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Michelle Diniz: Gestão judiciária e Covid-19

Todos enfrentamos com dificuldades a crise sanitária que se instalou no Brasil desde março de 2020, em virtude da pandemia da Covid-19. Tornou-se imprescindível, dia a dia, vivenciar em sua integralidade a solidariedade e sedimentar a noção de dignidade coletiva [1].

Nesse cenário, o Poder Judiciário, juntamente às outras funções estatais e ao setor privado, necessitou adotar mecanismos de gestão apropriados para dirimir os efeitos avassaladores da pandemia. Foi iniciada, então, uma nova dinâmica no meio forense, também impulsionada pelos juízes. Ganha força o conceito de governança judicial [2], a fim de aprimorar a prestação jurisdicional célere e justa, já que compete, precipuamente, aos magistrados a gestão de sua unidade.

Dessa forma, o princípio da cooperação (artigo 6º, NCPC), em que todo o sistema de Justiça deve colaborar para que se obtenha uma decisão de mérito justa, efetiva e em prazo razoável, passou a ser a bússola que guiará todos quantos atuam nos processos judiciais.

A partir dessa norma fundamental do arcabouço processual pátrio, os métodos alternativos de solução de conflitos, como a conciliação e a mediação, passam a ser amplamente fomentados como maneira de promover a participação das partes na construção do desfecho da lide, inclusive o artigo 139, V, NCPC traz como uma das atribuições do magistrado promover a autocomposição. Assim, tem-se adotado a plataforma digital Consumidor.Gov como alternativa para frear a litigiosidade excessiva [3], ao ter ocorrido inovação recente a qual permite a integração dessa plataforma com o sistema PJe.

Um ponto de destaque que em um primeiro momento pode impactar as visões mais tradicionalistas do processo são as audiências remotas ou telepresenciais, fruto de uma nova dinâmica que se põe ao sistema de justiça. Em tempos de isolamento social, em boa hora, a previsão contida no artigo 22, §2º, Lei nº 9.099/1995 permitiu a realização de conciliação não presencial com o emprego dos recursos tecnológicos disponíveis. Por que não estender para a fase de instrução ou para os demais procedimentos?

Na seara processual penal, o artigo 185, § 1º, CPP prevê, de maneira excepcional, a realização do interrogatório de réu preso pelo sistema de videoconferência, desde que sejam atendidas as finalidades descritas na legislação. Ora, o alargamento das hipóteses da utilização da videoconferência, além de importar em economia para os cofres públicos com escolta e diminuição de resgastes de presos no traslado, promove a celeridade processual, já que partes em locais diversos podem, perante o magistrado, serem ouvidas, abreviando a marcha processual. A título de exemplo, a 1ª Vara de Presidente Dutra, localizada no Estado do Maranhão, de minha titularidade, já realizou 29 audiências telepresenciais até o dia 15 de junho, em variados procedimentos, o que resultou em não paralisação das atividades jurisdicionais, mormente os processos que envolviam réus presos. Quanto a esses, as unidades prisionais contam, atualmente, com sala reservada/parlatório para a realização desses atos processuais e foi garantia a entrevista reservada dos presos para com o advogado/defensor público, bem como, após o procedimento, conversas com os familiares na sala virtal da unidade jurisdicional. Até mesmo em divórcios pendentes de citação devido ao não retorno da carta precatória foi possível, com o auxílio da Defensoria Pública, a realização de audiência de conciliação e a solução de mérito da demanda.

É claro que a inclusão digital deficiente, ainda mais em locais distantes dos grandes centro urbanos, impede o acesso à Justiça. De fato, a inclusão social, que engloba a digital, se apresenta como um wicked problem em oposição ao tradicional problem , isto é, um problema complexo e persistente, que envolve, sobretudo, mudança de comportamento e diálogos institucionais [4]. Entretanto, ignorar completamente os dispositivos facilitadores da boa gestão judiciária não se apresenta como o melhor caminho para dinamizar a prestação jurisdicional.

Igualmente, os vários atendimentos às partes nas unidades jurisdicionais passaram a contar com a ferramenta do WhatsApp Business e mais frequentemente o e-mail, com o intuito de prestar informações aos jurisdicionados, mediante mensagens eletrônicas, ao dispensar que a parte ou seu patrono tenha que se deslocar presencialmente ao fórum. Ainda, a instituição das salas virtuais para atendimento pelos magistrados, sobretudo, de advogados, promotores de Justiça e defensores públicos, representou um grande avanço na comunicação entre os atores do processo, ao não ser mais necessário o deslocamento e, com o agendamento, é possível esse atendimento até mesmo fora do horário do expediente forense [5].

Ainda nos Tribunais de Justiça, como o do Estado do Maranhão, passou-se a adotar a transferência eletrônica no momento da expedição de alvarás judiciais, o que tem contribuído para a celeridade processual.

As citações/intimações de presos, atualmente, no TJ-MA [6], são realizadas por link de acesso ao sistema de videoconferência, entre a unidade prisional e a unidade jurisdicional, o que dispensa a expedição de carta precatória nessa situação, pois os oficiais de Justiça passam a ter acesso às unidades prisionais localizadas em todo o Estado. Nesse sentido, cogita-se a instituição de salas passivas, a fim de que o juiz possa agendar com a unidade deprecada a realização de atos processuais e conduzir a inquirição de testemunhas, por exemplo.

Em relação à gestão da equipe, é possível realizar as reuniões em horários que todos possam participar e sem a obrigatoriedade de fazê-las no horário de expediente em concomitância, na maioria das vezes, com o atendimento às partes. O cumprimento de metas previamente estabelecidas para cada servidor e o engajamento da equipe na migração dos processos físicos para o meio eletrônico demonstram que ser fomentado o empreendedorismo no serviço público. A adoção de metodologias ativas, como o Canvas de projeto voltado para a unidade jurisdicional e o design thinking, é ferramenta relevante para a gestão da equipe com a maximização dos resultados e, portanto, eficiência.

Todos esses avanços na gestão judiciária permitiram reacender o debate no tocante à possibilidade do home office para magistrados e servidores públicos realidade essa já existente na iniciativa privada  diante da expressiva produtividade alcançada no período da pandemia e que tem sido noticiado nos mais variados veículos de comunicação.

Assim, a experiência da 1ª Vara de Presidente Dutra, com a instituição do teletrabalho, por decorrência da pandemia causada pela Covid-19, demonstrou um aumento da taxa de julgamento na proporção de 2% a 3% ao mês perante a taxa anterior de 1%, ainda mais considerando que não houve significativa redução do número de casos novos que ingressaram na unidade jurisdicional. Isso significa afirmar que, no início da pandemia, a taxa de julgamento era de 28% dos processos julgados em comparação com o acervo e, atualmente, alcança um patamar em torno de 40%. Então, se é missão do Poder Judiciário, no Estado democrático, prestar jurisdição em tempo célere como ou mesmo por que? voltar a um tempo, não tão distante, já que a tecnologia passou a permitir o alcance da Justiça nos rincões do Brasil?

As teleperícias [7] já foram autorizadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e passam a ser uma ferramenta no âmbito das ações previdenciárias que podem, futuramente, serem estendidas para as demais demandas, como as que envolvem a cobrança do seguro DPVAT, quando adequada.

Não se pretende, por óbvio, enaltecer a tecnologia em detrimento do convívio nos fóruns, onde magistrados, servidores, advogados, promotores de Justiça e defensores públicos convivem num espaço harmônico de ideias jurídicas. E nem tampouco a realização de atos sem a manutenção das garantias processuais, as quais possuem matiz constitucional. Porém, por qual motivo não somar mais esses mecanismos à disposição do Poder Judiciário para a solução dos casos? Não seria a tecnologia agregada ao devido processo legal uma decorrência de uma nova dinâmica?

São muitas experiências e questionamentos que, pouco a pouco, vão se acumulando à gestão judiciária. Partindo dos diálogos institucionais e com o firme compromisso de todos em aprimorar os mecanismos de gestão no sistema de Justiça, estar-se-á mais próximo da concretização de uma sociedade livre, justa e solidária.

Logo, é mister que o Poder Judiciário, principalmente, possa impulsionar essas mudanças e implementá-las para que tantas inovações não sejam pontuais ou, até mesmo, casuísticas.

Michelle Amorim Sancho Souza Diniz é juíza de Direito titular da 1ª Vara da Comarca de Presidente Dutra, com jurisdição eleitoral na 54ª Zona Eleitoral, membro suplente da Turma Recursal e mestre em Direito Constitucional (UFC).

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Luísa Netto: O direito à ciência e a ADI 6.341

A atual situação de nosso país levanta sérias preocupações. Presenciamos uma crise política e econômica, testemunhamos ataques persistentes às instituições democráticas e enfrentamos uma pandemia sem precedentes. Não obstante essas circunstâncias, diante da urgência imposta pela pandemia, seria razoável esperar a implementação de uma estratégia nacional, articuladora da colaboração e adaptações regionais e locais necessárias, equilibrando as demandas relativas à saúde pública e à economia. Infelizmente, o que vemos é o Brasil se tornar uma das maiores vítimas mundiais da Covid-19, enquanto o presidente minimiza a gravidade da situação, negando evidências científicas e desconsiderando o aconselhamento de experts.

Em face da ausência de resposta nacional articulada, respaldados pela decisão tomada pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 6.341, governadores e prefeitos têm assumido o protagonismo na luta contra o coronavírus, editando diversas medidas normativas e as implementando nos variados quadrantes do país.

O objetivo deste breve artigo, sem desconhecer a importância de analisar as atuais ameaças à democracia brasileira, centra-se em perquirir e expor as possíveis implicações jurídicas advindas do direito à ciência para enfrentar a situação vivenciada no Brasil.

Coronavírus no Brasil breve panorama

Desde que o Brasil registrou o primeiro caso de Covid-19, o país tem assistido a um rápido e letal alastramento da doença.

Em termos legislativos, diferentemente de diversos países em que se prescinde de embasamento legal para as medidas de combate à pandemia, houve a edição, entre uma série de outros diplomas normativos, da Lei federal nº 13.979/2020, destinada a disciplinar a situação de emergência de saúde pública causada pela disseminação do coronavírus. A lei cobre uma vasta gama de matérias, desde a previsão de medidas como quarentena, isolamento, realização compulsória de exames e restrições a atividades públicas, até a criação de exceções à regra da licitação e do dever de fornecimento de informação administrativa. A lei, no âmbito federal, foi seguida por decretos (10.282/2020 e 10.329/2020) que trazem a definição das atividades e serviços essenciais. Houve também a edição do Decreto Legislativo nº 6/2020, levantando restrições orçamentárias e possibilitando a alocação de recursos financeiros contra a pandemia. Editou-se, ainda, a Medida Provisória nº 936, autorizando a suspensão temporária de contratos de trabalho, a redução da jornada com consequente redução salarial e prevendo o pagamento de um auxílio emergencial.

Diante deste quadro normativo, poder-se-ia pensar que o Brasil tem os instrumentos necessários para enfrentar a caleidoscópica crise atual. No entanto, não há, até o momento, a implementação de estratégia que coordene, com base em opções cientificamente defensáveis, as ações nos planos nacional, regionais e locais para conjugar esforços voltados a objetivos comuns no enfrentamento do coronavírus. Essa ausência de ação federal articulada agrava-se pela sistemática negação à ciência e atuação contrária às evidências científicas, assim como pela ausência de divulgação de informações coerentes para a população.

Além disso, tem-se assistido ao discurso oficial do presidente de República de frontal negação da gravidade da doença causada pelo coronavírus, bem como da pandemia, somado a comportamentos refratários ao distanciamento social e a um mau uso das redes sociais. Contrariando as evidências médicas e o aconselhamento técnico da Organização Mundial da Saúde (OMS), o presidente determinou o aumento da produção de cloroquina, afirmando sua eficácia contra a Covid-19. Curiosamente, após dois ministros da Saúde deixarem o cargo em menos de dois meses em virtude de desentendimentos sobre o combate ao vírus e serem substituídos por militares interinos, o protocolo do Ministério da Saúde para o tratamento da Covid-19 foi alterado para incluir o uso de cloroquina e hidroxicloroquina.

Diante desse cenário desolador, governadores e prefeitos têm assumido o protagonismo no combate ao coronavírus, editando uma multiplicidade de instrumentos normativos e adotando diversas medidas concretas. Sem desconhecer a necessidade de medidas de enfrentamento da pandemia, é preciso anotar que, para além de eventuais questionamentos quanto à sua constitucionalidade em termos de conteúdo, as atuações estaduais e municipais suscitaram debate acerca da repartição constitucional de competências no arranjo federativo brasileiro.

O direito à ciência, a ADI 6.341 e a competência dos entes federados

A Constituição da República de 1988 não consagrou um direito à ciência de forma expressa, circunstância que não impede de reconhecer esse direito como pertencente à ordem jurídica brasileira por força das cláusulas de abertura previstas nos parágrafos 2 e 3 do seu artigo 5. O direito à ciência foi estabelecido no Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (artigo 15) e na Convenção Americana de Direitos Humanos; sem olvidar a Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo 27). Soma-se a esta consagração explícita de um direito humano à ciência em instrumentos internacionais a circunstância de a Constituição da República se referir inúmeras vezes à ciência, impondo consequentes obrigações ao Estado (especialmente nos artigos 23, V, 200, V, e 218), como tem sido afirmado em várias ocasiões pelo Supremo Tribunal Federal (aborto, células-tronco, homeschooling).

Malgrado as inegáveis dificuldades da aplicação de normas internacionais, mormente normas de direitos humanos em contextos de crise econômica e crescimento do populismo, o recurso ao Direito Internacional é fecundo. Em primeiro lugar, os instrumentos citados trazem a consagração explícita de um direito à ciência como direito humano autônomo, capaz de ingressar na ordem jurídica brasileira, nesta qualidade, por meio das cláusulas de abertura estabelecidas constitucionalmente. Em segundo lugar, o plano internacional oferece um fundamento normativo complementar para enfrentar a situação em face de eventuais falhas domésticas, buscando respostas globais como a pandemia exige. O direito humano à ciência, aliado ao princípio de due diligence, oferece parâmetros legais para o que se pode exigir dos Estados, fortalecendo suas obrigações na luta contra o coronavirus.

Os instrumentos do Direito Internacional e a dogmática jusinternacional possibilitam uma aproximação ao conteúdo normativo do direito à ciência, que engloba, entre outras facetas, o direito dos indivíduos de desfrutar dos benefícios do progresso científico e tecnológico e o direito dos cientistas de desenvolver livremente a pesquisa científica, com proteção para os seus resultados. O primeiro aspecto vinculante deste direito que vem à luz no contexto da pandemia é a obrigação do Estado de ativamente proteger a vida e a saúde de acordo com a ciência, tomar as medidas necessárias para enfrentar a pandemia baseadas nas evidências científicas, controlando o alastramento da doença e tratando as pessoas infectadas. Maiores desenvolvimentos devem levar a apoiar a pesquisa científica e a colaboração internacional visando a criar e produzir vacinas e estruturar estratégias para conter outras pandemias. Esses aspectos positivos do direito à ciência não afastam a imposição de uma proibição para o Estado de agir ou se negar a agir em dissonância com o conhecimento científico disponível.

O direito à ciência fornece o necessário embasamento jurídico para afirmar que o conhecimento científico, a ciência e suas evidências, têm que ser a razão fundante das escolhas políticas de enfrentamento da pandemia, sem desconsiderar os processos democráticos. O apetite contramajoritário dos direitos humanos e fundamentais não se confunde com qualquer ameaça à democracia ou às instituições políticas do Estado de Direito. Pelo contrário, direitos e democracia mantêm uma relação necessária e dialética.

Certamente a questão merece cautela. Não se trata de defender a epistocracia ou a tecnocracia, nem tampouco de advogar a substituição de agentes políticos democraticamente eleitos por experts no processo de tomada das decisões públicas. A ciência, como se sabe, está sujeita a vieses, falsificações e erros, exige desenvolvimento constante e não é apta a oferecer respostas nem soluções incontestáveis para os complexos desafios societais.

No momento, há diversos aspectos relativos à pandemia, à doença e ao vírus que são discutíveis e desconhecidos. Ademais, os impactos econômicos de uma pandemia também precisam ser levados em conta; diversos direitos dependem da economia. Não se deve, ainda, desconhecer que contextos diferentes podem demandar estratégias específicas.

Uma coisa é suficientemente clara: a pandemia exige ação estatal e global urgente. O vírus e a doença não são uma questão de opinião política ou posicionamento ideológico, são uma matéria científica. Ainda assim, a pandemia exige ação política.

As autoridades democraticamente legitimadas devem se valer do aconselhamento de experts para tomar suas decisões e implementar as ações necessárias. As estratégias estatais de combate à pandemia devem ser públicas e transparentes, sujeitando-se ao controle por meio das instituições políticas e da opinião pública informada, com a garantia da liberdade de imprensa e de expressão. Por óbvio, é vital manter o debate político-institucional como elemento fundacional integrante da democracia, o que exige que as medidas urgentes sejam talhadas de acordo com o arcabouço constitucional.

Por um lado, deve haver espaço para escolhas políticas de acordo com o que é, no momento, cientificamente defensável. Por outro lado, o direito à ciência autoriza afirmar que não há espaço legítimo para simplesmente ignorar ou negar o conhecimento e as evidências científicas.

Essa breve aproximação ao direito à ciência permite verificar que a situação atualmente vivenciada no Brasil não está de acordo com a proteção comandada por esse direito. No plano nacional, evidências científicas têm sido desconsideradas, não têm servido, malgrado a existência de legislação federal, de base para a implementação de uma estratégia consistente e articulada de combate à pandemia da Covid-19.

Considerando que o direito à ciência é vinculante no plano doméstico, seu conteúdo normativo, brevemente exposto, mostra-se extremamente relevante para avaliar juridicamente a atuação dos governos federal, estaduais e municipais durante a pandemia.

Em primeiro lugar, o Direito oferece desde já ao Supremo Tribunal Federal uma âncora normativa para acessar os resultados empíricos de outros campos científicos e desenvolver o controle constitucional das respostas à pandemia. Mesmo que esse aspecto se centre na análise das respostas normativas e não seja suficiente para enfrentar a ausência de ação nacional articulada de combate ao vírus nem as ações governamentais tomadas em frontal desacordo com as evidências científicas, parece-nos um relevantíssimo elemento para a atuação do STF e das demais instâncias do Poder Judiciário.

Em um cenário de instabilidade política, avulta a importância do nosso mais alto tribunal no zelo pela Constituição, buscando manter a necessária coexistência de direitos humanos e democracia. O argumento fornecido pelo direito à ciência parece-nos essencial no desempenho dessa missão institucional pelo STF, permitindo acessar a situação por um prisma jurídico, afastando-se na certa medida da crescente polarização política.

Para fornecer um exemplo concreto, poderíamos pensar em somar, à argumentação desenvolvida no julgamento da ADI 6.341, o direito à ciência como embasamento constitucional sólido a outorgar competência para a atuação regional e local. A sucinta argumentação desenvolvida na decisão — e justificada em face da fase crítica vivenciada — girou em torno da questão formal da exigência de lei complementar e da presença dos requisitos constitucionais para a edição de medida provisória. Para além disso, estendeu-se para considerar a competência concorrente e comum conferida pela Constituição aos entes federados em matéria de saúde. Não por acaso, na decisão são citados os artigos 198 e 200 da Constituição, preceitos que tratam da saúde e tangenciam o desenvolvimento científico e tecnológico a ela referenciado. A atuação de governadores e prefeitos no combate à pandemia certamente tem que se amoldar às demais balizas constitucionais do nosso Estado democrático de Direito. Respeitadas essas balizas, tal atuação encontra fundamento constitucional no direito à ciência, que socorre o direito à saúde.

O direito à ciência se associa frequentemente a outros direitos humanos, com destaque para o direito à saúde. Essa associação fortalece a competência concorrente e comum dos entes federados para proteger e promover a saúde com base nas evidências científicas disponíveis, seja no plano de fruição individual, seja pelo prisma da saúde pública. A força do argumento normativo torna-se patente; a proteção e promoção da saúde apenas se pode fazer de forma efetiva respeitando as evidências científicas e aplicando os resultados do desenvolvimento científico e tecnológico pertinente.

Nesse ponto, interessante invocar a decisão da ADPF 672, na qual houve expressa menção pelo requerente a “ações irresponsáveis e contrárias aos protocolos de saúde aprovados pela comunidade científica e aplicados pelos Chefes de Estado em todo mundo”, solicitando-se ao STF que determinasse ao presidente se abster “de praticar atos contrários às políticas de isolamento social adotadas pelos Estados e municípios”. Com fundamento nos artigos 23, II, IX, 24, XII, e 30, II, da Constituição, reafirmou-se a competência legislativa e administrativa de Estados e municípios para adotar medidas de enfrentamento da pandemia. O direito à ciência poderia participar desta acertada decisão emprestando-lhe vigor normativo, elemento de que carecem as recomendações da OMS referidas ao final.

Não se desconhece que o recurso pulverizado por autoridades regionais e locais ao que é cientificamente defensável pode levar a inconsistências e dilemas. O ideal é a atuação nacional articulada, como convém ao federalismo, ao sistema constitucional de repartição de competências e de distribuição de função entre os poderes, fazendo-se escolhas políticas afinadas com a ciência e as traduzindo institucionalmente em normas.

A ciência não pode nem deve substituir o debate e a ação política democraticamente legitimada. Ela pode, no entanto, emprestar ao nosso Supremo Tribunal Federal, na confluência necessária entre direitos e democracia, importante argumento normativo não para governar, mas para impedir o desgoverno.

 é procuradora do Estado de Minas Gerais, professora de Direito Público na PUC-Minas, Post-doc visting fellow na Universidade de Leiden, doutora em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade Clássica de Lisboa e mestre em Direito Administrativo pela UFMG.

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A aprovação do PL 1.179 e uma perspectiva do direito comparado

A crise sanitária mundial exigiu que os países adotassem medidas emergenciais para refrear a expansão do vírus enquanto não se lhe conhece a cura, mas também medidas político-econômico-sociais e jurídicas que se destinem a evitar consequências maiores ou  que se prorroguem no tempo e venham a comprometer implacavelmente os dias futuros.

Dada a excepcionalidade desta situação — sem precedentes em termos de contágio e alastramento internacional —, a lei aplicável durante a crise e seus efeitos também deve ser excepcional, pois nenhuma lei ordinária poderia antever a magnitude e os efeitos plúrimos de uma doença como esta que agora enfrentamos.

Antes de passarmos ao ordenamento brasileiro, notemos que, no contexto do direito dos demais países, a situação jurídica não é diferente. Dificuldades há aqui e ali. E destaco, de antemão, que é impossível fazer um escrutínio acerca dos diversos países, mas o fato de conhecermos os problemas e soluções experimentados por alguns deles amplia o nosso horizonte para a solução dos nossos próprios problemas. Embora a pandemia nivele a todos no temor de sua virulência e nos seus impactos psicológicos, é fato que cada país tem suas estruturas peculiares e deve agir a partir delas.

Em 19 de março deste, o corpo legislativo supremo do Reino Unido — o Parlamento — recebeu do Secretário de Estado para a Saúde e Assistência Social, o Coronavirus Bill, um projeto de lei que, em razão da célere tramitação legislativa, ganhou o consentimento da Rainha Elizabeth II em 25 de março último. Assim, o Reino Unido possui agora o Coronavirus Act 2020,[1] regime transitório com vigência inicial de dois anos, possibilitando revisão parlamentar semestral, mas comportando prorrogação ou abreviamento conforme a situação. O texto abrange várias áreas de atuação administrativa e alarga as atribuições governamentais e de agentes públicos, que vão do cadastramento dos profissionais das diversas áreas da saúde à permissão para que as cortes e tribunais utilizem vídeo e tecnologia de áudio para seus trabalhos e audiências.

No tocante à regulação dos contratos de direito privado, o Coronavirus Act trouxe grandes mudanças nas locações residenciais e comerciais. É sabido que o aluguel de imóveis residenciais, sobretudo na Inglaterra, corresponde à aproximadamente metade dos cerca de 30 milhões de domicílios do Reino Unido, um número bastante condizente com a situação atual dos grandes centros urbanos para os quais confluem mão de obra, turistas e estudantes, de maneira que o setor locatício será um dos mais afetados pela pandemia. O Coronavirus Act, visando a amparar o direito tanto dos proprietários de imóveis residenciais quanto dos locatários, estabeleceu o prazo de três meses para que o inquilino inadimplente desocupe o imóvel, contados da notificação de desocupação, independentemente de outra anterior previsão no contrato originário. Findo esse prazo e não havendo a desocupação, poderá o proprietário solicitar a ordem de despejo judicial para retomada da posse direta do bem imóvel, afastada a moratória para os aluguéis referentes ao período afetado pela pandemia.

Especificamente na Irlanda do Norte, no último 4 de maio, o emergencial Private Tenancies (Coronavirus Modifications), com tramitação parlamentar finalizada e já consentido por Sua Majestade, aumentou esse período de notificação de 4 a 8 semanas, como previsto na lei ordinária (Private Tenancies Order 2006), para 12 semanas, disposição esta com vigência até 30 de setembro de 2020.

A respeito dos aluguéis comerciais, o Reino Unido concede uma maior liberdade para as partes contratantes, tanto que, nos casos de retomada do imóvel por descumprimento de obrigação atribuída ao locatário, esses instrumentos não costumam ser regidos pela common law ou por uma  lei de locações, e sim por cláusulas contratuais específicas que dão ao locador maiores poderes de retomada da posse direta. Mesmo assim, o Coronavirus Act abarcou esses contratos de locação comercial, prevendo a suspensão por três meses, a contar da vigência da lei transitória, dessas cláusulas relacionadas à inadimplência dos aluguéis, mas não afetou o direito já existente de o locador se recusar à renovação contratual.

A França, tradicionalmente, possui um ordenamento não muito afeito à revisão contratual, embora nos tenha legado a teoria da imprevisão (que se forma a partir da Loi Failliot, de 1918), de modo que a revisão judicial dos contratos é um acontecimento bastante jovem no direito francês.

Essa resistência à revisão judicial dos contratos é juridicamente difícil de ser mantida nos tempos atuais, em especial neste momento de pandemia. Contudo, a Ordonnance de 10 de fevereiro de 2016, que reformou o Code Civil, é um dos sinais de que o ordenamento jurídico francês se abriu ao debate, haja vista a dicção do art. 1195,[2] que toca à possibilidade de renegociação quando uma mudança imprevisível das circunstâncias, por ocasião da conclusão do contrato, tornar a obrigação excessivamente onerosa para a parte que não consentiu em assumir o risco, a qual continuará a cumprir as obrigações ao longo dessa renegociação (se não realizado acordo direto entre as partes, poderá o juiz proceder à revisão ou rescisão contratual). O momento desta pandemia é uma grande oportunidade para o exercício da aplicação do referido dispositivo pelos magistrados franceses.

De outro lado, a América do Sul tem enfrentado sérios problema no âmbito do direito de família durante esta crise. No Seminário Internacional “Covid-19 y sus efectos en la Litigación de Familia”, promovido por meio eletrônico pela Faculdade de Direito da Universidade do Chile no dia 23 de abril deste, a  professora Beatriz Ramos, da Universidade da República e da Universidade Católica do Uruguai, ponderou sobre questões como pensão alimentícia, direito de visitas, violência doméstica e alteração de regime de bens. Lembra ela que o Uruguai decretou o feriado nacional sanitário, dias em que os juízos de família têm recebido inúmeras consultas e vêm, por segurança, postergando algumas medidas cautelares e tendo de tomar várias decisões interlocutórias, como descontar dos seguros-desemprego as pensões alimentícias, a fim de garantir a sobrevivência dos alimentandos e vulneráveis.[3]

Na mesma ocasião, o professor peruano Enrique Varsi, da Universidade de Lima e da Universidade Nacional Maior de San Marcos, refletiu sobre a avalanche de situações que estão recaindo sobre o direito de família durante a pandemia, ponderando que os problemas existentes na esfera familiar se acutizaram e tendem a prosseguir (divórcios, separações, mudança de regime de casamento ou união), atraindo a necessidade de um novo marco para as famílias, com base numa solidariedade jurídica mais intensa entre seus integrantes.[4]

Mutatis mutandis, no Brasil, os Poderes estão sendo testados no limite durante esta inesperada pandemia da Covid-19. Com o Poder Judiciário, isso não é diferente: nossa experiência aponta que os momentos de crise trazem enorme aumento de judicialização de demandas (revisão contratual, aplicação da teoria da imprevisão, recuperação judicial, divórcio, alimentos, execuções, cobranças, ações penais e tributárias). Some-se a isso a necessidade de reconstrução ou de construção de bases jurídicas que amparem essas milhares ou milhões de demandas.

Há alguns dias, nesta mesma revista, tive a oportunidade de lembrar que, curiosamente, o Código Civil de 1916 não continha previsão de causas suspensivas, interruptivas ou impeditivas de prazos nos períodos de doenças com impactos gerais na sociedade, embora tal diploma seja contemporâneo a uma época marcada por surtos de dengue e febre amarela. Essa mesma ausência de previsão se repetiu no Código Civil de 2002, cujo legislador, com maiores razões, não supôs ter de enfrentar a esta altura da pós-modernidade, os efeitos jurídicos de uma nova pandemia de rápida expansão e alta virulência. O inimaginável, porém, aconteceu e o ordenamento jurídico nacional viu-se às voltas com a necessidade premente de reger as novas situações, de sorte a prevenir e evitar o colapso dos poderes e instituições, bem como proteger a saúde, as legítimas expectativas e as relações jurídicas dos cidadãos.

No Brasil, a situação exige uma regulação emergencial e transitória apta a fixar orientações para todos nós que lidamos com o direito. Há, também, a necessidade de fixação de balizas temporais para os prazos prescricionais e decadenciais das relações jurídicas especificamente influenciadas pela pandemia da Covid-19. E tudo isso, por óbvio, deve ser realizado sem deixar de observar direitos, sem prescindir da técnica jurídica e sem o intento de suplantar a legislação já existente.

No dia de ontem, 19 de maio de 2020, o plenário do Senado Federal aprovou o texto original do PL 1.179/2020 (Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado — RJET), que segue agora para apreciação presidencial. Tal aprovação se deu, após o colegiado, rejeitar por 62 votos a 15, o substitutivo a referido PL. Ao decidir o Senado pela manutenção do texto original, de autoria de Antonio Anastasia e relatado por Simone Tebet, aprovou-se um destaque que antecipa a vigência da Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD para agosto de 2020. Isso tornaria o prazo da LGPD aquele previsto na MP 959/2020 (3 de maio de 2021), mas esta, caso não aprovada a tempo, corre o risco de caducar.

Vemos, pois, uma luz para as relações privadas relacionadas direta ou indiretamente à pandemia da Covid-19. Tenho acompanhado bastante de perto as questões que afligem o cidadão brasileiro na atual quadra, principalmente no que toca às relações privadas, de modo que, neste espaço cedido pelo ConJur, pela Revista de Direito Civil Atual e pela Coluna Direito Civil Comparado, procedi, de modo imparcial, à análise transparente e informativa do PL 1.179/2020 nos últimos dias.

É necessária, sim, no ordenamento brasileiro uma lei específica para as relações privadas ora afetadas pela pandemia (os aluguéis, as mensalidades escolares, os prazos prescricionais e decadenciais, os empréstimos contraídos, os alimentos, as visitas, as questões consumeristas, o condomínio, entre outros). E o PL 1.179/2020 propôs-se genuinamente a enfrentar essas tormentosas questões, sem  buscar conflito de interesses, mas com a função de regular as relações privadas durante este período emergencial e transitório, oferecendo um norte para a jurisprudência e os profissionais do direito neste momento crucial, assim como contribuindo para a celeridade e uniformidade na pacificação dos conflitos decorrentes, ainda que reflexamente, da pandemia. É um documento coerente em seu mister, porque o momento atual não é favorável a alterações impensadas da legislação já existente de direito privado.

Renovo, portanto, meus cumprimentos aos juristas que vêm concretizando o  Regime Jurídico Emergencial e Transitório das Relações Jurídicas de Direito Privado (RJET) atinente ao período da pandemia da Covid-19, representado pelo PL n. 1.179/2020: o Ministro Dias Toffoli, o Ministro Antonio Carlos Ferreira e o Professor Otavio Luiz Rodrigues Jr., da Universidade de São Paulo, que incentivaram a redação do referido documento; bem como os professores Arruda Alvim (da PUC-SP), Fernando Campos Scaff,  Paula Forgioni, Francisco Satiro e Marcelo von Adamek (todos da USP), Rodrigo Xavier Leonardo (da UFPR) e Rafael Peteffi da Silva (da UFSC); além dos advogados Roberta Rangel e Gabriel Nogueira Dias. Também, a celeridade com que tem trabalhado o Congresso Nacional, em especial no regime emergencial, tem sido indispensável neste momento em que urgem as leis transitório-emergenciais e demais orientações. A aprovação do PL 1.179/2020 é, antes de mais nada, uma vitória da sociedade brasileira e, na sequência, representa um exemplo de trabalho conjunto entre juristas, acadêmicos, magistrados, advocacia, parlamentares e profissionais do direito!

Sem mais, se lhes posso dizer algumas palavras, minha cara leitora e meu caro leitor, é que, no contexto brasileiro, se torna ainda mais fundamental garantir o acesso à justiça neste momento gravado por complexidades, o que hoje temos procurado suprir, quase diuturnamente, pelos atendimentos eletrônico e remoto. E não basta o acesso à justiça: temos de buscar e apresentar as mais justas soluções para os cidadãos nas relações privadas ou públicas por eles firmadas, cidadãos esses que constituem a razão pela qual trabalha o Poder Judiciário.

Aos magistrados, advogados, promotores de justiça, defensores públicos, mediadores em geral e toda sociedade, estejamos todos preparados para muito trabalho (que não obstante a quantidade, deverá conservar a qualidade de sempre e até mesmo ser aperfeiçoada).

Instituições democráticas fortes, cidadania respeitada!

 é ministro, presidente eleito do Superior Tribunal de Justiça e corregedor nacional de Justiça.

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Eficácia do orçamento de guerra depende de ação do Executivo

Na mesma semana em que foi comemorado o Dia Internacional da Liberdade de Imprensa (3/5) e os 20 anos da publicação da Lei de Responsabilidade Fiscal (5/5), outro tema de Direito Financeiro se impõe à análise nesta coluna quinzenal, que é o da promulgação da EC 106, que aprovou o chamado Orçamento de Guerra.

Até pelo nome que foi adotado, lembra os ensinamentos do economista John Maynard Keynes para a ultrapassagem dos escombros da 1ª Guerra Mundial (As consequências econômicas da paz, de 1919) até as perspectivas de uma nova guerra mundial (Como pagar pela guerra, de 1940), passando por sua obra máxima (Teoria geral do emprego, do juro e da moeda, de 1936). Enfrentamos atualmente uma nova Guerra Mundial, desta vez contra um vírus inesperado, de proporções assustadoras, que nos obriga a revisitar as ideias de Keynes, que pregam a intervenção do Estado para combater um problema que afeta a todos, de uma forma ou de outra. Tudo indica que nos livros de história esta pandemia será registrada como o evento que inaugurou o século XXI, tal como a queda do Muro de Berlim encerrou o breve século XX, nas palavras de Eric Hobsbawm, concorrendo com a queda das Torres Gêmeas, em Nova Iorque, em 2001.

O Orçamento de Guerra, promulgado pelo Congresso Nacional como a Emenda Constitucional 106, é a resposta brasileira aos esforços de guerra contra a Covid-19, que está assolando muitas vidas e a saúde dos brasileiros (mais de 11 mil mortos e 160 mil contaminados até aqui, segundo as estatísticas oficiais subdimensionadas) e devastará nossa economia (previsão de queda do PIB superior a 7%, segundo as mais recentes projeções).

O mecanismo criado busca isolar os gastos com o combate à Covid-19 dos demais gastos previstos no orçamento anual. Trata-se de uma técnica de planejamento e gestão orçamentária para permitir que se afaste temporariamente a responsabilidade fiscal e a busca de certo equilíbrio, apontando para a necessária prioridade de gastos para a preservação da vida e da saúde da população brasileira e a manutenção das empresas. Isso certamente acarretará maiores dispêndios públicos com saúde e preservação dos empregos e das empresas, ao mesmo tempo em que gerará maior endividamento público, pois as receitas correntes cairão de forma drástica.

Quais as principais determinações da EC 106?

Estabelece para a União um regime extraordinário fiscal, financeiro e de contratações que vigorará durante o estado de calamidade pública reconhecido pelo Congresso Nacional decorrente de pandemia (art. 1º), com efeitos retroativos a 20/03/20 (art. 10), que se encerrará quando o Congresso Nacional declarar encerrado o estado de calamidade pública (art. 11), hoje datado para 31/12/2020, segundo o Decreto Legislativo 02/20.

É atribuída a possibilidade de o Poder Executivo Federal adotar processos simplificados de contratação de pessoal, em caráter temporário e emergencial, e de obras, serviços e compras, com flexibilização de forma temporal e objetivada da LRF e de exigências constitucionais (art. 2º), tal como foram afastadas as limitações legais quanto à criação, à expansão ou ao aperfeiçoamento de ação governamental que acarrete aumento de despesa e à concessão ou à ampliação de incentivo ou benefício de natureza tributária da qual decorra renúncia de receita (art. 3º). Está sendo permitida a contratação de empresas em débito com a previdência social (art. 3º, parágrafo único).

A regra de ouro financeira está sendo relativizada, ou seja, a União poderá se endividar para fazer frente a despesas correntes, e não apenas para despesas de capital (art. 4º, caput).

O pagamento dos juros e encargos da dívida pública foram expressamente ressalvados, como de hábito, podendo ser realizados (art. 6º).

Durante esse período pandêmico foi autorizado ao Banco Central a compra e venda de: (a) títulos de emissão do Tesouro Nacional, bem como de (b) ativos de empresas privadas que, no momento da compra, tenham classificação em categoria de risco de crédito equivalente a BB- ou superior, conferida por pelo menos uma das três maiores agências internacionais de classificação de risco, e preço de referência publicado por entidade do mercado financeiro (art. 7º). Destaca-se que nestas operações deve ser dada preferência à aquisição de títulos emitidos por microempresas e por pequenas e médias empresas — o que, embora meritório, parece algo de difícil operacionalização pois, qual pequena ou média empresa possui classificação de risco?

Para estas operações de crédito o Banco Central do Brasil editará regulamentação sobre exigências de contrapartidas, vedando que as empresas: (a) paguem juros sobre o capital próprio e dividendos acima do mínimo obrigatório estabelecido em lei ou no estatuto social vigente na data de entrada em vigor da EC; e (b) aumentem a remuneração, fixa ou variável, de diretores, membros do conselho de administração e dos administradores das empresas privadas envolvidas na operação, incluindo bônus, participação nos lucros e quaisquer parcelas de remuneração diferidas e outros incentivos remuneratórios associados ao desempenho (art. 8º). Trata-se de uma boa iniciativa, de muito difícil acompanhamento e controle, porém bastante adequada para a operação proposta.

A preocupação com a transparência de todas essas operações está bastante evidenciada na EC 106, como se vê: (a) o Ministério da Economia publicará, a cada trinta dias, relatório com os valores e o custo das operações de crédito realizadas (art. 4º, parágrafo único); (b) as autorizações de despesas relacionadas ao enfrentamento do covid-19 devem constar de programações orçamentárias específicas (art. 5º, I); e (c) o Banco Central do Brasil fará publicar diariamente as operações realizadas, de forma individualizada, com todas as respectivas informações, inclusive as condições financeiras e econômicas das operações, como taxas de juros pactuadas, valores envolvidos e prazos (art. 7º, §2º).

Havendo irregularidade ou descumprimento dos limites estabelecidos na EC, o Congresso Nacional poderá sustar o ato (art. 9º), o que aponta para o efetivo poder de controle do Legislativo Federal, que se espera seja fortemente exercido.

Também se verifica a preocupação com a prestação de contas apartada e continuada do orçamento geral, como se identifica nos seguintes itens: (a) as autorizações para as despesas serão avaliadas separadamente na prestação de contas bimensal que a Presidência da República deve encaminhar ao Congresso (art. 5º, II); e (b) o Presidente do Banco Central do Brasil prestará contas ao Congresso Nacional, a cada 30 (trinta) dias, do conjunto das operações de crédito realizadas (art. 7º, §3º).

Enfim, considerando um primeiro olhar sobre a EC 106, a impressão geral é que se trata de um bom produto legislativo, com pesos e contrapesos bastante adequados, mantido o poder de controle no Congresso, que se espera venha a ser exercido com atenção e responsabilidade. Na verdade, trata-se de uma moldura, cuja tela deve ser preenchida pelo Executivo, pois afasta de suas obrigações a busca pelo equilíbrio fiscal, retirando diversos limites financeiros estabelecidos pela Constituição e pela LRF, por período certo e para objetivos específicos. Nenhum presidente teve tanta folga para usar o orçamento nos últimos vinte anos.

Neste passo, espera-se que o Poder Executivo federal tenha capacidade para enfrentar a pandemia, criando um já tardio gabinete de crise, capaz de gerenciar com presteza e habilidade as medidas nacionais a serem adotadas, o que envolve as necessárias transferências governamentais para Estados e Municípios. Seguramente existem técnicos no governo federal bastante habilitados para esta tarefa — espera-se que eles sejam colocados à frente dessas funções e que tenham a possibilidade de exercer suas competências sem ingerências nefastas ao escopo pretendido.

Permanece a lição de Keynes, de que a intervenção do Estado nos momentos de crise seja determinante para retornarmos a trilhar os caminhos da boa governança de modo ágil e responsável. Não é uma fase para a adoção de um receituário liberal, pois a mão invisível do mercado foi atacada pela Covid-19 e precisa de uma boa dose de keynesianismo para ser recuperada.

 é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.