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Pedro Teixeira: Uma questão de igualdade processual

Com a entrada em vigor da Lei n° 13.105/2015, o Código de Processo Civil (CPC), que revogou seu antecessor de 1973, adveio a inovação da taxatividade das hipóteses de cabimento de recurso de agravo de instrumento, que limitou de forma significativa a recorribilidade imediata das decisões interlocutórias, com o intuito de simplificar o processo civil, conforme as exposições de motivos do código recente. Em contrapartida, estabeleceu-se uma situação de insegurança jurídica frente decisões restritivas dos tribunais pátrios entendendo que o recurso se limitaria às hipóteses literais do texto legal, não comportando ampliação de sentido, o que, em consequência, vem desprivilegiar o basilar tratamento processual isonômico.

A situação mais característica desta ausência de isonomia no texto legal é quando uma decisão interlocutória não concede efeito suspensivo aos embargos à execução do devedor, visto que o texto do inciso X do artigo 1.015 do CPC somente prevê como recorrível a decisão que concede, modifica ou revoga tal efeito. Desse modo, a situação jurídica imposta pela lei é prejudicial ao executado, impondo-o uma situação desigual em relação ao executante.

Nesse contexto, decisão recente da Corte Especial do STJ, ao estabelecer a taxatividade mitigada [1] do rol do artigo 1.015 do CPC, e reconhecendo que sua enunciação é insuficiente e em desconformidade com as normas fundamentais do processo civil, estabeleceu interessante avanço, porém, ao restringir hipótese de admissão do recurso fora do rol legal somente quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento de questão em sede de apelação, não logrou em solucionar o problema da ausência de isonomia, o qual bem poderia ser resolvido de forma mais completa a ser considerada a aplicação de métodos de interpretação jurídica.

Regressando ao texto legal, essa limitação das hipóteses de cabimento trazida pelo Código de Processo Civil de 2015 já vinha sofrendo críticas da doutrina, principalmente por ter sido uma inovação que traz celeridade ao processo civil, considerado moroso na prática, mas em sacrifício da ampla defesa, que indubitavelmente sofreu limitação ou cerceamento, como aponta Daniel Assumpção Neves (2016): “Essa fórmula é flagrantemente violadora dos princípios do devido processo legal e da ampla defesa. Os tribunais de segundo grau precisam melhorar sua performance, disso não há dúvida, mas não se pode admitir que isso ocorra às custas de direitos fundamentais das partes”.

É justamente pensando-se na melhor solução para compatibilização de princípios que as técnicas de interpretação e integração jurídica poderiam ser utilizadas na aplicação das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento. Primeiro, a fim de se evitar o uso indiscriminado das mesmas o que é uma preocupação da doutrina —, um parâmetro importante de controle seria pautar a aplicação de uma técnica interpretativa ou integrativa com o princípio da isonomia.

Sobre o tema, Fredie Didier Júnior (2016) sustenta que a taxatividade extraída do artigo 1.015 do CPC não impede a utilização da interpretação extensiva na aplicação da norma: “A taxatividade não é, porém, incompatível com a interpretação extensiva. Embora taxativas as hipóteses de decisões agraváveis, é possível interpretação extensiva de cada um dos seus tipos”.

Em posição similar, Daniel Amorim Assumpção Neves (2016) também defende uma interpretação ampliativa das hipóteses de cabimento do agravo de instrumento, através de raciocínio analógico. Na jurisprudência, a Quarta Turma do STJ, antes do julgamento paradigma da Corte Especial, já apontava o entendimento de que às hipóteses de cabimento do artigo 1.015 do CPC aplicam-se a interpretação extensiva ou analógica [2].

Quanto à necessidade de ponderação dessa interpretação com o postulado isonômico, volta-se ao debate sobre a disposição literal do inciso X do artigo 1.015 do CPC. O artigo em comento prevê o cabimento de agravo de instrumento somente contra a decisão que concede, modifica ou revoga o efeito suspensivo em embargos à execução, não abarcando aquela que não concede ou não revoga o mesmo efeito suspensivo.

Em uma interpretação gramatical e literal, a decisão interlocutória que entenda pela não concessão de efeito suspensivo aos embargos de devedor não poderia ser recorrida de imediato, através do agravo de instrumento, somente no futuro, em eventual recurso de apelação, após a sentença. O texto legal, da forma como posto, viola a isonomia processual e prejudica potencialmente tanto o resultado útil do processo, quanto sua celeridade.

Assim, pela sua própria natureza, a execução comporta uma série de atos constritivos ao patrimônio e liberdade dos executados e, conforme o inciso X ipsis litteris, não concedido efeito suspensivo aos embargos, não há como recorrer dessas constrições, ao menos até a sentença de julgamento. Desse modo, imagine-se restarem cumpridos os requisitos à concessão de efeito suspensivo aos embargos do devedor (garantia do juízo, perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo e probabilidade do direito suscitado). A decisão interlocutória que não o conceda não somente causará prejuízos materiais injustos ao executado como fulminaria o resultado útil do processo de embargos à execução, pois até a sentença bens já podem ter sido expropriados, leiloados, adjudicados ou levantados pelo executante, sem impedimentos.

Cabe destacar que a tese da taxatividade mitigada fixada pela Corte Especial do STJ não resolveu essa condição de desigualdade processual, pois para o executado deixou-se a insegurança de uma análise subjetiva e casuística do julgador sobre a admissibilidade do agravo, enquanto para o executante deixou-se a objetividade da lei.

Somente mediante interpretação extensiva do inciso X do artigo 1.015 do CPC seria possível concluir que não somente as decisões concessivas de efeito suspensivo aos embargos do devedor são recorríveis de imediato, como também as decisões não concessivas, preservando-se a isonomia entre executantes e executados.

Por outro lado, a conclusão pelo cabimento do agravo de instrumento também poderia advir de interpretação analógica do inciso I do mesmo artigo, pois toda decisão sobre concessão de efeito suspensivo aos embargos à execução não deixa de ser uma decisão interlocutória que versa sobre tutela provisória, em sentido amplo. É como a ilustre professora Teresa Arruda Alvim Wambier (2015) conclui sobre a desnecessidade do inciso X: “Este inciso de rigor seria até desnecessário, pois trata de medida virtualmente abrangida pelo inciso I”. Cássio Scarpinella Bueno (2016) foi específico sobre a decisão não concessiva: “A recorribilidade imediata daquela decisão parece decorrer da correta compreensão daquele efeito como manifestação da ‘tutela provisória’, a justificar a incidência, na espécie, do inciso I do referido artigo 1.015″.

A Segunda Turma do STJ já havia delineado de forma precisa, no julgamento do Recurso Especial n° 1694667/PR, os entendimentos doutrinários expostos, consignando, inclusive, a vulnerabilidade em que se encontraria o embargante caso não lhe fosse atendida a possibilidade de recorrer com agravo de instrumento de decisão injusta que não concede efeito suspensivo, sob fundamento da isonomia entre as partes e de interpretação extensiva do inciso X através de paralelismo com o inciso I [3].

Revela-se, portanto, a vulnerabilidade da taxatividade mitigada fixada pela Corte Especial do STJ, pois, ao mesmo tempo em que parecer ter solucionado em parte a questão, fixou serem inadmissíveis interpretações extensivas ou analógicas do artigo 1.015, de maneira generalizada, mantendo a desigualdade processual extraída do inciso X. Ao executante a objetividade permissiva da lei e ao executado a subjetividade condicional do julgador.

 

Referências bibliográficas

ARRUDA ALVIM WAMBIER, Teresa. Primeiros Comentários ao Novo Código de Processo Civil. 3ª tiragem. São Paulo: RT, 2015, p. 1.455.

CÁSSIO SCARPINELLA BUENO. Manual de Direito Processual Civil. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2016.

DE FARIAS, Cristiano Chaves. ROSENVALD, Nelson. NETTO, Felipe Peixoto Braga. Curso de Direito Civil: Parte geral e LINDB. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015.

DIDIER JUNIOR, Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. Vol. 3. 13. ed. Salvador: JusPodivm, 2016.

GAGLIANO, Pablo Stolze. Novo curso de direito civil, volume 1: parte geral. 16. ed. São Paulo: Saraiva, 2015.

NEVES, Daniel Amorim Assumpção. Manual de direito processual civil: Volume único. 8. ed. Salvador: JusPodium, 2016.

Pedro Mazalotti Teixeira é advogado, graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade Cândido Mendes (UCAM).

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Robin e De Natal: Lei dá protagonismo ao crédito tributário

A transação é um instituto previsto no Código Tributário Nacional que faculta aos sujeitos ativo e passivo da obrigação tributária perpetrarem concessões mútuas, objetivando justamente a extinção de crédito tributário. As condições do instituto devem ser estabelecidas em lei, de forma a preservar o tratamento isonômico dos contribuintes e obstar a desproporcional discricionariedade do poder público.

Ainda em marcha inicial, mas em boa hora, foi promulgada a Lei Federal nº 13.988/2020, fruto da conversão da Medida Provisória nº 899/2019 (MP do Contribuinte Legal), prevendo modalidades de transação tributária em nível federal. Evidentemente, por se tratar de tema recém-legislado, ainda será alvo de críticas, questionamentos e possíveis alterações.

Entre os aprimoramentos trazidos pela lei em relação à Medida Provisória, destaca-se a preocupação com o princípio da transparência, quando em seu § 3º do artigo 1º impõe a necessidade de divulgação em meio eletrônico de todos os termos das transações celebradas, resguardando-se apenas as informações legalmente protegidas.

Outro importante ponto a ser destacado, pois modificado pela nova lei, diz respeito às hipóteses gerais de vedação à transação, entre as quais a limitação da transação apenas às multas de natureza penal e a vedação da adesão de “devedores contumazes”, conforme definição a ser dada pela lei.

Alerta oportuno para os contribuintes é a existência de cláusula geral de não suspensão da exigibilidade dos créditos transacionados. Para superar essa imposição, recomenda-se que o proponente procure convencionar com a autoridade pública o direito à referida suspensão até que o crédito tributário seja satisfeito.

Isso posto, faremos destaques às três modalidades de transação previstas pela lei.

Primeiramente, no que tange aos créditos de natureza tributária ou não, inscritos em Dívida Ativa da União Federal (DAU), a transação respectiva poderá ser proposta, respectivamente, pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e pela Procuradoria Geral Federal, de forma individual ou por adesão, ou por iniciativa do devedor, ou pela Procuradoria Geral da União, em relação aos créditos sob sua responsabilidade.

Nesse caso, os benefícios abrangem a concessão de descontos nas multas, nos juros de mora e nos encargos legais, o oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória, bem como o oferecimento, a substituição ou a alienação de garantias e de constrições.

Para as empresas em geral, há a necessidade de o crédito estar inscrito em dívida ativa ou já em fase de execução na PGFN. Nessa hipótese, a redução do valor do crédito transacionado está limitada a 50%, só poderá abranger multas, juros e encargos, pois encontra-se vedada a hipótese de redução do montante principal do crédito.

Já na hipótese de transação que envolva pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte, a redução máxima do valor transacionado está limitada a 70%, sendo o prazo máximo de quitação de até 145 meses.

Poderão ser aceitas quaisquer modalidades de garantia previstas em lei, inclusive garantias reais ou fidejussórias, cessão fiduciária de direitos creditórios, alienação fiduciária de bens móveis, imóveis ou de direitos, bem como créditos líquidos e certos do contribuinte em desfavor da União, reconhecidos em decisão transitada em julgado.

Nessa modalidade, há ainda a possibilidade de transação por adesão, por ato do procurador geral da Fazenda Nacional, que determinará os procedimentos, os critérios para aferição do grau de recuperabilidade das dívidas, entre outros.

Em relação à segunda modalidade, referente aos créditos tributários e aduaneiros em contencioso judicial ou administrativo, envolvendo disseminada e relevante controvérsia jurídica, a transação poderá ser proposta pelo ministro do Estado da Economia e será divulgada na imprensa oficial e nos sítios dos respectivos órgãos na internet, mediante edital que definirá, entre outros, as exigências a serem cumpridas, as reduções ou concessões oferecidas, os prazos e as formas de pagamento admitidas.

Nessa modalidade, o desconto está limitado a 50% do crédito, com prazo máximo de 84 meses para pagamento e somente será celebrada: I) se abranger todos os litígios relacionais à teses; e II) se constatada a existência, na data de publicação do edital, de inscrição em dívida ativa, de ação judicial, de embargos à execução fiscal ou de reclamação ou recurso administrativo pendente de julgamento definitivo, relativamente à tese objeto da transação.

O sujeito passivo que aderir à transação deverá requerer a homologação judicial do acordo, bem como sujeitar-se, em relação aos fatos geradores futuros ou não consumados, ao entendimento dado pela administração tributária à questão em litígio.

Por fim, a lei ainda prevê hipótese de transação para os créditos tributários em contencioso administrativo de baixo valor, que é definido como aquele até 60 salários mínimos e que tenha como sujeito passivo pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte. Essa transação passará a ser vigente a partir de 120 dias da data de publicação da Lei nº 13.966/2020, vale dizer, a partir de 12 de agosto de 2020.

Essa modalidade de transação poderá contemplar, cumulativamente ou não, os seguinte benefícios: I) concessão de descontos, observado o limite máximo de 50% do valor total do crédito; II) oferecimento de prazos e formas de pagamento especiais, incluídos o diferimento e a moratória, obedecido o prazo máximo de quitação de 60 meses; e III) oferecimento, substituição ou alienação de garantias e de constrições.

Como se denota, a transação do crédito tributário passa a ter protagonismo no cenário legislativo brasileiro com a edição da Lei do Contribuinte Legal.

Mas, por tratar de temática vasta e que comporta complexidades, eis que sua aplicabilidade depende do atendimento a diversos valores sistêmicos (v.g. princípios constitucionais e gerais de Direito), às normas de estrutura (v.g. que disciplinam os limites para o exercício da competência) e às normas de conduta (v.g. harmonização com outras hipóteses dispostas no CTN e na legislação ordinária), devendo ainda ser objeto de muito debate e aprimoramentos.

No aspecto pragmático, com a edição das Portarias da PGFN nºs 9.924 e 9.917, as modalidades ali tratadas deverão ser “testadas”, e as respostas acerca da aceitação social desse instituto logo chegarão. Bem por isso, reiteramos a pretensão de apenas contribuir para o debate em busca do aprimoramento da transação em matéria tributária em meio ao cenário extremamente litigioso no qual Fisco e contribuintes se encontram.

Cíntia Regina de Sanchez e Robin é graduada em Direito pela PUC-SP e LL.M em International Taxation na Maastricht University (Holanda).