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MP 966: Como fica a responsabilidade dos agentes públicos?

1. OBJETO

Antes de tudo, averbamos nossa satisfação em contribuir para os debates jurídicos promovidos na coluna “Direito Civil Atual”, mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Agradecemos ao Livre-Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo Otávio Luiz Rodriguez Junior pelo convite.

Objetivamos esmiuçar duas questões: (1) a responsabilidade civil e administrativa de agentes públicos dentro e fora do contexto da pandemia do novo coronavírus (Covid-19) à luz da recentíssima Medida Provisória nº 966/2020; e (2) as implicações disso na responsabilidade civil do Estado.

Desde logo, fique claro: uma coisa é o agente público pessoalmente responder civil ou administrativamente pelos danos causados a terceiros ou por infração a norma administrativa; outra coisa é o Estado responder por danos causados aos cidadãos pelos agentes públicos. O presente artigo trata das duas hipóteses.

Dividiremos a análise em três partes que serão publicadas aqui na Coluna de “Direito Civil Atual”. Hoje, vamos com a primeira parte.

2. RESUMO DA MP

Em 14 de maio de 2020, foi publicada a MP nº 966/2020, que, em suma, nos seus 4 artigos, objetiva “aliviar” o regime de responsabilidade civil e administrativa dos agentes públicos.

O diploma urgente estabelece que, somente no caso de dolo ou erro grosseiro, os agentes públicos podem ser responsabilizados pela prática de atos administrativos direta ou indiretamente relacionados com os transtornos causados pela pandemia do Covid-19 (art. 1º, caput e § 2º).

Esclarece ainda que o gestor público que se baseie em opinião técnica de outrem (como nos pareceres dos advogados públicos) fica imunizado diante de eventuais equívocos desse opinativo, salvo: (1) conluio ou (2) viabilidade de o gestor aferir o dolo ou erro grosseiro no opinativo (art. 1º, § 2º).

Fixa, por fim, critérios para a caracterização do erro grosseiro (arts. 2º e 3º).

A entrada em vigor da MP é na data de sua publicação (art. 4º).

3. REGIME DE RESPONSABILIDADE CIVIL E ADMINISTRATIVA DO AGENTE PÚBLICO E A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Neste capítulo, estamos a tratar apenas da responsabilidade pessoal do agente público, seja na esfera civil, seja na esfera administrativa.

As reflexões aqui lançadas repercutirão também na esfera penal, pois, como o Direito Penal é a ultima ratio (princípio da intervenção mínima do Direito Penal), não se poderá, em regra, considerar crime conduta que, sequer, enseje responsabilização administrativa.

Começaremos por abordar o regime de responsabilidade antes da MP nº 966/2020.

Posteriormente, analisaremos o que mudou com o advento dessa norma urgente.

    1.  Situação anterior à MP 966/2020

Passemos a tratar do regime de responsabilidade administrativa e, depois, do regime da responsabilidade civil do Estado e do agente público.

3.1.1. Responsabilidade administrativa

Antes de tratar do assunto em epígrafe, convém classificarmos os atos administrativos em duas espécies:

  1. Atos administrativos de interpretação: os atos que, primordialmente, exigem do agente público a interpretação da legislação vigente, a exemplo dos pareceres e dos despachos de análise da legalidade de um processo administrativo[2], ou os que envolvem outro tipo de opinião técnica diante de certo grau de indeterminação nos moldes do que exporemos no capítulo 3.1.3.
  2. Atos administrativos de execução: os atos que, primordialmente, exigem um mero cumprimento de comando de ordem superior, a exemplo dos atos de cumprimento de uma ordem de apreensão de mercadorias ou dos atos de obediência de portarias ou de outros atos normativos (a exemplo da pesquisa de preço feita pelo agente público em um processo de licitação por ordem da chefia ou em cumprimento de um portaria). Nesses casos, o exame da legalidade do ato por parte do agente público é extremamente superficial, pois, em princípio, só ordens manifestamente ilegais devem ser descumpridas.

O regime de responsabilidade civil e administrativa tem de ser diferenciado a depender do tipo de ato administrativo envolvido.

De fato, a responsabilidade pressupõe a prática de um ato ilícito (só se responsabiliza quem violou o ordenamento). E, por regra basilar de Direito, não se pode considerar ilícita a mera divergência de interpretação de uma norma, pois a pluralidade é da natureza da atividade hermenêutica. Já de há muito se aboliu o “crime de exegese”. Postura diversa do ordenamento somente recrudesceria o famoso e nocivo fenômeno conhecido como “apagão das canetas” (fruto do famigerado “Direito Administrativo do Medo”), assim entendida a tendência de os agentes públicos oporem obstáculos ao funcionamento da máquina pública com interpretações restritivas e burocratizantes com o objetivo de proteger-se de eventuais processos disciplinares posteriores. Detalhamos esse cenário e expusemos casos concretos em outro artigo[3].

Em relação aos primeiros atos (os de interpretação), o regime de responsabilidade civil e administrativa do agente público tem de ser menos rigoroso. Aplica-se que o que chamamos de “regime especial de responsabilização do agente público”.

Já sinalizou para essa direção a Lei da Segurança Hermenêutica (Lei nº 13.655/2018), que acrescentou os arts. 20 ao 30 à Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB). O Decreto nº 9.830, de 10 de junho de 2019, regulamentou esses dispositivos.

 Tivemos a oportunidade de, com minúcias, tratar dessa inovação em outro artigo, para cuja leitura remetemos o leitor[4], além de haver vários outros trabalhos acadêmicos sobre o assunto[5].

 Sobre os requisitos da responsabilidade civil e administrativa do agente público por infração hermenêutica (= por suas decisões ou opiniões técnicas), defendemos que, à luz dos arts. 20 a 30 da LINDB, é preciso estarem presentes os seguintes requisitos:

  1. Dolo ou erro grosseiro (art. 28, LINDB): criticamos a escolha do erro grosseiro pelo legislador e defendemos que deveria ser espelhado o regime de responsabilidade dos operadores do Direito em processos judiciais, de modo a só admitir o dolo ou a fraude como requisitos de responsabilização[6].
  2. parâmetro da contextualização na apuração da responsabilidade do agente público (art. 22, LINDB): é preciso ter um grau de empatia (“colocar-se no lugar do outro”) na aferição da conduta do agente público, de modo a verificar se, à época do ato, era razoável ou não a sua conduta[7]. Por exemplo, é evidente que não se pode exigir o mesmo grau de acuidade de um agente público situado em um órgão público com elevadíssima sobrecarga de trabalho e sem condições mínimas de trabalho por conta da precariedade do local em comparação com um agente público lotado em um “oásis” do serviço público. “Servidor público não é milagreiro”.
  3. ilicitude da conduta: a conduta do agente público tem de contrariar o ordenamento jurídico. Trata-se de requisito implícito ao próprio conceito de responsabilização. Nesse ponto, é preciso lembrar que a dúvida jurídica razoável é uma excludente ou atenuante de responsabilidade civil e administrativa, conforme já tivemos a oportunidade de defender alhures[8].

Em relação aos segundos atos (os de execução), a regra é a aplicação do que chamamos de “regime comum de responsabilização do agente público”, à luz do qual se exigem os seguintes requisitos:

  1. culpa, ainda que simples: o fundamento são os arts. 186 e 927 do Código Civil e dos dispositivos específicos da legislação de serviço público (como, no âmbito federal, os arts. 116 e 117 da Lei nº 8.112/1990).
  2. parâmetro da contextualização na apuração da responsabilidade do agente público (art. 22, LINDB): esse parâmetro deve ser utilizado para qualquer caso de responsabilização de agente público.
  3. Ilicitude da conduta (implícito).

Não se nega, porém, que, mesmo nos atos de execução, há uma parte que envolve interpretação, ainda que superficial, da legislação. Para essa parte, vigora o regime especial de responsabilização, para o qual, ao lado do parâmetro da contextualização, se exige a presença de culpa grave ou erro grosseiro.

Caríssimo(a) leitor(a), seguiremos a esmiuçar o regime de responsabilidade administrativa do agente público antes da MP nº 966/2020 na próxima publicação desta Coluna mantida pela Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Até mais!

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-TorVergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

 é advogado, professor de Direito Civil e de Direito Notarial e de Registro, consultor legislativo do Senado Federal em Direito Civil, Processo Civil e Direito Agrário e doutorando, mestre e bacharel em Direito pela Universidade de Brasília. Ex-membro da AGU e ex-assessor de ministro STJ.

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Deives Cruzeiro: A Covid–19 e as conciliações trabalhistas

A pandemia da Covid–19 não somente atingiu o sistema de saúde, seus prejuízos irradiaram-se para diversos setores, como a economia, e, inevitavelmente, alcançaram as relações de trabalho. Originariamente, o debate jurídico sobre as consequências trabalhistas da pandemia convergiu para eventual caracterização de “fato do príncipe” ou de força maior, na medida em que referidos institutos relacionam-se com os contratos de emprego potencialmente atingidos pelas medidas de quarentena.

Entretanto, as consequências trabalhistas da Covid–19 afetaram as relações jurídico-processuais. As implicações da pandemia no âmbito processual não se limitaram à suspensão dos prazos processuais ou das audiências trabalhistas (Resolução nº 313/CNJ e Ato Conjunto CSJT.GP.VP e CGJT. nº 001/2020), haja vista que as obrigações ajustadas pelas partes no âmbito da relação processual também passaram a ser objeto de questionamentos, por exemplo, as conciliações pendentes de cumprimento.

Formularam-se requerimentos no bojo dos processos trabalhistas a fim de que os vencimentos das parcelas de conciliação fossem postergados, de que os termos da conciliação fossem redefinidos ou de que a cláusula penal deixasse de ser aplicada. Evidentemente que o juiz do Trabalho, lidando diuturnamente com a seara eminentemente social do Direito, não pode ser alheio à situação excepcional causada pela Covid-19, mas toda deliberação jurisdicional deve respeitar os institutos jurídicos e, em especial, as normas constitucionais.

A decisão jurisdicional que homologa conciliação trabalhista é imbuída de irrecorribilidade pelas partes (artigo 831, parágrafo único/CLT). Em razão dessa qualidade, a decisão homologatória de conciliação transita em julgado no momento da homologação (Súmula nº 100, V/TST).

Logo, a formação da coisa julgada (artigo 5º, XXXVI/CF) impede que os termos da conciliação sejam alterados autônoma e unilateralmente pelo juiz do Trabalho.

Ademais, ainda que o TST (Súmula nº 259/TST) entenda que a ação rescisória corresponde à via processual adequada para desconstituição do termo de conciliação, o corte rescisório pressupõe existência de vício na decisão rescindenda (artigo 966/CPC). Porém, eventual pretensão de alteração dos termos da decisão homologatória de conciliação por força da Covid–19 ampara-se nas consequências advindas da pandemia e, por isso, não se refere a qualquer vício do ato jurisdicional suscetível do corte rescisório.

Amparando-se no trânsito em julgado da decisão homologatória de conciliação, poder-se-ia argumentar que os termos ajustados na conciliação poderiam ser objeto de revisão (artigo 505, I/CPC). A previsibilidade processual da revisão enseja alteração das circunstâncias de fato ou de direito existentes à época do proferimento da decisão jurisdicional.

Contudo, as circunstâncias de fato ou de direito suscetíveis de revisão correspondem àquelas que foram objeto de definição na sentença. A sentença homologatória de conciliação não implica análise do mérito pelo juízo trabalhista e, por isso, não existe definição de situação de fato ou direito. Portanto, entende-se que o instituto da revisão (artigo 505, I/CPC) é inaplicável à hipótese de alteração dos termos da conciliação trabalhista.

Com efeito, a conciliação trabalhista trata-se de solução protagonizada pelas partes e advogados, haja vista que o juiz do Trabalho atua unicamente fazendo ponderações acerca dos riscos processuais e das possibilidades conciliatórias. Nesse contexto, a repactuação das condições da conciliação depende de deliberação conjunta dos litigantes por força do instituto da novação (artigo 360, I/CC).

Relativamente à eventual cláusula penal estabelecida por ocasião da conciliação trabalhista homologada, sua incidência também tem sido objeto de debates. Inclusive há afirmação de que a situação de força maior (artigo 1º, parágrafo único da Medida Provisória nº 927) autorizaria a exclusão da multa pelo inadimplemento do pacto trabalhista (artigo 537, §1º/CPC). Todavia, o instituto trabalhista da força maior previsto legalmente (artigo 501/CLT) não implica isenção de pagamento de títulos, mas unicamente redução da parcela devida (artigo 502/CLT).

Além disso, o dispositivo processual que prevê exclusão da medida pecuniária (artigo 537, §1º/CPC) está inserto no capítulo relativo ao cumprimento de sentença que reconheça a exigibilidade de obrigação de fazer ou de não fazer. Portanto, o conteúdo ali tratado corresponde a meio coercitivo de cumprimento da obrigação de fazer ou de não fazer, logo, consiste em astreintes.

As astreintes possuem natureza eminentemente processual e, por isso, esse regramento do Código de Processo Civil (artigo 537, §1º/CPC) não se confunde com a cláusula penal fixada na conciliação trabalhista de natureza material em razão de corresponder a obrigação acessória que visa a garantir o adimplemento da obrigação principal e a definir antecipadamente as perdas e danos advindos do descumprimento da avença (artigo 411/CC). Além disso, em se tratando de cláusula penal, o ordenamento jurídico não prevê a possibilidade de sua exclusão nas hipóteses de descumprimento da obrigação por culpa do devedor, mas somente de sua flexibilização a depender da natureza e finalidade do negócio jurídico entabulado (artigo 413/CC).

A exclusão da cláusula penal é prevista nas ocasiões em que o descumprimento da obrigação não derive de culpa do devedor (artigo 408/CC). Esse dispositivo civilista decorre da pressuposta isonomia entre os contratantes nas relações civis e é preciso ser reanalisado a partir do prisma trabalhista que trata da disparidade entre as partes e da assunção dos riscos do negócio pelo empregador (artigo 2º/CLT).

Em verdade, a pandemia da Covid–19 corresponde à situação imprevista e excepcional. Contudo, o ordenamento jurídico é construído prevendo a normalidade e, também, prevendo a excepcionalidade, por exemplo, ao tratar do estado de defesa (artigo 136/CF) e do estado de sítio (artigo 137/CF).

No âmbito trabalhista, as situações excepcionais e de crise são igualmente reguladas, por exemplo, redução salarial mediante negociação coletiva (artigo 7º, VI/CF) ou suspensão contratual para qualificação profissional (artigo 476-A/CLT). Logo, argumentos de que a situação de exceção possibilitaria medidas de Direito e processuais excepcionais são contrários às cláusulas pétreas de proteção à legalidade (artigo 5º, I/CF), ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada (artigo 5º, XXXV/CF) e igualmente contrários aos propósitos do constituinte originário que procurou garantir a estrutura jurídico-constitucional inclusive em momentos de crise.

Referência bibliográfica

TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 2. ed. São Paulo: Método, 2012.

 é juiz do Trabalho substituto do Tribunal Regional do Trabalho da 2ª Região, pós-graduado em Economia do Trabalho e Sindicalismo pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes (Ucam).

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Parvati Gonzalez: Como monetizar crédito declarado em MS

Após o trânsito em julgado de decisão que reconhece o direito à restituição de tributos em sede de mandado de segurança, as empresas logo questionam seus gestores sobre como monetizar esse crédito tributário. Ou seja, como transformar essa decisão judicial em dinheiro, com a efetiva entrada de valores no caixa da empresa?

Essa pergunta, que poderia ser respondida de forma bem simples, pode trazer consigo uma série de implicações, não sendo raras as situações em que o contribuinte se mostra diante do jargão “ganhou, mas não levou”.

Contudo, a publicação da Portaria nº 9.917/2020 da PGFN pode mudar o rumo dessa realidade, pois inaugurou novas formas de se operacionalizar esse encontro de contas, com mecanismos mais racionais para a apuração de débitos e créditos.

Por meio da portaria, o contribuinte poderá utilizar créditos líquidos e certos reconhecidos em decisão judicial transitada em julgado ou até mesmo precatório de terceiro para amortizar ou liquidar saldo devedor com a União.

Há exigências a serem cumpridas, tais como a formalização de transação individual, inclusive liquidando em dinheiro eventual entrada mínima, mas é certo que, para muitas empresas, essa será uma saída muito mais eficiente.

A cessão de precatório a terceiros, inclusive, pode ser a única forma de monetizar créditos tributários reconhecidos judicialmente em favor de empresas que já não tenham operações ativas ou que sejam notadamente credoras com a União, em razão de benefício fiscal ou acúmulo de prejuízos fiscais, por exemplo.

Assim, é preciso atentar-se ao fato de que, além da restituição administrativa ou a compensação dos créditos tributários com débitos de tributos de qualquer natureza administrados pela Receita Federal [1], há outros meios para viabilizar a monetização de créditos reconhecidos judicialmente.

Dentro desse contexto, cabe afirmar que os tribunais pátrios admitem a possibilidade de o contribuinte optar pela restituição via precatório de crédito reconhecido por sentença declaratória em sede de mandado de segurança.

O STJ, em decisão proferida em sede de recursos repetitivos, aceitou a opção, o que ensejou o enunciado da Súmula 461 do STJ, segundo o qual “o contribuinte pode optar por receber, por meio de precatório ou por compensação, o indébito tributário certificado por sentença declaratória transitada em julgado”.

Por sua vez, o STF, em sede de repercussão geral, também definiu que “o pagamento dos valores devidos pela Fazenda Pública entre a data da impetração do mandado de segurança e a efetiva implementação da ordem concessiva deve observar o regime de precatórios previsto no artigo 100 da Constituição Federal” [2].

Prevalecia na jurisprudência o entendimento de que o mandado de segurança não podia fazer as vezes de ação de cobrança, de modo que a sentença ali proferida somente teria cunho declaratório e não executório. Esse entendimento inclusive foi sumulado pelo STF, ensejando o enunciado da Súmula 269, segundo o qual: “o mandado de segurança não é substitutivo de ação de cobrança”.  Nesse mesmo contexto, foi editada a Súmula 213 do STJ, segundo a qual “o mandado de segurança constitui ação adequada para a declaração do direito à compensação tributária”.

Com base nisso, a expectativa de direito firmada após o trânsito em julgado de uma decisão favorável em sede de mandado de segurança era no sentido de que se poderia prosseguir com a execução do julgado apenas na esfera administrativa, o que, inclusive, ensejaria o pedido de restituição para aqueles contribuintes que não possuíssem débitos tributários à compensar.

Contudo, o entendimento passou a ser questionado, principalmente porque o rito da restituição administrativa é muito mais célere do que o rito dos precatórios, o que poderia acarretar em ofensa à ordem prevista no artigo 100 da Constituição Federal, pelo qual “os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim”.

Assim, mesmo em caso de mandado de segurança em que se pleiteia a declaração do direito à restituição ou compensação na esfera administrativa, poderá ser assegurando ao contribuinte o direito à execução judicial do título com o pedido de expedição de precatório.

Portanto, a pergunta sobre como monetizar o crédito tributário declarado em mandado de segurança está longe de ser simples.

Apesar de ser indiscutível que seguir com a compensação na esfera administrativa será o meio mais rápido para tanto, é importante ter em mente que os contribuintes poderão ter à sua disposição a possibilidade de executar judicialmente a sentença transitada em julgado e, posteriormente, utilizar os valores liquidados para quitar saldo devedor com a União. Ou, ainda, requerer a expedição de precatório, o qual poderá ser cedido a terceiros para fins de transação com a União.

 é advogada especialista em Direito Tributário da Advocacia Lunardelli e pós-graduada em Direito Tributário pelo IBET.

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Leniência: força maior, imprevisão, função social e boa-fé (parte I)

O texto desta semana de nossa coluna, em primeira de duas partes, tem como objetivo analisar se, no contexto das recentes implicações causadas pelo Covid-19, seria possível pleitear algo similar a um reequilíbrio econômico-financeiro em acordos de leniência celebrados entre companhias e o Ministério Público. Antecipamos nossa resposta afirmativa, passando a demonstrar os fundamentos para tanto em seguida.

O acordo de leniência é um negócio jurídico, porque celebrado entre sujeitos de direito, com aptidão para produzir efeitos e dotado de sinalagma. Seu aspecto negocial, aliás, é evidenciado mais claramente por expressões como “proposta” e “negociação”, constantes da Lei n. 12.846/2013 e do Decreto n. 8.420/2015.

Como negócio que é, com potencial de protrair suas consequências no tempo, o acordo de leniência não deve fugir à regra regente dos demais ajustes a admitir revisitação das obrigações assumidas em razão de fatos supervenientes. Ilustram o que se está a dizer: (i) a teoria da imprevisão, o rechaço aos ônus oriundos de caso fortuito ou de força maior e a resolução por onerosidade excessiva (artigos 317, 393 e 478 do Código Civil), que subordinam o pacta sunt servanda à preservação das condições que ensejaram a avença (rebus sic stantibus); e (ii) o reequilíbrio econômico-financeiro nos contratos administrativos, com assento constitucional (artigo 37, XXI, da Constituição) e detalhamento pelos artigos 57, § 1º, 58, I e § 2º, e 65, II, d, da Lei n. 8.666/1993, e 9º, § 2º, da Lei n. 8.987/1995, além, quando menos, do partilhamento de riscos trazido pelos artigos 4º, VI, 5º, III, da Lei n. 11.079/2005.

Todos os institutos acima são tributários de uma constatação simples: não faltam mecanismos no direito que buscam recompor obrigações supervenientemente desequilibradas por fatores capazes de alterar as condições originárias das bases negociais que conduziram ao ajuste.

Assentada a premissa sob uma perspectiva negocial, importa analisarmos o tema pelo prisma sancionador, invocando-se, para tanto, disposições normativas que, de igual modo, buscam prevenir punições desproporcionais, ainda que essa desproporcionalidade se dê supervenientemente.

No ponto, o artigo 2º, VI, da Lei n. 9.784/1999, versa sobre a necessidade de observância de uma adequação entre obrigações e sanções e o atendimento ao interesse público. A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, por seu turno, reforçou em seus artigos 22 e 23 a necessidade de uma correspondência entre circunstâncias fáticas e punições. Não destoa, finalmente, a própria Lei n. 12.846/2013, que, ao dispor sobre as sanções cabíveis em processo administrativo de responsabilização, prevê em seu artigo 7º critérios para dosimetria, entre eles valendo destacar o inciso VI, que cuida da situação econômica do infrator.

Ou seja, à luz do que exposto até aqui: (i) as punições na seara sancionadora devem guardar proporcionalidade, levando em conta como uma das variáveis para seu cálculo a situação econômica do agente; e (ii) nos acordos de leniência, em que há disposição negocial sobre sanções, os efeitos se protraem no tempo, possuindo por isso aptidão para conviver com mudanças supervenientes capazes de repercutir sobre as obrigações contraídas de modo a mantê-las proporcionais.

Ainda além, convém apontar que as sanções pecuniárias versadas em acordo de leniência, quando do seu cálculo negocial, declaradamente levam em consideração a viabilização da continuidade da pessoa jurídica, seja por sua função social, seja, precisamente, para que garantam condições para que ela possa inclusive fazer frente às obrigações que assumiu no ajuste (ability to pay). Nesse particular, fazemos menção à própria exposição de motivos (EMI n. 00207/2015 MP/AGU/CGU/MJ) da Medida Provisória n. 703/2015:

(…) Assim, em razão da urgência de se contar com procedimentos mais céleres para firmar acordos de leniência e salvaguardar a continuidade da atividade econômica e a preservação de empregos é que se faz necessária a edição desta Medida Provisória, de texto análogo ao já aprovado pelo Senado Federal.

No mesmo sentido se deu decisão judicial que homologou um dos primeiros acordos de leniência celebrados no Brasil fora da seara concorrencial, proferida pelo Juízo da 13ª Vara Federal da Seção Judiciária do Paraná e novamente realçando a importância da continuidade e da preservação da companhia:

(…) com o acordo, preserva-se a própria existência da empresa e a continuidade de suas atividades, o que, apesar dos crimes, encontra justificativa em evitar os efeitos colaterais negativos na economia e nos empregos por ela gerados, direta ou indiretamente.

A partir do acordo, espera-se que a empresa, resolvendo a sua situação jurídica, logre obter paulatinamente a sua reabilitação, inclusive com a possibilidade de participar de novas licitações e contratos públicos.

Tendo presente a preservação da empresa como benefício difuso da leniência, a viabilizar o próprio cumprimento dos compromissos assumidos, o objeto de reflexão passa a ser então exatamente saber se fatos supervenientes não teriam o condão de convolar obrigação, em princípio suportável, em sanção que posteriormente se torne desproporcional.

Contribui para a construção da resposta o entendimento de que a seara negocial aberta pela leniência não se exaure em definitivo; dito de outro modo, se foi dado às partes celebrar ajuste, decerto que poderiam rescindi-lo (vide Pet 7.003 no Supremo Tribunal Federal) ou aditá-lo, como ocorre por exemplo, nessa última hipótese, quando há adesão de novos lenientes ou de outros órgãos ou pessoas jurídicas que pretendam fazer uso das provas propiciadas pelo ajuste.

Se o acordo, então, admite inovação subjetiva, não há por que não se possa conceber a possibilidade de inovação objetiva, por exemplo com novação de obrigações; essa percepção se revela ainda mais promissora quando essa revisita aos termos do acordo se dá precisamente para o fim de reequilibrar obrigações de modo a resguardar a preservação da companhia e sua capacidade de fazer frente às obrigações que assumiu (ability to pay).

Em linha com o que se está a dizer, tome-se o artigo 16, § 4º, da Lei n. 12.846/2013, que enuncia que o acordo deverá estabelecer “condições necessárias para assegurar a efetividade da colaboração e o resultado útil do processo”. A teleologia dessa norma orienta que o ajuste deve projetar sua existência no tempo, buscando antever possíveis problemas e endereçá-los aprioristicamente de modo a assegurar a consecução de seu fim.

Natural, nada obstante, que o acordo não seja capaz de divisar todas as ameaças à ultimação de seu escopo, hipótese em que seria não somente uma possibilidade, mas uma verdadeira consequência natural da celebração em primeiro lugar do ajuste que as partes atuem para resguardá-lo.

A obrigação tornada supervenientemente insuportável é inegavelmente uma daquelas hipóteses, haja vista que a falência da companhia (ou sua morte, em sentido prático) seguramente prejudicará a efetividade do acordo, seja no que diz respeito à elucidação de fatos, seja no que diz respeito ao adimplemento das obrigações contraídas.

Como se viu mais acima, o artigo 7º, VI, da Lei n. 12.846/2013 prevê a situação financeira do agente como elemento a ser tomado em conta para a dosimetria de sanções pecuniárias. O que se está aqui a dizer, objetivamente, é que se aquele parâmetro influenciou a obrigação quando da sua fixação, também deve influenciar sua readequação quando a forma de seu cumprimento se estender no tempo.

Não estamos, de modo algum, a advogar em favor de uma redução de sanções. Em verdade, num raciocínio mais próximo à ideia de correção monetária, a possibilidade de revisita à obrigação firmada em acordo de leniência tem mais a ver, isto sim, com uma recomposição que mantenha intacto seu caráter punitivo-pedagógico, sem, contudo, desconsiderar mudanças importantes que possam ter ocorrido de modo a alterar os parâmetros balizadores da punição.

É falar: o reequilíbrio em sede de leniência revela na verdade não uma comutação, uma anistia ou uma redução a posteriori de pena, mas sim a inibição a que acontecimentos práticos acabem por agravar a obrigação convencionada. Dito de outro modo, se causaria espécie qualquer tentativa de se minorar os compromissos assumidos, certamente está a merecer idêntica repulsa o incremento posterior das sanções suportadas resultante de fatos supervenientes imprevisíveis. Se mudam os parâmetros, devem mudar as medidas.

Pontuados todos esses aspectos, os fatos supervenientes que serão objeto de nosso exame na semana que vem, porque a nosso juízo são aptos a justificar a revisita às obrigações estipuladas em acordos de leniência, são, cumulativa ou isoladamente: (i) a proteção deficiente conferida pelos ajustes, que não lograram desencadear efeitos na medida esperada pelos atores envolvidos; (ii) a recuperação judicial de companhias lenientes, com impactos sensíveis em sua ability to pay; e (iii) a pandemia de Covid-19 e seus impactos na macroeconomia. Até lá!


A revisão ou resolução por onerosidade excessiva tem sido reconhecida até mesmo em contratos aleatórios, conforme evidencia o enunciado n. 440, aprovado na V Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “É possível a revisão ou resolução por excessiva onerosidade em contratos aleatórios, desde que o evento superveniente, extraordinário e imprevisível não se relacione com a álea assumida no contrato.”

Leciona Caio Mário da Silva Pereira que os contratantes estão vinculados ao fiel cumprimento das cláusulas na medida em que as circunstâncias ao tempo da celebração sejam conservadas ou não sofram alterações que afetem o seu cumprimento. PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 10ª Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2000, v. 3, p. 98.

A Medida Provisória caducaria, mas, tendo sido editada dois anos após o início da vigência da Lei n. 12.846/2013, para alterá-la especificamente na parte relacionada ao acordo de leniência, sua exposição de motivos lançou importantes luzes sobre o instituto.

Disponível em: https://politica.estadao.com.br/blogs/fausto-macedo/wp-content/uploads/sites/41/2017/05/homologacao-acordo-odebrecht.pdf?amp&_gl=1*1qjts6t*_ga*YW1wLXRncTlfenI2WjgyZWluX05hRnNtYjZNYUdsVFpUbi1hcml2SWVGWTdNMVlCb2hCSklvcmpQU2NUc1BfQmZ2TW4

 é sócio-fundador do Mudrovitsch Advogados, professor de Direito Público, doutor em Direito Constitucional pela USP e mestre em Direito Constitucional pela UnB. Membro do grupo de trabalho instaurado pelo Conselho Nacional de Justiça destinado à elaboração de estudos e indicação de políticas sobre eficiência judicial e melhoria da segurança pública.

 é sócio do Mudrovitsch Advogados, especialista em Direito Constitucional, mestre em Direito pelo Instituto Brasiliense de Direito Público, professor de Processo Civil do IDP e vice-presidente da Associação Brasiliense de Direito Processual Civil.