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Críticas às razões do veto ao artigo 9º do PL 1.179/2020

1. Introdução

Na última quarta-feira, o Presidente da República sancionou o PL 1.179/2020 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia da Covid-19 (RJET). Contudo, a sanção veio acompanhada de veto do Presidente a diversos dispositivos do projeto, entre os quais está o art. 9º, que veda, temporariamente, a concessão de despejo liminar em contratos de locação urbana.

O caput do citado dispositivo estabelece que “não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020”. De acordo com o parágrafo único do artigo, a restrição do caput “aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020”.

Embora a suspensão prevista no art. 9º do PL refira-se a seis hipóteses legais de despejo, as razões do veto cuidaram somente da principal delas. Trata-se daquela prevista no art. 59, § 1º, inc. IX, da Lei n. 8.245/91, segundo o qual “concederseá liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo: […] IX – a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo” (destaque nosso).

Para poder analisar criticamente o veto em cotejo com as razões apresentadas pelo Presidente, convém contextualizar brevemente a situação atual de tutela dos interesses do locador inadimplido na Lei de Locações.

2. Tutela do locador inadimplido na Lei de Locações

O referido inciso IX do art. 59, § 1º, da Lei de Locações de Imóveis Urbanos foi incluído pela Lei n. 12.112/2009. Sua ausência no texto original da Lei n. 8.245/91 teria sido um “cochilo do legislador”, pois a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação seria “o motivo mais imperioso para a desocupação imediata do imóvel, superando a urgência dos demais incisos”.

Portanto, antes da alteração, o locador inadimplido dispunha apenas da possibilidade de execução provisória da sentença de despejo. Isso porque, nos procedimentos regidos pela Lei n. 8.245/91, os recursos interpostos contra as sentenças têm efeito somente devolutivo (art. 58, inc. V), de sorte que eventual apelação do locatário não procrastina a retomada do bem. Entretanto, a redação original do art. 64 da Lei n. 8.245/91 exigia a prestação de caução como condição para a execução provisória do despejo, no que a Lei n. 12.112/2009 novamente melhorou situação do locador inadimplido. Com efeito, ela alterou a redação do caput do art. 64 da Lei n. 8.245/91 para dispensar a caução também na hipótese de desfazimento da locação “em decorrência da falta de pagamento do aluguel e demais encargos” (art. 9º, inc. III).

Destarte, atualmente o locador desfruta de uma posição privilegiada do ponto de vista da exequibilidade da ordem de despejo. Ao contrário do CPC, que, como regra, atribui efeito suspensivo à apelação (art. 1.012) e exige contracautela para a prática de diversos atos praticados durante a execução provisória (art. 520, inc. IV), a Lei n. 8.245/91, além de prever o despejo liminar (art. 59, § 1º), possibilita a imediata execução da ordem já a partir da sentença e, para isso, sequer exige que o locador preste caução.

3. Razão do veto presidencial e análise crítica

Segundo a mensagem de veto, “a propositura legislativa […] contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo”. Ainda de acordo com as razões do veto, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 conferiria “proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento”, desconsiderando, dessa forma, a “realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio”.

Entretanto, o dispositivo vetado não desconsidera o interesse patrimonial do locador. Além de não afetar a exigibilidade judicial do crédito deste, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 não altera a regra da Lei n. 8.245/91 que permite a execução provisória da sentença independentemente de caução (art. 64). Apenas impede, temporariamente, uma medida legítima, porém extrema, sendo que essa solução transitória se justifica em relevantes razões de saúde pública. É nesse contexto que a relação processual é reequacionada em favor do locatário. Mas essa flexibilização da tutela em favor do devedor cessa com a prolação da sentença concessiva do despejo. Reconhecido judicialmente o direito do locador à desocupação do imóvel, a ordem de despejo passa a ser imediatamente executável, independentemente de caução.

Assim, não há de se falar em contrariedade ao interesse público. O art. 9º do PL n. 1.179/2020 não confere uma “proteção excessiva ao devedor”. Sequer é no interesse exclusivo dos locatários que se propõe a vedação transitória do despejo liminar, mas sim no da coletividade. Outrossim, o dispositivo não incentiva o inadimplemento, pois o locatário que descumprir as suas obrigações será fatalmente despejado após a sentença de procedência da ação de despejo, ainda que o locatário recorra da decisão. Em verdade, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 promove um justo equilíbrio entre os interesses patrimoniais do locador, de um lado, e as razões de Saúde Pública, de outro.

É nesses termos que muitos julgados já vêm reconhecendo a necessidade de se obstar os despejos liminares durante a pandemia do coronavírus, como se verifica, especificamente, na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A título ilustrativo, a 33ª Câmara de Direito Privado da referida corte, com fundamento no artigo 5º da Resolução do Conselho Nacional de Justiça n. 313/2020 e no artigo 5º do Provimento do Conselho Superior da Magistratura do TJSP de n. 2550/2020, decidiu que “a pandemia de coronavírus tem evidentes reflexos sobre a saúde, e, sem dúvida, ter preservado o direito de moradia, agora, auxilia na prevenção do contágio, contribuindo para o cumprimento da recomendação de isolamento/distanciamento social”. Em sentido semelhante, a 29ª Câmara de Direito Privado do TJSP julgou “correta a determinação de suspensão da medida, por ora, em razão da situação extraordinária que todos vivem, diante da pandemia causada pelo COVID-19 no Brasil e no mundo, fato público e notório, com reconhecimento do estado de calamidade pública feita ao Congresso Nacional pela Presidência da República”. Segundo o acórdão, “a preservação da integridade física do oficial de justiça e [de] todos os que seriam envolvidos no cumprimento da ordem de despejo, se sobrepõe ao interesse da autora, justamente para evitar o contágio do COVID-19, o que não se pode permitir, diante da gravidade da pandemia”. Da mesma forma, recentemente a 36ª Câmara de Direito Privado da corte paulista, com fundamento no reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 06/2020) e na decretação de quarentena no Estado de São Paulo (Decreto 64.881/2020), decidiu ser “cabível a suspensão da decisão que concedeu o despejo, uma vez que seu cumprimento, nas atuais circunstâncias, estaria em desconformidade com as medidas de saúde vigentes que indicam a necessidade de se reduzir a circulação de pessoas e a permanência no ambiente residencial”.

Nesse contexto, a aprovação do art. 9º do PL n. 1.179/2020 consolidaria, legislativamente, uma orientação jurisprudencial já existente. O dispositivo vetado apoia-se, pois, em razões de interesse social que estão sendo lamentavelmente desconsideradas no veto do Presidente da República, mas já reconhecidas em reiteradas decisões judiciais, como demonstram os julgados do TJSP acima citados.

Além disso, o veto também se esquece da possibilidade de o locador obter despejo liminar com fundamento no art. 300 do CPC, desde que, além da probabilidade do seu direito, comprove perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Com efeito, o STJ já decidiu que a tutela provisória prevista no art. 59, § 1º, da Lei n. 8.245/91 é de evidência, de sorte que o dispositivo é compatível com a tutela provisória de urgência do então vigente art. 273, inc. I, do diploma processual civil revogado. Por isso, o art. 9º do Projeto de Lei não exclui a possibilidade de o juiz, excepcionalmente, conceder ordem de despejo liminar, desde que comprovado o risco à subsistência do locador nos termos do art. 300 do vigente CPC. Consequentemente, também não assiste razão ao veto presidencial quando afirma que o PL desconsidera a realidade de diversos locadores cujo sustento depende do recebimento dos aluguéis. A situação particular desses locadores, desde que devidamente comprovada, pode ser resguardada mediante a concessão de tutela provisória de urgência prevista no art. 300 do CPC.

4. Conclusão

Em conclusão, espera-se que o Congresso Nacional, considerando a referida experiência jurisprudencial e a solução equilibrada do art. 9º do PL n. 1.179/2020 em face do contexto da pandemia do coronavírus, aprecie, com urgência, o veto do Presidente da República, para rejeitá-lo, nos termos do art. 66, § 4º, da Constituição Federal.


VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 303.

A redação original do art. 64, caput, da Lei n. 8.245/91 mencionava apenas os incs. I, II e IV do art. 9º: “Salvo nas hipóteses das ações fundadas nos incisos I, II e IV do art. 9°, a execução provisória do despejo dependerá de caução não inferior a doze meses e nem superior a dezoito meses do aluguel, atualizado até a data do depósito da caução”.

Mensagem de veto n. 331, de 10 de junho de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm>.

TJSP, 33ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2066062-90.2020.8.26.0000, j. em 28/04/2020.

TJSP, 29ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2081160-18.2020.8.26.0000, j. em 12/05/2020.

TJSP, 36ª Cam. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2102322-69.2020.8.26.0000, j. em 10/06/2020. No mesmo sentido dos julgados citados cf., dentre outros, TJSP, 30ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2104964-15.2020.8.26.0000, j. 28/05/2020; 32ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2104464-46.2020.8.26.0000, j. em 12/06/2020.

STJ, 4ª T., REsp 1207161/AL, j. em 08/02/2011, DJe 18/02/2011.

Guilherme Henrique Lima Reinig é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Amaral Carnaúba é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Pires Novais Dias é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio, doutor em Direito, com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015), e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha (2015).

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Bolsonaro sanciona lei que dá desconto na venda de imóveis

Pague 3, leve 4

Bolsonaro sanciona lei que dá desconto na venda de imóveis da União

O presidente Jair Bolsonaro sancionou nesta quarta-feira (10/6) lei que permite descontos em imóveis de propriedade da União, caso não haja compradores na primeira tentativa de leilão. Com a medida, o governo espera arrecadar cerca de R$ 30 bilhões nos próximos três anos.

Vista aérea do plano piloto de Brasília
Divulgação

Segundo o texto aprovado, o valor dos imóveis poderá ser reduzido em até 25% do valor inicial de oferta se houver necessidade de um segundo leilão. A medida deve afetar a negociação de 1.970 propriedades pertencentes ao governo federal. A lei vale também para leilões eletrônicos. O desconto poderá ser aplicado sobre vendas diretas de templos para organizações ou para ocupantes.

Em leilões eletrônicos, a Secretaria de Coordenação e Governança do Patrimônio da União (SPU) poderá aplicar descontos sucessivos até o limite de 25%. Tais descontos também poderão ser aplicados na venda direta de templos para seus ocupantes.

O imóvel que já tiver sido ofertado duas vezes em leilões poderá ser vendido diretamente, com intermediação de corretores de imóveis. O desconto de 25%, neste caso, ainda será aplicado.

Para interessados em adquirir imóveis da União, o governo manterá um canal de comunicação por este siteCom informações da Agência Brasil.

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Revista Consultor Jurídico, 10 de junho de 2020, 20h55

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Entrevista: Vladimir Passos, ex-secretário de Justiça

Na véspera do último natal e ignorando grande parte das sugestões feitas por Sergio Moro, então ministro da Justiça e Segurança Pública, o presidente Jair Bolsonaro sancionou, com vetos a 25 itens, a chamada lei “anticrime” (Lei 13. 964/19). 

Uma medida em especial desagradou a equipe de Moro: a criação do juiz das garantias. Com a inclusão da nova figura, que não fazia parte da proposta original, um magistrado atua no processo preliminar de investigação e outro no julgamento. A implantação acabou suspensa por seis meses pelo ministro Dias Toffoli, presidente do Supremo Tribunal Federal. 

Para o desembargador aposentado Vladimir Passos de Freitas, que foi secretário de Justiça e assessor para assuntos legislativos na pasta de Moro, o Brasil não tem a menor possibilidade de fazer com que o juiz das garantias funcione adequadamente. Ex- presidente do TRF-4, Passos também é colunista da ConJur.

“É um modismo importado da Espanha e não vejo como poderia ser adaptado aqui, inclusive porque seria necessário nomear muitíssimos juízes e o Brasil é um país que ainda não se compenetrou que é pobre. Agora, com a Covid-19, a ficha está caindo e nós estamos vendo que somos um país carente. Não temos a quantidade de juízes para criar mais uma instância. Nós já temos quatro, agora teríamos cinco instâncias”, afirmou Passos em entrevista concedida à ConJur por telefone.

Exonerado duas semanas depois de Moro pedir demissão, o desembargador aposentado acredita que o ex-juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba fez uma boa gestão, apesar das dificuldades.

“A gestão do Moro se concentrou mais nos aspectos relacionados à segurança pública do que nos voltados à Justiça. Na parte da Justiça, o Brasil, ao contrário de outros países, tem seus temas decididos pelos tribunais e pelo Conselho Nacional de Justiça, não pelo Ministério da Justiça”, diz.

Confira a entrevista na íntegra:

ConJur — A lei “anticrime” foi sancionada com muitas alterações. Que avaliação faz da proposta tal como foi assinada?

Vladimir Passos —
Eu diria que ela foi sancionada com um aproveitamento de cerca de 35%. Não é o ideal. Mas o presidente da República não teria muita legitimidade para vetar o que o Legislativo fez. Até poderia ficar pior se vetasse tudo. Um dos pontos que não foram vetados — e eu lamento muito por isso  — foi o juiz das garantias. Essa sim é uma iniciativa que não estava no pacote e veio do Congresso. Ela poderia ter sido vetada e não foi. Acabou sendo suspensa pelo Supremo. 

ConJur — Mas ao que tudo indica será implantada em breve. Por que lamenta a introdução do juiz das garantias? 

Vladimir Passos —
Eu não vejo a necessidade disso no Brasil. Não existe isso em países mais desenvolvidos. É uma criação que nasceu na Espanha e se desenvolveu pouco na maioria dos países. Só existe em alguns países da América Latina e são países muito diferentes do nosso. O Brasil tem uma extensão territorial imensa. Não temos a quantidade de juízes para criar mais uma instância. Nós já temos quatro, agora teríamos cinco instâncias. É um modismo importado da Espanha e não vejo como poderia ser adaptado aqui, inclusive porque seria necessário nomear muitíssimos juízes e o Brasil é um país que ainda não se compenetrou que é pobre. Agora, com a Covid-19, a ficha está caindo e nós estamos vendo que somos um país carente, pobre, que os recursos públicos não são infinitos e que não há como uma lei ou uma liminar criar recursos públicos. Agora estamos chegando à realidade. 

ConJur — Muitos especialistas com quem conversamos na ConJur disseram que não haveria gastos extras, já que poderia ser feito um intercâmbio entre as varas. Em artigo recente, o senhor afirmou que o coronavírus está demonstrando que o Judiciário é cada vez mais digital e que essa é uma tendência que irá perdurar. Isso não pesa a favor da implantação do juiz das garantias?

Vladimir Passos —
Vejo muita gente falar que é possível implantar, mas poucos conhecem o Brasil. Eu conheço a realidade de quase todos os tribunais e da Justiça do país, porque eu estudo e visito. A substituição de um juiz por outro é uma ilusão. Primeiro porque no momento em que ele está substituindo o outro, ele deixa de fazer o serviço da vara dele. Segundo, porque existe, por exemplo, o juiz que é da comarca cível, outro da criminal. Daí um vai começar a decidir sobre facções criminosas, lavagem de dinheiro, tráfico e coisas desse tipo, sem entender nada de crime. A internet, sim, ela ajuda. Muitos estados, no entanto, têm dificuldade de internet. Tudo isso é relativo. O que não é relativo é que se gastaria, sim, dinheiro. 

ConJur — Outra alteração significativa veio com a lei contra abuso de autoridade. O que achou dela? 

Vladimir Passos —
Eu sou favorável ao controle. Todos devem ser controlados. Nenhuma autoridade tem o poder absoluto. Portanto, em princípio, uma lei que regule abusos é boa. A lei tem pontos positivos, como por exemplo regular o pedido de vista nos tribunais, já que um pedido de vistas às vezes segura uma ação por anos, sem que se possa fazer nada. A lei também foi cautelosa quando disse que é preciso o magistrado agir com dolo para ser punido. Até aí, nada tem de errado. Mas como ela tem tipos penais muito abertos, cerceia a atividade do juiz. Por exemplo, quando ela diz que é crime decretar medidas de privação de liberdade em desconformidade com as hipóteses legais, está intimidando o juiz. Na dúvida, o juiz não fará. Se ele não faz, não se arrisca. Pode-se dizer que só há crime se o magistrado agir dolosamente. Mas o juiz pode responder a uma ação penal que irá durar muitos anos. O perigo dessa lei é intimidar a polícia, o Ministério Público e os juízes. Criaremos uma legião de burocratas que não arrisca nada, não melhora nada. 

ConJur — O senhor disse que os juízes, na dúvida, podem acabar não fazendo nada. Mas na dúvida não seria justamente melhor não fazer nada?

Vladimir Passos —
Não. Na dúvida se é certo ou errado é melhor não fazer nada. Mas na dúvida se tem risco ou não tem risco, o melhor é fazer, porque quem não arrisca não muda nada, não melhora nada. Quem assume funções sabe que muitas vezes há uma zona cinzenta em que é preciso agir e, se não age, as coisas ficam como estão. 

ConJur — Se a lei “anticrime” e a lei contra abuso de autoridade estivessem em curso desde 2013, a “lava jato” em Curitiba teria ocorrido de forma diferente? As condutas de Moro em Curitiba e do Tribunal Regional Federal da 4ª Região poderiam ter sido consideradas abusivas?

Vladimir Passos —
Eu não considero que houve abuso, porque já houve julgamentos na segunda instância e no STJ, com sentenças confirmadas. Eu não conheço os processos, nunca li o processo A ou B, porque eu não tenho tempo de ler 30 mil folhas. Mas eu sei que muitos juízes julgaram diversos casos e tenho a presunção de que não houve abusos. Agora, se isto tudo já existisse como legislação, é difícil dizer como os juízes reagiriam. Eu não sei dizer. Talvez um juiz tivesse medo da lei de abuso de autoridade e o outro não. 

ConJur — Como foi a experiência no Ministério da Justiça?

Vladimir Passos —
Riquíssima e totalmente diferente da experiência do Judiciário. O executivo exige muitas reuniões — primeiro, dentro do Ministério da Justiça; depois, com outros ministérios; por fim, com o Poder Legislativo. Tudo isso força a ser desenvolvida uma habilidade de negociação, coisa que no Judiciário não existe. A pessoa faz concurso para promotor ou juiz e é acostumada mais a decidir, a mandar, do que realmente a negociar. Foi uma experiência muito rica, porque eu pude conhecer o outro lado da moeda, com todas as suas dificuldades — que são muitas — e com todas as suas coisas boas e ruins. 

ConJur — Quais seriam as dificuldades e o lado bom e ruim?

Vladimir Passos —
O bom é que nenhum projeto sai do Executivo ou passa por lá sem que haja um exame muito grande, uma discussão mais aprofundada, minuciosa e com detalhes. O lado ruim é que há burocracia. Nos projetos de lei que vêm do Legislativo, os interesses são mais corporativos ou pessoais do que propriamente de interesse público. É preciso saber lidar com isso; administrar, discutir, para que se chegue ao melhor resultado. 

ConJur — Dentro dessas dificuldades, quais foram os sucessos e insucessos da gestão Moro?

Vladimir Passos —
 A gestão do Moro se concentrou mais nos aspectos relacionados à segurança pública do que nos voltados à Justiça. Na parte da Justiça, o Brasil, ao contrário de outros países, tem seus temas decididos pelos tribunais e pelo Conselho Nacional de Justiça, não pelo Ministério da Justiça. Esse ministério tem uma importância maior na área da Justiça em outros países. Na parte da segurança pública, foram muitos os avanços. Por exemplo, a criação de um processo ágil de venda de bens apreendidos, principalmente do tráfico, propiciou ao Brasil uma recuperação de milhões de reais. Só neste ano foram R$ 3,6 milhões em venda de bens apreendidos. Também tem a criação do Fusion Center [Centro Integrado de Operações de Fronteira (CIOF)]. Nunca o Brasil teve uma segurança unificada. Essa é uma ideia norte-americana, mas que existe em países como a Argentina. Todos os órgãos nacionais das polícias estaduais, da Polícia Federal, da Receita e AGU trabalham em conjunto num prédio só. 

O Fusion Center já foi implantado em Foz do Iguaçu (Paraná) e os resultados já estão se fazendo sentir, são muito bons. Esse órgão também trata de uma política internacional. Houve uma aproximação muito grande com os países vizinhos, por meio de atos que desburocratizaram a forma de agir da segurança pública de países que são separados por um rio, por uma rua, e que têm muito em comum. Entre os sucessos, eu coloco também a remoção de 22 presos do PCC, em uma verdadeira operação de guerra. Essa era uma demanda que todos diziam ser impossível de cumprir. Os membros da organização estavam em um presídio paulista em que tinham todas as regalias e a possibilidade de enviar ordens para fora. Uma vez transferidos para um presídio federal, isso desaparece, já que o número de presos é menor e as condições são de um rigor extremo. Não há celular, não há nada.  

ConJur — Mas essa ação não é muito mais uma obra do Ministério Público de São Paulo, que foi quem pediu as transferências? O governador de São Paulo, João Doria, também disputa a autoria da operação. Não seria um sucesso mais do governo estadual do que propriamente do Ministério da Justiça?

Vladimir Passos —
O governo de São Paulo colaborou de uma forma excelente. Não houve vazamentos de espécie alguma e houve colaboração total. Isso é verdade. Mas sem o apoio da Secretaria Operacional do Ministério da Justiça, que unifica a operação entre todas as polícias do Brasil, isso jamais seria possível. A Secretaria conseguiu o apoio também da Aeronáutica. Isso é muito difícil. Esse tipo de trabalho é impossível de ser feito por um órgão só. É preciso haver coordenação e, no caso, houve. A participação de São Paulo foi fantástica, sim. Mas houve uma participação essencial do Ministério da Justiça. 

ConJur — Outra disputa entre governadores e a gestão Moro diz respeito à queda no número de homicídios, que já vinha sendo uma tendência nos últimos anos.

Vladimir Passos —
Não creio que isso seja uma tendência que vinha forte nos últimos anos. É impossível saber exatamente onde houve uma interferência maior ou menor, porque nós temos 26 estados e um distrito federal. Pode ser que no estado “x” haja queda nos homicídios por causa da adoção de determinada política pública e no estado “y”, não. Mas, de qualquer forma, o papel do governo federal é propiciar legislações eficientes e dar apoio nas ações, inclusive na cooperação. Eu não tiraria mérito dos estados nem negaria que houve mérito do governo federal. O importante é saber que os homicídios diminuíram. Diminuiu? Então ótimo. Palmas. 

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Opinião: Telemedicina vai mudar a maneira de pensar a saúde

A sociedade informacional na qual estamos inseridos é cada vez mais ligada às tecnologias. As profissões utilizam novas tecnologias para conseguir maior eficiência e celeridade. O exemplo mais próximo diz respeito aos profissionais de Direito, com a utilização crescente de plataformas digitais e a migração de processos físicos para “processos judiciais eletrônicos”.

Na medicina, obviamente, não seria diferente. São cada vez mais usuais consultas online pelo sistema de telemedicina, o que fez o Conselho Federal de Medicina regulamentar a prática por meio da Resolução nº 1.643 de 2002.

O Congresso Nacional, no mesmo sentido, sancionou a Lei nº 13.989/20, que dispõe sobre o uso da telemedicina durante a crise causada pela pandemia da Covid-19. Perceba que tal lei tem eficácia somente enquanto perdurar a situação de crise em questão, mas será um excelente laboratório para a ampliação de ferramentas tecnológicas para consultas e tratamentos.

Da resolução do Conselho Federal de Medicina, extrai-se o conceito de telemedicina. O artigo 1º define-a como “o exercício da Medicina através da utilização de metodologias interativas de comunicação audiovisual e de dados, com o objetivo de assistência, educação e pesquisa em Saúde”. A Lei n. 13.989/20 trouxe definição semelhante no artigo 3º, expondo que telemedicina é o “exercício da medicina mediado por tecnologias para fins de assistência, pesquisa, prevenção de doenças e lesões e promoção de saúde”.

Obviamente, esse tipo de consulta deve seguir padrões técnicos que garantam a segurança tanto do médico como do paciente atendido, tendo uma infraestrutura tecnológica apropriada e pertinente, obedecendo as normas técnicas do Conselho Federal de Medicina quanto a guarda, manuseio, transmissão de dados, confidencialidade, privacidade e garantia do sigilo profissional (artigo 2º da Resolução nº 1.643/02 do CFM).

Por sua vez, a Lei nº 13.989/20 deixa expresso no artigo 4º o dever de o médico informar o paciente sobre as limitações inerentes ao uso da telemedicina, tendo em vista a impossibilidade de realização de exame físico durante a consulta.

Percebe-se que a telemedicina pode representar um avanço, visto que ela pode ter inúmeros benefícios, como reduzir a distância, mesmo que de forma telepresencial, entre especialistas de grandes centros e regiões distantes. Em um território continental e diversificado como é o brasileiro, a falta do acesso a centros médicos especializados pode afastar os pacientes de novas técnicas e tratamentos. Ademais, em algumas áreas, existe dificuldade de preenchimento de vagas de profissionais de saúde e a telemedicina pode ser uma alternativa imediata viável.

Além disso, a evolução tecnológica pode trazer benefícios quando aliada a questões de saúde pública, pois evita aglomerações e filas desnecessárias nos hospitais e traz maior agilidade nas consultas. Inegável que a telemedicina é uma evolução natural da nossa sociedade, que está cada vez mais inserida no mundo digital.

O ordenamento brasileiro não é o primeiro a permitir o uso das novas tecnologias no âmbito médico. A telemedicina já é utilizada, por exemplo, nos Estados Unidos da América, estando presente em muitos hospitais e centros médicos. Naquele país, inclusive, existe um órgão regulador dessa prática, o ATA (American Telemedicine Association — Associação Americana de Telemedicina). A própria Organização Mundial da Saúde (OMS) tem editado recomendações para o uso da telemedicina, com a ouvida de especialistas de diversas localidades para buscar uma visão plural sobre o tema [1].

Em relação às questões éticas sobre a prestação do serviço médico por meio da telemedicina, a Lei n. 13.989/20 menciona que “a prestação de serviço de telemedicina seguirá os padrões normativos e éticos usuais do atendimento presencial, inclusive em relação à contraprestação financeira pelo serviço prestado” (artigo 5º). Tais padrões deverão ser definidos pelo Conselho Federal de Medicina.

Por mais que a resolução do Conselho Federal de Medicina sobre o tema versasse sobre o uso de telemedicina, ele ainda não era utilizado de forma tão usual no Sistema Único de Saúde (SUS). Com a crise ocasionada pela pandemia da Covid-19 e o risco de colapso do sistema de saúde com muitos pacientes se dirigindo aos hospitais, buscou-se trazer maior celeridade e menos riscos de agravamento decorrentes da aglomeração de doentes em um mesmo ambiente, razão pela qual foi editada a Lei n. 13.989/20.

A própria lei menciona que não caberá ao poder público custear ou pagar pelos serviços de telemedicina quando não for exclusivamente serviço prestado ao SUS (artigo 5º). A contrario sensu, se o serviço de telemedicina for prestado exclusivamente ao SUS, caberá ao poder público custeá-lo. Percebe-se, portanto, uma clara permissão da utilização do serviço de telemedicina no sistema de saúde público.

A questão que surge é se seria possível ou não o uso da telemedicina após a situação de pandemia, uma vez que a lei tem caráter temporário.

O presidente da República vetou o artigo 6º da Lei nº 13.989/20, que mencionava competir ao Conselho Federal de Medicina a regulamentação da telemedicina após o período de crise ocasionada pela Covid-19. O argumento de veto foi o de que a matéria deveria ser regulada em lei, com base no artigo 5º, II e XIII, da Constituição Federal [2].

Ocorre que não parece haver empecilho legal para que o Conselho Federal de Medicina regulamente a matéria. Trata-se de uma autarquia federal que, entre as suas atividades, tem competência regulamentar e já se posicionou sobre vários temas de relevância, como o testamento vital e ortotanásia, que são temas, inclusive, mais sensíveis que a regulamentação da telemedicina. Assim, o dispositivo legal vetado era não só possível, como algo bastante razoável.

A telemedicina será testada em caráter ampliado em época de pandemia. Os resultados alcançados mudarão a forma de regulamentação da matéria. Ainda que a Lei n. 13.989/20 tenha vigência temporária e tenha sido vetado o dispositivo que delegava ao Conselho Federal de Medicina a autorização pós-pandemia, a experiência de utilização ampla e disseminada não será esquecida. Ela pode representar uma alternativa de baixo custo para atendimento em locais remotos e distantes de grandes centros. Certamente, representará uma mudança na maneira de pensar a saúde pública e privada, não havendo óbice para que o Conselho Federal de Medicina regulamente a matéria.

 é procurador do estado de Pernambuco e advogado, professor adjunto da Universidade de Pernambuco (UPE), doutor e mestre em Direito pela USP.