Categorias
Notícias

Opinião: Os impactos da pandemia nas relações contratuais

Afinal, qual seria o limite da interferência do Estado nas relações contratuais privadas durante um período de pandemia?

Pode-se dizer que a indagação acima é revestida de imensa complexidade e encontra-se em discussão, atualmente, nos mais diversificados ramos do Direito, sendo possível constatar seus impactos em toda a sociedade, com efeitos, por exemplo, nas relações de trabalho, nas relações de consumo, em contratos imobiliários, enfim, em todas as relações bilaterais que ensejam direitos e obrigações para ambas as Partes, terminando por atingir certeiramente a ordem econômica e social do País.

Com base nesta premissa uníssona, pode-se afirmar que os primeiros reflexos da pandemia, Covid-19, no universo do Direito, advirão da Jurisprudência. Essa fonte do Direito secundária, pois sua emanação está vinculada à Lei, será a primeira a instruir o longo e sinuoso caminho que o Direito, em sua mais ampla magnitude, deve percorrer na devida resposta social que o momento exige.

Entretanto, será um intenso desafio a ser alcançado por parte do Poder Judiciário e que exigirá a contribuição dos Poderes Legislativo e Executivo em busca de um equilíbrio na elaboração de normas que poderão colidir contra o já sedimentado entendimento jurisprudencial, a fim de se propiciar o enfrentamento da crise por toda a sociedade. Trata-se da concepção moderna da Jurisprudência por uma tendência à supremacia da Função Social do Contrato em detrimento do pacta sunt servanda.

É o que já é visto, por exemplo, nos contratos de consumo em que o princípio do pacta sunt servanda não é aplicável de maneira absoluta, já que não se pressupõe autonomia plena de vontade. Todavia, nada obstante a remansosa compreensão da vulnerabilidade do consumidor nas relações de consumo, é nítido que o equilíbrio almejado nesta pandemia também trará consequências inversas à orientação jurisprudencial, simplesmente pela proteção do fornecedor com a finalidade específica de evitar um colapso nos setores mais castigados pela crise.

É o que é possível observar da adoção da Medida Provisória nº 948, de 8 de abril de 2020, a qual dispõe sobre o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos dos setores de turismo e cultura em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do Coronavírus (Covid-19).

A adoção desta Medida Provisória certamente esbarra nos mais elementares princípios do Código de Defesa do Consumidor, mas sua criação está condicionada justamente ao estado de calamidade pública reconhecido pelo mencionado Decreto Legislativo, de modo que a revisão dos contratos relacionados a esta matéria pelo Poder Judiciário poderá ser contrária aos interesses tutelados pelo Código de Defesa do Consumidor.

Por outro lado, nas relações trabalhistas, a Medida Provisória nº 927, instituída em 23 de março de 2020, teve a sua eficácia limitada por liminar do Supremo Tribunal Federal, diante da polêmica envolvendo o seu artigo 18, acerca da possibilidade de suspensão do contrato de trabalho, sem assistência sindical obrigatória. Diante das incertezas jurídicas e do aumento da crise, em 1º de abril de 2020, o Governo publicou a Medida Provisória nº 936, que regulamenta de forma muito mais ampla a intervenção da Lei nas relações trabalhistas e empresariais, visando consagrar a manutenção do emprego.

Conforme se observa na exposição de motivos da MP nº 936, a situação de emergência de saúde pública e as primeiras diretrizes jurídicas para enfrentamento da pandemia já haviam sido positivadas na Lei nº 13.979/20.

Porém, para que o reequilíbrio nas relações contratuais privadas não seja palco para retumbantes injustiças, faz-se imprescindível um olhar subjetivo em cada situação. Primeiro, pelas próprias Partes e seus advogados e, em última análise, mediante arbitramento Judicial.

Neste contexto, oportuna a citação das sábias palavras do jurista José Roberto de Castro Neves[1], que diz: “O Direito serve ao homem, e não o homem ao Direito.”

Não parece razoável tratar todos os casos de forma unitária, em função de imposição legal, sem que sejam consideradas as peculiaridades de cada caso que levaram à revisão de uma situação antes acordada em contrato.

Neste ínterim, destaca-se que apesar da força vinculante dos contratos, em hipóteses de imprevisibilidade ou situação extraordinária que alterem demasiadamente o equilíbrio do contrato, há a possibilidade de que a parte que se considera lesada busque a guarida do Poder Judiciário para requerer o seu reequilíbrio, como vem ocorrendo em demasia nos Tribunais pátrios.

A exemplo da assertiva acima, traz-se ao presente texto recente decisão proferida em 02 de abril pelo MM. Juízo da 22ª Vara Cível do Foro Central da Capital de São Paulo, na qual foi deferida liminar, nos autos do processo nº 1026645-41.2020.8.26.0100, para reduzir em 70% (setenta por cento) o valor locativo de um restaurante, durante o período de pandemia. Ao deferir a tutela, o Magistrado não se absteve de aferir o binômio necessidade/possibilidade, buscando repartir de forma isonômica as perdas inevitáveis de cada Parte, tendo como fundamento legal a função social do contrato.

Situações como essa se replicaram pelo Tribunal Bandeirante, e não tardou a ser proferida a primeira decisão de segunda instância, ressonando uniformidade e segurança nas interpretações congêneres “a quo”. Nos autos do processo nº 2065372-61.2020.8.26.0000, a Desembargadora Daise Fajardo Nogueira Jacot, da 27ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, indeferiu o pedido de efeito suspensivo em agravo de instrumento e manteve a liminar concedida pelo r. Juízo a quo que “optou pela solução intermediária de redução de cinquenta por cento (50%) do locativo mensal, repartindo entre a locadora e a locatária o esforço necessário para garantir a continuidade da relação jurídica”, em razão da crise pandêmica.

Em todas essas situações, o que vislumbra como fator primordial a autorizar a intervenção Judiciária no pacto particular é a relação dos contratantes com a sociedade, atados pela Função Social do Contrato. A relativização da autonomia de vontade das Partes se faz imperativa, para repelir injustas resistências à manutenção de atividades geradoras de empregos.

Sendo preceito Constitucional, recepcionado pelo Código Civil, em seu artigo 421, a Função Social do contrato engloba as repercussões da relação contratual no âmbito social. Reduzir uma obrigação contratual locativa, para ajudar a evitar a quebra de um restaurante, que faria cessar suas atividades e ocasionaria a perda do emprego de garçons, cozinheiros, manobristas, além da cessação de toda a engrenagem paralela movida pela atividade, como aquisição de insumos, demais fornecedores, contadores, gás, água, energia elétrica etc., atende à Função Social do contrato de locação que o estabelecimento celebrou.

Entretanto, esse elo entre a autonomia das Partes e a sociedade é único em cada relação. Mantenhamos como exemplo um restaurante. Há Partes Locadoras que detém vários imóveis, e cuja dependência econômica perante o aluguel é mínima. Certamente há casos em que a Parte Locadora é uma viúva, idosa e que depende exclusivamente da renda daquele imóvel para sua própria subsistência. Há de se ponderar a redução dos prejuízos mediante vendas por “delivery”, bem como a importância da sobrevivência da atividade para a sociedade como um todo. Enfim, não há como o Judiciário se furtar a um olhar subjetivo para cada situação de conflito de interesses não solucionado amigavelmente pelas Partes.

A particularidade das demandas judiciais desta natureza é tamanha, que o juiz deverá analisá-las não somente à luz dos artigos 393 e 422, ambos do Código Civil, que tratam, respectivamente, dos casos de força maior e do consagrado princípio da boa-fé objetiva, mas com vistas a evitar oportunismos, haja vista a linha tênue que segrega a abissal diferença entre a “dificuldade temporária para o cumprimento de uma obrigação contratual” da “impossibilidade de cumpri-la”. Ou seja, tratam-se de termos e situações cujas consequências são completamente distintas.

De grande valia a lição de Anísio José de Oliveira[2], ao tratar da cláusula rebus sic stantibus, ao concluir que “Nunca se deve embarcar, em face de casos concretos, na caravela do unilateralismo!…”

A importância das céleres e bem fundamentadas decisões jurisprudenciais é palpável. Nos casos em que as Partes não logram um acordo, as decisões norteiam as notificações preliminares, encaminhadas por advogados, demonstrando à outra Parte que a resistência injustificada à renegociação encontra defesa legal, e assim “encorajando” um maior número de rearranjos extrajudiciais.

Ainda no tocante a esses princípios, de celeridade e economia processuais, convém lembrar e exaltar a importância dos advogados para a administração da Justiça, ao relembrar a célebre frase do jurista italiano Francesco Carnelutti, posteriormente corroborada pelo jurista Sobral Pinto, de que “o advogado deve ser o primeiro juiz da causa”. Nesse sentido, o primeiro olhar para dentro de cada situação conflituosa deve ser do causídico, que deve ponderar as circunstâncias de cada contrato, em consonância com suas particularidades e com base na jurisprudência atinente à hipótese, contribuindo para uma menor judicialização das repartições dos danos carreados a todos pela pandemia.

Gilberto Morelli de Andrade é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

Vinicius Tadeu Juliani é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

Kleber Miguel da Costa é advogado e sócio do escritório Andrade, Juliani e Costa — Sociedade de Advogados.

Categorias
Notícias

Opinião: Deve haver excludente de culpabilidade em crime fiscal

Diante da crise econômica mundial causada pela Covid-19, muito se tem questionado a respeito de quais ações legítimas e legais podem ser adotadas por empresas impactadas pela crise, a fim de diminuir-se-lhes os danos.

Muito embora a questão seja de extrema relevância, não houve, até o momento, pronunciamento concreto, especificamente no tocante à esfera criminal, pelo Poder Judiciário ou pelo Legislativo a respeito do assunto.

No entanto, pode-se analisar a questão a partir de decisões proferidas pelo Poder Judiciário em situações anteriores semelhantes à presente. Vejamos.

A incerteza quanto aos efeitos futuros e a magnitude dos problemas econômicos decorrentes da pandemia assolam o mercado internacional e nacional, e ensejam instabilidade globalizada.

Nesse contexto, suplicam os empresários por soluções econômico-financeiras com a adoção de medidas legítimas capazes de permitir sobrevida durante a crise instalada, de modo a garantir ao menos a existência de suas empresas e atividades comerciais, ainda que em condições extremamente diversas daquelas anteriormente observadas.

No entanto, como sói ocorrer em situações adversas, diante da omissão estatal, é possível que ocorram práticas de atos comissivos e omissivos, contrários à legislação, mas não abusivos, pois adotados com o fim de diminuir os graves impactos econômicos ou mesmo garantir a sobrevivência e continuidade de empresas e suas atividades comerciais.

É o caso, por exemplo, de empresas que deixam de adimplir com suas obrigações tributárias, notadamente com o recolhimento de tributos devidos, seja em decorrência de operações realizadas, produtos importados ou industrializados, seja em decorrência de faturamento ou folha de pagamento.

O não recolhimento de tributos pode ser conduta tipificada na esfera criminal, sendo enquadrada nos delitos previstos na Lei nº. 8.137/90, que define os crimes contra a ordem tributária, econômica e contra as relações de consumo.

Verifica-se na referida lei a criminalização de condutas que visem à supressão ou redução de tributos, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante condutas específicas, tais como: I) omitir informações às autoridades fazendárias; II) não recolher, no prazo legal, tributo ou contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos; e III) omitir declarações sobre renda para eximir-se, total ou parcialmente, do pagamento de tributos, entre outras. A pena para quem as pratica pode variar entre seis meses a cinco anos de reclusão e multa.

Muitos são os casos de pessoas físicas ou jurídicas que ajuízam medidas para obtenção de tutela diferenciada a permitir em sede liminar o não recolhimento do tributo. Todavia, estas não têm efeito definitivo ou satisfativo, pois dependem de pronunciamento final e apenas suspendem os efeitos moratórios. Porém, a esfera tributária, a mantença do dever de pagar o imposto, nesta hipótese de calamidade e ausência de opção, não se confunde com a penal.

A grande questão em torno da prática de tais condutas é se há algum meio apto a excluir a ocorrência de crime de quem as pratica, porquanto perpetradas exclusivamente em razão da crise causada pela Covid-19.

A resposta é positiva. É que o Direito Penal não se presta a punir uma pessoa que não enxerga opção de agir conforme o Direito. Isso porque a intenção deste ramo do direito, ao criminalizar determinadas condutas, é o de passar uma mensagem social para que não as cometam. Agora, se um sujeito não tem outra opção que não a de cometer uma conduta criminalizada, se não há como agir conforme o Direito, não há razão para sua criminalização.

Trata-se da aplicação do que se chama, na dogmática penal, de inexigibilidade de conduta diversa, causa excludente de culpabilidade (reprovabilidade). Tal causa significa, justamente, que não haveria como se exigir do agente qualquer outra conduta a não ser aquela praticada; por este motivo, a ele não poderá ser aplicada a pena prevista para o delito.

Se observarmos decisões anteriores proferidas pelo Poder Judiciário em casos cujas empresas praticaram condutas amoldadas na lei supracitadas em razão de precária situação financeira, como o não recolhimento de tributos, verificaremos uma posição jurisprudencial consolidada pela exclusão da culpabilidade para os agentes que demonstrarem ter infringindo a norma por ausência de qualquer outra possibilidade de escolha, a não ser a inadimplência tributária, para assegurar a existência do negócio.

É como se o juízo pensasse: “No seu lugar, teria feito a mesma coisa”.

A aplicabilidade do conceito limita-se à efetiva comprovação da contemporaneidade da ação do agente à crise financeira à qual está submetido. Não basta, portanto, a demonstração de perspectiva incerta de futura impossibilidade de cumprimento das obrigações tributárias, mas, sim, a certeza da existência concreta de grave situação econômico-financeira que impossibilita a adoção de medida diversa. A mera presunção não é apta à exclusão do crime, necessária a existência de provas concretas e contundentes da situação pela qual o agente está adstrito.

Necessário demonstrar que, por questões econômicas suportadas pela empresa, o não recolhimento do tributo se mostrava a única medida apta a manter o funcionamento do estabelecimento. Comprovar, dessa forma, que, caso assim não procedesse, a quebra do negócio seria fato certeiro e concreto, com a falência e extinção definitiva da pessoa jurídica, o que causaria a demissão em massa de funcionários, prejudicial à sociedade e à ordem econômica.

Ainda, como meio de subsidiar as alegações, caberá ao contribuinte, a título de exemplo, demonstrar cabalmente ter direcionado seu caixa ao pagamento de despesas essenciais, como salário de empregados, pagamento de fornecedores, aluguel, entre outros, em detrimento ao adimplemento das obrigações tributárias junto ao Fisco.

Do mesmo modo, de relevância inegável será demonstrar que a ausência de recolhimento não é prática rotineira, adotada de forma deliberada, mas decorrente exclusivamente em razão da grave situação financeira.

Diante disso, analisando-se o cenário mundial econômico atual, é possível afirmar que seria de fato prudente a aplicabilidade, pelo Poder Judiciário, da excludente de culpabilidade aos agentes cuja conduta não se amolde ao quanto permitido pela legislação pátria, independentemente de provimento na esfera tributária, mas que não tenham vislumbrado, de fato, qualquer outra possibilidade de ação em meio à pandemia causada pela Covid-19.

Em grande parte dos casos, verificar-se-á que o não recolhimento se deu essencialmente em razão da necessidade de proteção da atividade comercial, manutenção de empregos e geração de renda no presente crítico momento econômico.

Por fim, não é demais recordar que o pagamento do tributo a qualquer tempo enseja a extinção da punibilidade do crime fiscal; bem como seu parcelamento (formalizado antes do recebimento da denúncia) suspende a persecução criminal, extinguindo-a com o integral pagamento.

Aguardemos, nessa conjuntura, uma posição contundente e eficaz do Poder Judiciário e do Poder Legislativo, tendo como basilar fundamental o grave momento social e econômico ao qual está o mundo submetido.

Juliana Nancy Marciano é advogada no escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados e pós-graduada em Direito Penal Econômico pela Fundação Getúlio Vargas (FGV).

 é sócio do escritório Lacaz Martins, Pereira Neto, Gurevich & Schoueri Advogados.