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Fischinger e Oliveira: O julgamento colegiado e o Pacote Anticrime

Entre as várias alterações na sistemática processual trazidas pela Lei 13.964/2019 está a implementação das varas criminais colegiadas para o processamento, em primeiro grau, dos delitos: 1) de pertinência a organização criminosa armada (artigo 2º, § 2º, da Lei 12.850/13), ou que tenham “armas à disposição”; 2) de milícia privada (artigo 288-A); e 3) conexos a tais figuras delitivas.

Essa novidade foi implementada com a inserção do artigo 1º-A na Lei 12.694/12, diploma de tímida ou nenhuma efetividade desde sua promulgação, mas que, na época, ficou conhecido como Lei do Juiz Sem Rosto e se apresentou com o objetivo de resguardar a integridade física dos magistrados que julgam organizações criminosas e crimes por estas praticados.

O artigo 1º da Lei 12.694/12 o qual não foi revogado ou alterado pelo denominado Pacote Anticrime prevê a possibilidade de formação de colegiado, convocado facultativamente pelo juiz da causa, para a prática de qualquer ato processual, em especial nas situações previstas nos incisos do mesmo dispositivo, quais sejam: decretação de prisão ou de medidas assecuratórias, concessão de liberdade provisória ou revogação de prisão, sentença, progressão ou regressão de regime de cumprimento de pena, concessão de liberdade condicional, transferência de preso para estabelecimento prisional de segurança máxima e sua inclusão no regime disciplinar diferenciado.

No regime anterior, a única exigência para a convocação do colegiado era a de que o magistrado indicasse os motivos e as circunstâncias ensejadoras de risco à sua integridade.

A lei de 2012 prevê, ainda, que o colegiado seja formado pelo juiz competente para o processo e dois outros juízes que seriam escolhidos, por meio de sorteio eletrônico, entre aqueles de competência criminal em exercício no primeiro grau de jurisdição, limitando-se a competência do colegiado para aquele ato a que fora convocado.

No entanto, a Lei 13.964/2019, denominada de Pacote Anticrime, ao acrescentar à Lei 12.694/12 o artigo 1º-A faculta aos Tribunais de Justiça e aos Tribunais Regionais Federais a criação de varas criminais colegiadas, isto é, especializadas, estabelecendo com maior detalhamento a competência de tais órgãos jurisdicionais (julgamento dos crimes de pertinência a organizações criminosas armadas ou “que tenham armas à disposição”, de constituição de milícia privada e das infrações penais conexas a essas infrações).

Depreende-se da leitura dos dispositivos que a nova lei acresce dinâmica de processamento aos crimes referidos, sem retirar a previamente existente.

Com efeito, o procedimento previsto no artigo 1º tem por objeto crimes de organização criminosa em geral isto é, armada ou desarmada, com ou sem “armas à disposição” , inclusive crimes conexos, pois, a despeito de o legislador não prever expressamente os crimes conexos (como faz agora o artigo 1º-A), vale-se da expressão “crimes praticados por organização criminosa”, sendo evidente que ilícitos dessa natureza são conexos ao próprio crime de organização criminosa.

Entretanto, ao contrário do que ocorre com a nova disposição do artigo 1º-A, o regramento antigo se limitou a aventar a convocação temporária de um colegiado para a prática de atos determinados, sendo que os juízes não precisam sequer pertencer à mesma comarca, bastando que atuem em primeiro grau de jurisdição e em varas criminais. O § 5º do artigo 1º, aliás, dispõe que os juízes convocados (que serão escolhidos por meio de sorteio) de comarcas diversas do magistrado da causa poderão participar de reuniões por meio de videoconferência.

O artigo 1º-A, por sua vez, integra ao ordenamento prescrições mais complexas, porquanto prevê a criação de órgão especializado e, ainda, diferentemente do artigo 1º, limitado a organizações criminosas armadas ou que possuam “armas à disposição”.

Esse parece ser o aspecto mais relevante da nova disposição: a lei faculta a criação da vara especializada, e, caso esta seja criada, é obrigatório que esses crimes sejam processados em tal juízo, à medida que criado um novo critério de competência material.

Dito isso, verifica-se, de plano, que a lei não esclarece o conceito de organização criminosa não armada, mas “com armas à disposição”, criando, como consequência, uma perigosa lacuna interpretativa.

Sendo assim, compreender o que significam “armas à disposição” poderá ter estreita correlação com a garantia do juiz natural, pois, caso se trate de organização criminosa “sem armas à disposição”, a vara colegiada, acaso instituída por leis de organização judiciária, não atrairá competência.

O artigo 1º-A, instituído pelo Pacote Anticrime, dispõe ainda diferentemente do que diz o artigo 1º, que as varas criminais colegiadas terão competência para todos os atos jurisdicionais no decorrer da investigação, da ação penal e, ainda, da execução penal relativa aos delitos, e não para atos específicos, até porque, aqui, não haverá convocação.

Assim, uma segunda questão que desde logo se levanta em relação à competência das varas especializadas para os atos que ocorrem durante toda a persecução criminal é a harmonização dessa previsão com o juiz de garantias, também introduzido pelo Pacote Anticrime.

É bem verdade que as regras sobre o juiz de garantias se encontram com eficácia suspensa, por decisão do ministro Luiz Fux, até o julgamento das ADINs 6298, 6299 e 6300, as quais analisarão a constitucionalidade dos dispositivos; entretanto, caso seja declarada a constitucionalidade do juiz de garantias é o que se espera , não se sabe como o instituto se aplicará à hipótese prevista no artigo 1º-A, tendo em vista a competência múltipla da vara, e a concomitante (e conflitante) exigência de que o juiz de garantias não seja o mesmo da instrução.

Trata-se de perigoso silêncio da lei, pois não parece lógico que uma regra geral de preservação da garantia orgânica da imparcialidade o juiz de garantias tenha sido relativizada, deliberadamente, quando se trata da apuração de delitos de organização criminosa e correlatos.

Uma alternativa ao alcance do Judiciário mas sempre com a prefalada ressalva aos tribunais de exceção estaria em que, nos atos relativos à investigação, em que radica a competência do juiz de garantias, fosse a este facultada a convocação de colegiado para as decisões em sede de investigação, assegurando-se, assim, a louvável imparcialidade preconizada pela recente reforma e, ao mesmo tempo, resguardando-se a integridade dos julgadores, ratio essendi da Lei nº 12.694/12.

Para tanto, parece impositivo, primeiro, realçar a preservação da competência do juiz de garantias inclusive no plano da Lei nº 12.694/12, acrescendo-se regras de convocação de magistrados por essa mesma autoridade judiciária, a fim de evitar casuísmos e conferir trânsito a tribunais de exceção.

Em suma, a Lei 12.694/12 passa a prever dois tipos de julgamento colegiado: o primeiro, disposto no artigo 1º, em que o juiz competente convoca dois outros magistrados para a realização de um ato específico, e que tem competência para qualquer delito de organização criminosa e quaisquer delitos conexos; e o segundo, previsto no artigo 1º-A, em que varas especializadas julgarão exclusivamente os crimes de organização criminosa armada ou “com armas à disposição” e de milícia privada, além dos delitos que lhes forem conexos.

Importa destacar ainda que, assim como se dá no caso de convocação de colegiado pelo magistrado competente (hipótese do artigo 1º), a nova lei faculta, não obriga, a criação de varas especializadas pelos tribunais (hipótese do artigo 1º-A). Poderá haver discrepância entre os Estados da federação no tratamento dos crimes aqui abordados.

Por outra medida, ainda que se entenda que a nova lei trouxe melhorias no sentido de se criar uma vara colegiada especializada para o processamento dos crimes que prevê, o legislador não foi capaz de corrigir as críticas ao artigo 1º, em especial no que diz respeito à violação do principio do juiz natural.

Isso porque a convocação posterior de um colegiado abre inevitável espaço à objeção do tribunal de exceção, o que viola o princípio do juiz natural, que determina que todo acusado tem o direito de saber previamente qual órgão conduzirá seu processo, bem como quem é o juiz competente.

A controvérsia estaria superada se o legislador tivesse eliminado a convocação posterior de colegiado, fixando previamente, para todos os crimes que envolvessem organizações criminosas e os conexos, a competência das varas criminais colegiadas especializadas, sem surpresas no curso da instrução processual.

Dessa forma, estariam resguardados tanto o direito do acusado como a integridade dos magistrados que atuam nessas varas.

Vanessa Vitória Oliveira é advogada.

José Francisco Fischinger é advogado e mestre em Ciências Criminais pela PUC-RS.

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Thiago Teraoka: Audiências virtuais nos tempos de coronavírus

A substituição de atos processuais presenciais pelos realizados de forma virtuais não é novidade. No âmbito dos tribunais, há algum tempo já existe a prática da realização de julgamentos colegiados virtuais.

Por exemplo, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) aplica o julgamento virtual em segundo grau desde 2011 [1]. Atualmente, mesmo os colégios recursais paulistas julgam processos de maneira virtual. Nos tribunais superiores, os julgamentos virtuais são realizados com frequência. Em 2017, por exemplo, a Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal julgou, em decisões finais, 4.317 processos [2].

Apesar da experiência muito bem-sucedida nos tribunais, no primeiro grau de jurisdição as audiências continuavam sendo realizadas da maneira antiga, presencialmente.

O arcabouço normativo favorecia, mas apenas em parte. A Lei nº 11.900/2009, que alterou o Código de Processo Penal, prevê o interrogatório de réu preso por videoconferência, mas somente de forma excepcional e justificada [3]. A mesma lei previu que a oitiva de testemunhas também poderia ser feita por videoconferência [4]. O Código de Processo Civil de 2015 previu a realização de audiências virtuais, em vários de seus artigos, em especial o artigo 385, § 3º, (depoimento pessoal) e 453, § 1º (oitiva de testemunhas).

A Resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) nº 105/2010 obrigava que os tribunais disponibilizassem em todos os fóruns salas de videoconferência, o que nunca foi plenamente cumprido, nem mesmo nas grandes cidades. Se houvesse tal sala (e quase não há), certamente seria em número insuficiente para servir a todos os magistrados. Assim, na prática, simplesmente não se usava o sistema de videoconferência, sendo que o deslocamento de réus presos e a oitiva de testemunhas de modo tradicional, pelos juízos deprecados, eram a realidade na imensa maioria dos casos.

A jurisprudência, por outro lado, também não ajudava. O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 88.914/SP, um pouco antes da Lei nº 11.900/2009, havia decidido que o interrogatório por videoconferência feria a ampla defesa [5]. Em julgado recente, pouco anterior à pandemia da Covid-19, o Superior Tribunal de Justiça decidiu pela ilegalidade de audiência de custódia realizada de maneira virtual [6].

Mas a necessidade fez o gato pular.

Poucos meses depois, com o recrudescimento da pandemia da Covid-19, o CNJ recomendou a suspensão das audiências de custódia, que atualmente não vêm sendo realizadas sequer de maneira virtual [7].

É verdade que o TJ-SP, em comunicado pouco anterior à pandemia, já facultava aos seus juízes a realização de audiências virtuais [8]. No entanto, na prática, o procedimento ainda não se aplicava com regularidade.

Após a pandemia, a utilização da audiência virtual foi reiterada no Provimento CG/TJSP 284/2020. Na oportunidade, o critério de marcar a audiência era do juiz, mas a adesão das partes à audiência virtual também foi facultativa [9].

Tal facultatividade às partes não está expressa na Resolução CNJ nº 314/2020, editada posteriormente. A Resolução do CNJ apenas estabeleceu que o juiz deve levar em conta a dificuldade das partes ao acesso aos meios tecnológicos e intimações [10], mas não exigiu previamente a concordância das partes para se marcar a audiência virtual.

Ainda nessa lógica, o legislador federal, dessa vez, andou ainda mais rápido do que os tribunais e o CNJ. Com a edição da Lei Federal 13.944/2020, pelo menos nos juizados especiais, passou a ser obrigatória a presença das partes nas audiências de conciliação virtuais, sob pena de extinção (e condenação em custas) ou revelia [11]. Assim, sem qualquer ressalva, as audiências virtuais poderão ser realizadas no âmbito dos juizados. Por se tratar de uma regra permanente, será aplicada após o fim da pandemia.

Na minha opinião, obviamente, cada juiz deve ter em conta a realidade de sua comarca. A audiência deve ficar a critério do juiz, o sujeito imparcial. Não se pretende, com isso, prejudicar alguém que não tenha acesso a tecnologia. Aliás, um juiz que tenha intenção de prejudicar alguém sequer deveria ser juiz. Todavia, convenhamos, também não pode ficar a critério da parte interessada a realização ou não da audiência virtual. Não se mostra razoável, por exemplo, ficar prejudicada uma audiência virtual em que as partes são empresas, representadas por advogados, apenas por decisão injustificada de alguém.

Com todo o respeito, uma audiência virtual, uma vez marcada pelo cartório, não tem maiores dificuldades do que uma videochamada por WhatsApp, por exemplo. O Brasil é um país gigantesco e desigual, mas, pelo menos nas grandes cidades de São Paulo, deve-se presumir que a maioria das pessoas que ingressam com ações no Judiciário tem acesso a celular e internet. Por outro lado, os advogados já estão acostumados ao processo digital, muito mais complexo do que uma simples videochamada.

Desde o início da pandemia, intensificou-se a realização das audiências virtuais. No Estado de São Paulo, foram marcadas 195 audiências virtuais em estabelecimentos prisionais [12]. Houve experiências bem sucedidas em Tatuí [13], Dracena, São Sebastião [14] e Catanduva [15], cidades bem distintas umas das outras.

As crises são também oportunidades. A crise da pandemia da Covid-19 ainda não tem consequências plenamente conhecidas. A esperança é que, passada a crise, fique consolidada a realização de audiências virtuais. Afinal, o gato já aprendeu a pular.

 


[6] STJ, CC 168522/PR, Terceira Seção, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe 17/12/2019

 é juiz de Direito do estado de São Paulo, diretor da Apamagis, professor da Escola Paulista da Magistratura (EPM), doutor e mestre em Direito do Estado (Direito Constitucional) pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e especialista em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários (IBET).