar sua própria cova. Isso se torna ainda mais fácil quando diante de uma realidade atípica, que demanda ineditismo e celeridade nas condutas estatais e, portanto, mais suscetíveis a erros.

Ante o exposto, paira o questionamento sobre a conveniência de uma decretação de estado de defesa ou de sítio no contexto atual, bem como se tais mecanismos se mostram convidativos ao governo atual ou mesmo a qualquer outro, diante do seu elevado grau de risco de responsabilização.

 é advogada autônoma em Salvador e pós-graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade Baiana de Direito e Gestão.

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Coronavírus justifica suspensão temporária de acordo trabalhista

Não se pode deixar de levar em consideração que o Brasil atravessa um momento de grande excepcionalidade por causa da epidemia do novo coronavírus e que isso tem impacto no funcionamento das empresas.

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do Termômetro Covid-19 em tempo real

Com base nesse entendimento, o juiz Régis Franco e Silva de Carvalho, da 3ª Vara do Trabalho de Barueri (SP), suspendeu temporariamente o pagamento de parcelas de um acordo trabalhista. A decisão é desta terça-feira (5/5). 

O magistrado argumentou que o artigo 775, parágrafo 1 da CLT (Decreto Lei 5.452/43) prevê a possibilidade de prorrogação dos prazos acordados, “pelo tempo estritamente necessário, nas seguintes hipóteses: I — quando o juízo entender necessário; II — em virtude de força maior, devidamente comprovada”. 

“Neste aspecto, portanto, entende este juízo pela possibilidade de que os prazos para cumprimento de acordos homologados possam ser prorrogados, nas restritas hipóteses do  § 1º do artigo 775 da CLT”, afirma a decisão. 

Ainda segundo o juiz, “no caso em tela, a reclamada juntou aos autos documentos que demonstram a suspensão de contratos comerciais e serviços prestados, ocasionando expressiva redução do faturamento da empresa”. 

Número de processos que mencionam coronavírus crescem na Justiça do Trabalho
Kateryna Kon

Anteriormente, havia ficado acordado que a companhia, que atua no ramo da tecnologia, pagaria 10 parcelas de R$ 24 mil a uma ex-funcionária da empresa. Agora, conforme a decisão, a empresa deverá pagar as parcelas com vencimento em abril e maio apenas depois que for quitada a última parcela do acordo.

Aumento da judicialização

Desde que a epidemia começou, os processos trabalhistas, tanto movidos por empregados quanto por empregadores cresceu. É o que mostra o Termômetro Covid-19 na Justiça do Trabalho, plataforma criada pela ConJur em parceria com a instituição de ensino Finted e a startup Datalawyer Insights.

O levantamento leva em conta processos que possuem os termos “pandemia”, “coronavírus”, “covid” ou “covid-19”. Mais de 10 mil ações que possuem essa nomenclatura foram registradas na Justiça do Trabalho. 

Nesta semana, o valor total das causas ultrapassou os R$ 600 milhões.

Clique aqui para ler a decisão

0004145-42.2013.5.02.0203

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Jhonny Prado: Benefícios fiscais devem ser concedidos em período eleitoral

Sabe-se que o ordenamento jurídico brasileiro traz uma série de limitações para o gestor público no último ano do seu mandato, visando a impedir o tão recorrente uso da máquina pública como forma de propaganda eleitoral antecipada. Sucede que, na esteira do que vem acontecendo no resto do mundo, o Brasil atravessa um dos momentos mais difíceis que a memória recente nos traz. Em decorrência da pandemia causada pela Covid-19, estudos apontam queda do PIB brasileiro em até 6% [1] para o ano de 2020. Grandes municípios, como o de Porto Alegre, estimam queda de arrecadação em até 60% do estimado para o corrente ano. Empresas, independentemente do porte, estão encontrando dificuldades em manter seus quadros de funcionários, muitas estão enfrentando dificuldades financeiras, diante da paralisação das atividades, em decorrência da quarentena que foi determinada em todo o território nacional.

Nesse cenário é que surge a dúvida: é possível que agentes políticos municipais, diante da crise generalizada enfrentada, concedam benefícios fiscais no ano das eleições municipais?

Para o deslinde da dúvida jurídica submetida à análise, imperiosa se faz a análise do artigo 73 da Lei nº 9.504/1997, que dispõe sobre as condutas vedadas aos agentes públicos em período eleitoral:

“Artigo 73 São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais:

§10. No ano em que se realizar eleição, fica proibida a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública, exceto nos casos de calamidade pública, de estado de emergência ou de programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior, casos em que o Ministério Público poderá promover o acompanhamento de sua execução financeira e administrativa”.

O supramencionado artigo é o mais importante para o objeto do presente estudo, trazendo uma série de condutas vedadas aos agentes públicos no ano da eleição, período que se convencionou chamar de calendário eleitoral. Decorre do §10 do a referido texto legal que, no ano relativo ao pleito, fica proibida a distribuição de bens, valores ou benefícios por parte da administração pública. Assim, pode-se afirmar que, em regra, a Lei 9.504/1997 é obstáculo a ter-se, no ano das eleições, para o implemento de benefício fiscal referente à dívida ativa do município. Contudo, como não poderia ser diferente, não se trata de regra absoluta.

Com efeito, as referidas vedações possuem uma razão de ser: afastar a conduta do agente público que se vale dos bens e mecanismos da Administração Pública para desigualar a disputa a seu favor, em decorrência do cargo público ocupado. “A interpretação teleológica do preceito revela a impossibilidade de a máquina administrativa ser manipulada com vistas a conquistar simpatizantes para determinada candidatura”. (TSE. Consulta 1531-69/DF. Relator: ministro Marco Aaurélio. 20/9/2011).

Pode-se dizer que a regra geral prevista no dispositivo só é aplicável em situações de normalidade, não sendo a simples prática da conduta que se amolde àquela descrita no texto legal que caracterizará, inexoravelmente, conduta vedada, exigindo-se, nas palavras do TSE, “em qualquer das situações, é necessário que tais irregularidades possuam uma mínima correlação, um liame, com o pleito eleitoral” (RO nº 9-80 e RO nº 3230-08, relator ministro Henrique Neves, DJE de 12/5/2014).

Deveras, nem toda conduta praticada pelo gestor público que se subsumir àquela prevista na moldura normativa, merecerá reprimenda do ordenamento jurídico, exigindo-se do agente público o dolo específico de se beneficiar diretamente daquele ato na corrida eleitoral ou, ao menos, que seu ato seja capaz de afetar a igualdade da disputa (Recurso Especial Eleitoral nº 3289-97.2014.616.0000) [2].

Sucede que, afora as condutas que possam configurar promoção pessoal ou causar desiquilíbrio ao pleito eleitoral, ao gestor deve ser assegurada todas as demais atribuições para gerir a máquina pública, podendo lançar mão de todos os instrumentos disponíveis para o melhor desenvolvimento das necessidades públicas, visando à consecução do interesse público. Com efeito, o legislador não é capaz de antever o cenário ao qual estarão submetidos os destinatários da norma, devendo, por essa razão, a aplicação da regra geral ficar restrita à situação de normalidade, tendo em vista que, a depender das circunstâncias fáticas, poderá ser exigido do administrador funções proativas destinadas à solução da crise social, que, numa primeira análise, ficaria em uma linha tênue entre a conduta necessária e a vedada pela lei eleitoral.   

Não foi por outro motivo que o próprio texto legislativo trouxe, expressamente, uma ressalva: “os casos de calamidade pública, de estado de emergência e os programas sociais autorizados em lei e já em execução orçamentária no exercício anterior”. Deveras, nesses casos, seria ilógico impor limitações ao gestor público que o impeçam de adotar medidas políticas e sociais que conduza a situação novamente à normalidade. Seria, em outras palavras, submeter toda a população aos efeitos deletérios da crise, pelo simples medo do uso eleitoral da máquina pública. Em última análise, mediante uma interpretação teleológica da norma, seria um contrassenso, tendo em vista que geraria um desequilíbrio eleitoral reverso, para o ocupante do cargo público, diante da imposição de limitações ilógicas perante a realidade posta, impedindo-o de solucionar a situação emergencial, transformando-o no capitão do naufrágio. A aplicação da vedação no caso concreto transformaria a norma no mal para o qual pretendia ser o remédio. Assim, tendo em vista o fim para o qual a norma foi criada, a interpretação para a sua aplicação absoluta deve ser afastada.

Nesse contexto, de pronto, pode-se afirmar que, verificada a existência da exceção de calamidade pública, duas condutas vedadas descritas no artigo 73 da Lei n.º 9.504/97, restarão legalmente permitidas, quais sejam: a) a realização de transferência voluntária de recursos da União aos estados e municípios, e dos estados aos municípios nos três meses que antecedem o pleito; e b) assim como a distribuição gratuita de bens, valores ou benefícios por parte da Administração Pública. Trata-se de interpretação inafastável do texto legal, extraída da simples leitura, tendo em vista que a hipótese é expressamente prevista como exceção. Em que pese a clareza da previsão, no atual cenário brasileiro, a dúvida é pertinente. O gestor zeloso, preocupado em seguir os ditames legais e atento à possibilidade de ter sua conduta tida como não autorizada pelos órgãos de controle, tende a se deparar com o dilema. André Cyrino e Gustavo Binenbojm tratam do referido dilema enfrentado pelo administrador público, fazendo uma pertinente crítica ao controle desenfreado que se tem exercido no Brasil, na tendência de se limitar cada vez mais a atuação do gestor público. Vale a transcrição do seguinte trecho:

‘Somente o administrador médio está confortável e seguro. Sem tal clarividência, no entanto, os incentivos ao administrador público que quiser ser honesto serão de adoção de postura estritamente burocrática, em sua pior conotação. Será um sujeito preso a ritos e cautelas que tendem a gerar paralisia decisória. É o apagão das canetas, como se tem referido. Um quadro de temor e inação”. (Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, Edição Especial: Direito Público na Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro LINDB (Lei nº 13.655/2018), p. 203-224, nov. 2018.)

No entanto, o momento exige do administrador público uma atuação proativa, de boa governança e gestão eficiente (artigo 37, CF), destinada ao afastamento da crise, à preservação do mínimo existencial e da vida humana. Diante do delicado momento que se atravessa, não há como cogitar que a vontade geral, para a qual os representantes são eleitos para fazer prevalecer (artigo 1, parágrafo único da CF), seja pela inanição do administrador. Há que se fazer uma ponderação dos valores envolvidos, merecendo prevalecer os direitos fundamentais dos cidadãos, previstos no artigo 5 da CF, bem como a busca do pleno emprego, a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa, tendo por fim assegurar a todos existência digna (artigo 170, da CF). 

Nessa esteira, o STF, reconhecendo a situação de excepcionalidade e realizando a referida ponderação de valores, na ADI 6357, afastou a exigência de diversos dispositivos da Lei de Responsabilidade Fiscal durante a situação de crise, tendo em vista que sua aplicação, no momento, seria incompatível com a Constituição Federal.

Desse modo, salvo melhor juízo, pode-se afirmar, com segurança, que a atual situação está abarcada pela exceção legal. A situação de calamidade foi reconhecida pelas três esferas federativas, pelo menos nos principais centros urbanos. Pode-se citar como exemplo o Decreto Legislativo nº 06/2020, no âmbito da União, que reconheceu o estado de calamidade pública no país (ademais, anteriormente, a Portaria n.º 188/2020 já havia declarado Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional, que, salvo melhor juízo, já seria suficiente para enquadramento na ressalva legal). Estados como São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, bem como os municípios São Paulo, Belo Horizonte e Porto Alegre, também reconheceram em seus territórios o estado de calamidade. Inafastável, portanto, a conclusão pelo preenchimento do pressuposto exigido no §10º do artigo 73 da lei 9.504/97.

Do mesmo modo, a jurisprudência do Tribunal Superior Eleitoral é pacífica em reconhecer plena aplicabilidade à exceção supramencionada, conforme se demonstrará a seguir:

“Agravo regimental. Recurso especial. Eleições 2012. Prefeito. Ação de impugnação de mandato eletivo. Abuso de poder político. Artigo 22 da lc 64/90. Conduta vedada a agente público. Artigo 73, § 10, da Lei 9.504/97. Calamidade pública. Reexame fático-probatório. Desprovimento.

Inexiste, no caso, afronta ao artigo 275 do Código Eleitoral, porquanto a Corte Regional manifestou-se sobre a tempestividade do recurso eleitoral interposto pelos agravados.

O TRE/PA, em análise do conjunto fático-probatório, entendeu que o programa assistencialista temporário criado durante as cheias do Rio Xingu, no Pará, em 2012, impunha-se diante de estado de necessidade e calamidade pública, afastando, dessa forma, conduta vedada a agente público (artigo 73, § 10, da Lei 9.504/97) e abuso de poder político (artigo 22 da LC 64/90). Para modificar essa conclusão, é imperioso, como regra, reexame de fatos e provas, vedado na via extraordinária, nos termos da Súmula 7/STJ.

Agravo regimental não provido.” (Recurso Especial Eleitoral nº 79973, Acórdão, relator ministro Herman Benjamin, Publicação:  DJE – Diário de justiça eletrônico, Data 25/05/2016, Página 51)

Na mesma esteira, julgou a Consulta n° 56-39.2014.6.00.0000; o Ac de 25/9/2014 no AgR-REspe nº 5410280, relator ministro Henrique Neves e o Ac de 15/2/2007 no AgRgREspe nº 25.980, relator ministro Gerardo Grossi.

Realizando a mesma interpretação, diversos municípios concederam benefícios fiscais aos seus administrados, como Belo Horizonte, que por meio do Decreto 17.308/2020 dispôs sobre medidas excepcionais de diferimento tributário para a redução dos impactos sobre a atividade econômica do município causados pelas ações de contenção da pandemia ocasionada pela Covid-19; a prefeitura de Niterói, que concedeu a ampliação dos prazos para recolhimento do ISS, por meio da resolução SMF n. 44; a prefeitura de São Paulo, que expediu diversos atos normativos concedendo benefícios fiscais aos seus contribuintes, podendo-se citar como exemplo a Lei Municipal n.º 17324/2020, Decreto 59.293/2020 e 59.326/2020. Esses são apenas alguns exemplos de atos normativos expedidos por administrações municipais, mesmo dentro do calendário eleitoral, visando a contornar a crise gerada pela pandemia do coronavírus. 

Assim, a adoção de medidas assistenciais e de amparo aos munícipes, como a distribuição de alimentos, cestas básicas, etc., bem como a previsão e estabelecimento de alguns benefícios tendentes a mitigar os prejuízos causados pela pandemia, como a concessão de benefícios fiscais, podendo ser consubstanciada, por exemplo, pela prorrogação do prazo de pagamento de tributos; a postergação dos prazos para a entrega das obrigações acessórias; a concessão de moratória; a previsão de parcelamento dos impostos de sua competência e, até mesmo, a isenção de taxas e tarifas, entre outras medidas possíveis. Trata-se, na verdade, de meros exemplos, trazidos em abstrato, em que a atuação da Administração Pública restaria acobertada pela ressalva legal, desde que utilizados com razoabilidade e em respeito às formalidades legais exigidas para a respectiva instituição do benefício.

Vale ressaltar, por fim, que os benefícios concedidos devem guardar estrita relação com o enfrentamento e superação da crise, vedando-se toda e qualquer conduta que possa configurar desrespeito ao princípio da impessoalidade, previsto no artigo 37 da CF. Para tanto, é recomendável a fixação de critérios objetivos para a concessão dos benefícios, evitando-se, ao máximo, a atribuição de benefícios a grupos específicos, sem que haja discrímen razoável ou fundamentação relevante. É recomendável, também, a adoção de instrumentos que assegurem a transparência das condutas adotadas, permitindo aos órgãos de controle eleitoral, a fiscalização definida no § 10 do artigo 73 da norma de regência.

Diante do exposto, entendo, embasado na literalidade do texto legal, bem como na jurisprudência pacífica do Tribunal Superior Eleitoral, que as medidas adotadas visando ao afastamento da crise, sobretudo no atual cenário em que a situação de calamidade é mundialmente reconhecida, não só devem ser permitidas, como revelam-se um poder-dever do gestor público diligente.

O momento é de flexibilização da burocracia administrativa, do apego à legalidade estrita, entendendo a relação circular existente entre o Direito e a realidade, de modo a permitir que os agentes políticos dos poderes das três esferas federativas consigam contornar a grave e inesperada situação. Tal condução deverá sempre ter como pano de fundo a Constituição Federal e sempre sob vigilância (necessária e moderada) dos controles internos, externos e popular. 

 é procurador do município de Porto Alegre e integrante da força-tarefa do município para o combate à Covid-19.