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André Nicolitt: STF entre a liberdade e uma garrafa de pinga!

Era só mais um Silva (M. C. da S.), cujo caso chegou ao STF. Acusado de subtrair R$ 4,15 em moedas, uma garrafa pequena de refrigerante, duas garrafas de 600 ml de cerveja (curioso para saber a marca) e uma garrafa de pinga, tudo avaliado em R$29,15. A condenação considerou o crime consumado, mesmo tendo sido preso na saída do estabelecimento sem que tenha, sequer, provado a “ardida” bebida (seria prata ou ouro? Outra curiosidade).

Condenado em primeiro grau, sentença mantida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a Defensoria impetrou HC, que não foi conhecido pelo STJ. Finalmente, a tese recebeu guarida e o pobre Silva foi absolvido no STF por decisão monocrática do ministro Gilmar Mendes no HC 181389/SP, confirmada pelo colegiado.

Pasmem! A Procuradoria Geral da República, insatisfeita, recorreu da decisão levando o caso à deliberação colegiada da 2ª Turma. De nossa parte, sempre sustentamos que tais casos sequer devem ser objeto de flagrante pela autoridade policial, que precisa, apenas, registrar as ocorrências como fato atípico para efeito de controle externo tão somente [1].

Para alegria geral do bom senso e da boa técnica jurídica, negou provimento ao agravo e manteve a absolvição (HC 181389 AgR/SP).

E por que se pretendia, diante de evidente insignificância, condenar o réu e não reconhecer a atipicidade? Pelo fato de o réu ser reincidente.

A doutrina abalizada vem reconhecendo a fragmentariedade do Direito Penal. Para Figueiredo Dias, a função do Direito Penal radica na proteção das condições indispensáveis da vida comunitária, só podendo incidir sobre os comportamentos ilícitos que sejam dignos de uma sanção de natureza criminal [2]. Nilo Batista [3] dá conta de que Binding foi o primeiro a registrar, em seu Tratado de Direito Penal, em 1896, o caráter fragmentário do Direito Penal, que deve pautar-se, então, por uma intervenção mínima, como ultima ratio.

Nesse cenário, destaca-se o princípio da insignificância como causa excludente da tipicidade. Como ensina Zaffaroni, as afetações a bens jurídicos exigem certa gravidade, não sendo qualquer conduta capaz de preencher as exigências da tipicidade penal [4]. O princípio da insignificância foi impresso pela primeira vez por Claus Roxin em 1964 e é tratado por Tiedemann como princípio da bagatela, segundo o qual deve haver uma proporcionalidade entre a gravidade da conduta que se quer punir e a “drasticidade da intervenção estatal” [5].

A tipicidade, atualmente, não é vista simplesmente como a adequação ou subsunção entre a conduta e a descrição legal de um crime, o que seria a tipicidade formal. Na verdade, a tipicidade exige efetiva e grave lesão ao bem jurídico tutelado pela norma, isto é, tipicidade material.

Voltando a Zaffaroni, temos que o juízo sobre a tipicidade não se esgota na tipicidade legal, exigindo um passo a mais, que é a comprovação da tipicidade conglobante, isto é, um corretivo da tipicidade legal, que exclui condutas que são apenas “aparentemente” proibidas.  Com efeito, a insignificância da lesão exclui a tipicidade, pois esta só pode se constituir através da consideração conglobada da norma [6]. Em síntese, não será toda conduta que se amolde a um tipo penal que permitirá a formação de um juízo de tipicidade, mas tão somente aquelas que se traduzirem em uma grave lesão ao bem jurídico tutelado.

Sendo a insignificância uma excludente de tipicidade, não faz qualquer sentido, como se encontra em alguns julgados e arrazoados de viés punitivista, condicionar seu reconhecimento à ausência de reincidência ou maus antecedentes.

A reincidência não torna a ação típica, não é norma de adequação típica, em nada interfere sobre a lesão ao bem jurídico tutelado. Inserir a reincidência na discussão sobre a aplicação ou não da insignificância e na análise da tipicidade é cultivar com máxima profusão um direito penal do autor, tão rechaçado pela doutrina penal. É abandonar a dogmática penal por um incontrolável desejo punitivo.

E desse modo, com um só gesto de rompimento com a boa dogmática jurídica, gasta-se dinheiro público com privação de liberdade absolutamente desmedida (o custo de uma vaga e da manutenção de um preso é elevado). Incrementam-se situações criminógenas e assoberba-se o judiciário com bagatelas. Imagine a Procuradoria da República mobilizando vários ministros do STF para decidirem se subtrair uma garrafa de pinga é furto ou não!

Em bons termos, a 2ª Turma do STF reconheceu a atipicidade da conduta em razão da insignificância. O ministro levou em conta que o princípio da insignificância atua como verdadeira causa de exclusão da própria tipicidade e considerou equivocado afastá-la tão somente pelo fato de o réu possuir antecedentes criminais.

Reafirmou a ideia de que, para a aplicação do princípio da bagatela, devem ser analisadas as circunstâncias objetivas em que se deu a prática delituosa e não os atributos inerentes ao agente, afastando-se, assim, o Direito Penal do autor. Reincidência ou maus antecedentes não impedem, por si sós, a aplicação do postulado da insignificância.

Trata-se de uma decisão que merece ser brindada com uma boa dose advinda dos inigualáveis engenhos de Paraty.

 


[1] NICOLITT, André. Manual de Processo Penal. Belo Horizonte: D’Plácido, 2020, p. 265.

[2] DIAS, Jorge de Figueiredo. Direitos Penal Parte Geral Tomo I. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 16.

[3] BATISTA, Nilo. Introdução Crítica ao Direito Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, s/d, p. 84-90.

[4] ZAFFARONI, Eugenio Raul. Manual de Derecho Penal Parte General. Buenos Aires: Ediar, 1999, p. 475.

[5] BITENCOURT, Cesar Roberto. Tratado de Direito Penal. Parte Geral 1. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 20-21.

[6] ZAFFARONI, Manual…op. cit., p. 386 e 475.

 é juiz de Direito titular do Juizado Especial Criminal de São Gonçalo-RJ, professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF), membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e membro emérito do Instituto Baiano de Direito Processual Penal (IBADPP) e doutor em Direito pela Universidade Católica Portuguesa.

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Balbi Cerviño: Avanços regulatórios sobre criptomoedas

Entre os temas discutidos em anos recentes relacionadas à tributação de novas tecnologias, encontram-se as criptomoedas, seleto grupo de moedas digitais, entre outros ativos, capazes de proteger os próprios dados por meio da criptografia. O uso desse instrumento, que inclui bitcoins e tolkiens, sofre uma preocupante necessidade de definição de sua natureza jurídica em território nacional, ao mesmo tempo que seu uso se expande no Brasil.

Atualmente, há mais de um milhão de brasileiros registrados para investir em criptoativos, e estima-se que as transações nacionais foram superiores a R$ 5 bilhões durante o primeiro semestre de 2019. Ainda assim, é necessário aumentar a proteção de seus usuários contra fraudes e roubos de informações privilegiadas, que cresceram em 2019 ao alcançar 4,52 bilhões de dólares perdidos, em um aumento de 160% em relação ao ano anterior [1].

Ao final de 2018, sentiu-se que alguns passos foram dados nessa direção. Acórdão do Superior tribunal de Justiça [2] versou sobre a possibilidade de criptomoedas serem consideradas valores mobiliários, levando o julgamento dos delitos a elas relacionadas à competência da Justiça Federal. Após analisar a posição da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), que em seu relatório semestral do segundo semestre de 2017 excluiu de sua própria esfera de competência reguladora tais ativos, o ministro relator Sebastião Reis Júnior determinou não haver dispositivo no Regulamento do Banco Central sobre tais moedas virtuais, que não se confundem com as moedas eletrônicas já regulamentadas pela Lei n° 12.865/2013. Portanto, não é possível tratá-las como valores mobiliários, qualificando tais crimes como comuns e cabíveis à Justiça Estadual.

Em 5 de março deste ano, o ministro flexibilizou seu entendimento anterior sobre as criptomoedas ao indeferir um habeas corpus [3]. Em uma situação semelhante, mas não análoga à sua decisão anterior, 18 réus foram denunciados por diversos crimes financeiros, como  evasão de divisas e gestão fraudulenta. Uma das condutas a eles atribuídas, havendo denúncia formalizada perante a Justiça Federal, foi a do oferecimento de contrato de investimento coletivo, e sem registro prévio na Comissão de Valores Mobiliários, atrelado a especulação de criptomoedas.

O ministro denegou o pedido de HC em virtude da tipificação do ilícito, prevista na Lei n° 7.492/1986. O artigo 26 da Lei de Crimes contra o Sistema Financeiro delimita a competência da Justiça Federal, o que impede um julgamento análogo ao do conflito de competência, no qual não havia uma denúncia formalizada. Além desse dado, o ministro alegou deliberação da CVM tratando contratos coletivos vinculados a negociação de criptoativos como valores mobiliários [4]. Portanto, é possível que operações relacionadas a criptomoedas tenham natureza mobiliária, em determinadas circunstancias definidas pela CVM.

“(…) Vêm oferecendo, na página da rede mundial de computadores https://www.btc-banco.com, oportunidade de investimento cuja remuneração estaria atrelada à negociação de criptoativos por equipes de profissionais, utilizando-se de apelo ao público para celebração de contratos que, da forma como vêm sendo ofertados, enquadram-se no conceito legal de valor mobiliário”.

Regulação perante a Receita Federal do Brasil

Entretanto, a primeira regulação brasileira relativa s criptomoedas surgiu somente em 1º de agosto de 2019, com a necessidade de se reportar ao governo, mediante a Instrução Normativa n° 1.888 da Receita Federal, todas as transações ligadas a criptomoedas ocorridas mês anterior. A obrigação atual independe do uso de corretoras, mas, segundo especialistas, não caracteriza-se como uma nova operação tributação tributária [5]. De fato, a INRF n° 1.888 refere-se a termos tributários apenas para restringir a obrigação de prestar informações sobre seus criptoativos destinadas às pessoas jurídicas fornecedoras de criptoativos (exchanges) “residentes e domiciliadas no Brasil”. A opção pela forma de declarar o Imposto de Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) também altera o valor da multa imposta sobre a exchange que falhar em informar suas transações, como se denota no seguinte trecho:

“Artigo 10  A pessoa física ou jurídica que deixar de prestar as informações a que estiver obrigada, nos termos do artigo 6º, ou que prestá-las fora dos prazos fixados no artigo 8º, (…) ficará sujeita às seguintes multas, conforme o caso:

I pela prestação extemporânea:

a) R$ 500,00 (quinhentos reais) por mês ou fração de mês, se o declarante (…) na última declaração apresentada tenha apurado o Imposto sobre a Renda da Pessoa Jurídica (IRPJ) com base no lucro presumido.”

Ou seja, há referncias indiretas ao Imposto de Renda préexistente, mas não são listadas as características referentes a um novo imposto, como fato gerador, alíquota e base de cálculo.

Outro avanço recente é que, a partir do mês atual, exchanges que circulam criptomoedas, no papel de corretoras, contarão com CNAE Classificação Nacional de Atividades Econômicas) próprio, junto ao IBGE. Tal ato, que ocorrerá por meio da atualização do sistema do próprio IBGE, atendendo a pedido do Conselho Nacional de Justiça, (CNJ) constitui mais um passo para a formalização das trocas de criptomoedas efetuadas por brasileiros. O código destinado a elas terá o número de 6619-3/99 (corretagem e custódia de criptoativos) [6].

O tema da natureza jurídica das criptomoedas permanece em situação de incerteza no Brasil, mas no último ano já começaram a surgir indícios de que, em breve, uma definição concreta, favorável à regulação pela CVM e pela Receita Federal, poderá vir a surgir.

 


[2] Conflito de Competência 161.123/SP (2018/0248430-4), j. 28/11/2018, DJe 5/12/2018.

[3] Habeas Corpus nº 530.563 – RS (2019/0259698-8)

 é advogado especializado em Direito Tributário e integra o quadro de um LLM de Direito Tributário Internacional na Universidade de Nova York-EUA.