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Críticas às razões do veto ao artigo 9º do PL 1.179/2020

1. Introdução

Na última quarta-feira, o Presidente da República sancionou o PL 1.179/2020 que dispõe sobre o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia da Covid-19 (RJET). Contudo, a sanção veio acompanhada de veto do Presidente a diversos dispositivos do projeto, entre os quais está o art. 9º, que veda, temporariamente, a concessão de despejo liminar em contratos de locação urbana.

O caput do citado dispositivo estabelece que “não se concederá liminar para desocupação de imóvel urbano nas ações de despejo, a que se refere o art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX, da Lei n. 8.245, de 18 de outubro de 1991, até 30 de outubro de 2020”. De acordo com o parágrafo único do artigo, a restrição do caput “aplica-se apenas às ações ajuizadas a partir de 20 de março de 2020”.

Embora a suspensão prevista no art. 9º do PL refira-se a seis hipóteses legais de despejo, as razões do veto cuidaram somente da principal delas. Trata-se daquela prevista no art. 59, § 1º, inc. IX, da Lei n. 8.245/91, segundo o qual “concederseá liminar para desocupação em quinze dias, independentemente da audiência da parte contrária e desde que prestada a caução no valor equivalente a três meses de aluguel, nas ações que tiverem por fundamento exclusivo: […] IX – a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação no vencimento, estando o contrato desprovido de qualquer das garantias previstas no art. 37, por não ter sido contratada ou em caso de extinção ou pedido de exoneração dela, independentemente de motivo” (destaque nosso).

Para poder analisar criticamente o veto em cotejo com as razões apresentadas pelo Presidente, convém contextualizar brevemente a situação atual de tutela dos interesses do locador inadimplido na Lei de Locações.

2. Tutela do locador inadimplido na Lei de Locações

O referido inciso IX do art. 59, § 1º, da Lei de Locações de Imóveis Urbanos foi incluído pela Lei n. 12.112/2009. Sua ausência no texto original da Lei n. 8.245/91 teria sido um “cochilo do legislador”, pois a falta de pagamento de aluguel e acessórios da locação seria “o motivo mais imperioso para a desocupação imediata do imóvel, superando a urgência dos demais incisos”.

Portanto, antes da alteração, o locador inadimplido dispunha apenas da possibilidade de execução provisória da sentença de despejo. Isso porque, nos procedimentos regidos pela Lei n. 8.245/91, os recursos interpostos contra as sentenças têm efeito somente devolutivo (art. 58, inc. V), de sorte que eventual apelação do locatário não procrastina a retomada do bem. Entretanto, a redação original do art. 64 da Lei n. 8.245/91 exigia a prestação de caução como condição para a execução provisória do despejo, no que a Lei n. 12.112/2009 novamente melhorou situação do locador inadimplido. Com efeito, ela alterou a redação do caput do art. 64 da Lei n. 8.245/91 para dispensar a caução também na hipótese de desfazimento da locação “em decorrência da falta de pagamento do aluguel e demais encargos” (art. 9º, inc. III).

Destarte, atualmente o locador desfruta de uma posição privilegiada do ponto de vista da exequibilidade da ordem de despejo. Ao contrário do CPC, que, como regra, atribui efeito suspensivo à apelação (art. 1.012) e exige contracautela para a prática de diversos atos praticados durante a execução provisória (art. 520, inc. IV), a Lei n. 8.245/91, além de prever o despejo liminar (art. 59, § 1º), possibilita a imediata execução da ordem já a partir da sentença e, para isso, sequer exige que o locador preste caução.

3. Razão do veto presidencial e análise crítica

Segundo a mensagem de veto, “a propositura legislativa […] contraria o interesse público por suspender um dos instrumentos de coerção ao pagamento das obrigações pactuadas na avença de locação (o despejo), por um prazo substancialmente longo”. Ainda de acordo com as razões do veto, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 conferiria “proteção excessiva ao devedor em detrimento do credor, além de promover o incentivo ao inadimplemento”, desconsiderando, dessa forma, a “realidade de diversos locadores que dependem do recebimento de alugueis como forma complementar ou, até mesmo, exclusiva de renda para o sustento próprio”.

Entretanto, o dispositivo vetado não desconsidera o interesse patrimonial do locador. Além de não afetar a exigibilidade judicial do crédito deste, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 não altera a regra da Lei n. 8.245/91 que permite a execução provisória da sentença independentemente de caução (art. 64). Apenas impede, temporariamente, uma medida legítima, porém extrema, sendo que essa solução transitória se justifica em relevantes razões de saúde pública. É nesse contexto que a relação processual é reequacionada em favor do locatário. Mas essa flexibilização da tutela em favor do devedor cessa com a prolação da sentença concessiva do despejo. Reconhecido judicialmente o direito do locador à desocupação do imóvel, a ordem de despejo passa a ser imediatamente executável, independentemente de caução.

Assim, não há de se falar em contrariedade ao interesse público. O art. 9º do PL n. 1.179/2020 não confere uma “proteção excessiva ao devedor”. Sequer é no interesse exclusivo dos locatários que se propõe a vedação transitória do despejo liminar, mas sim no da coletividade. Outrossim, o dispositivo não incentiva o inadimplemento, pois o locatário que descumprir as suas obrigações será fatalmente despejado após a sentença de procedência da ação de despejo, ainda que o locatário recorra da decisão. Em verdade, o art. 9º do PL n. 1.179/2020 promove um justo equilíbrio entre os interesses patrimoniais do locador, de um lado, e as razões de Saúde Pública, de outro.

É nesses termos que muitos julgados já vêm reconhecendo a necessidade de se obstar os despejos liminares durante a pandemia do coronavírus, como se verifica, especificamente, na jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. A título ilustrativo, a 33ª Câmara de Direito Privado da referida corte, com fundamento no artigo 5º da Resolução do Conselho Nacional de Justiça n. 313/2020 e no artigo 5º do Provimento do Conselho Superior da Magistratura do TJSP de n. 2550/2020, decidiu que “a pandemia de coronavírus tem evidentes reflexos sobre a saúde, e, sem dúvida, ter preservado o direito de moradia, agora, auxilia na prevenção do contágio, contribuindo para o cumprimento da recomendação de isolamento/distanciamento social”. Em sentido semelhante, a 29ª Câmara de Direito Privado do TJSP julgou “correta a determinação de suspensão da medida, por ora, em razão da situação extraordinária que todos vivem, diante da pandemia causada pelo COVID-19 no Brasil e no mundo, fato público e notório, com reconhecimento do estado de calamidade pública feita ao Congresso Nacional pela Presidência da República”. Segundo o acórdão, “a preservação da integridade física do oficial de justiça e [de] todos os que seriam envolvidos no cumprimento da ordem de despejo, se sobrepõe ao interesse da autora, justamente para evitar o contágio do COVID-19, o que não se pode permitir, diante da gravidade da pandemia”. Da mesma forma, recentemente a 36ª Câmara de Direito Privado da corte paulista, com fundamento no reconhecimento do estado de calamidade pública pelo Congresso Nacional (Decreto Legislativo 06/2020) e na decretação de quarentena no Estado de São Paulo (Decreto 64.881/2020), decidiu ser “cabível a suspensão da decisão que concedeu o despejo, uma vez que seu cumprimento, nas atuais circunstâncias, estaria em desconformidade com as medidas de saúde vigentes que indicam a necessidade de se reduzir a circulação de pessoas e a permanência no ambiente residencial”.

Nesse contexto, a aprovação do art. 9º do PL n. 1.179/2020 consolidaria, legislativamente, uma orientação jurisprudencial já existente. O dispositivo vetado apoia-se, pois, em razões de interesse social que estão sendo lamentavelmente desconsideradas no veto do Presidente da República, mas já reconhecidas em reiteradas decisões judiciais, como demonstram os julgados do TJSP acima citados.

Além disso, o veto também se esquece da possibilidade de o locador obter despejo liminar com fundamento no art. 300 do CPC, desde que, além da probabilidade do seu direito, comprove perigo de dano ou risco ao resultado útil do processo. Com efeito, o STJ já decidiu que a tutela provisória prevista no art. 59, § 1º, da Lei n. 8.245/91 é de evidência, de sorte que o dispositivo é compatível com a tutela provisória de urgência do então vigente art. 273, inc. I, do diploma processual civil revogado. Por isso, o art. 9º do Projeto de Lei não exclui a possibilidade de o juiz, excepcionalmente, conceder ordem de despejo liminar, desde que comprovado o risco à subsistência do locador nos termos do art. 300 do vigente CPC. Consequentemente, também não assiste razão ao veto presidencial quando afirma que o PL desconsidera a realidade de diversos locadores cujo sustento depende do recebimento dos aluguéis. A situação particular desses locadores, desde que devidamente comprovada, pode ser resguardada mediante a concessão de tutela provisória de urgência prevista no art. 300 do CPC.

4. Conclusão

Em conclusão, espera-se que o Congresso Nacional, considerando a referida experiência jurisprudencial e a solução equilibrada do art. 9º do PL n. 1.179/2020 em face do contexto da pandemia do coronavírus, aprecie, com urgência, o veto do Presidente da República, para rejeitá-lo, nos termos do art. 66, § 4º, da Constituição Federal.


VENOSA, Silvio de Salvo. Lei do inquilinato comentada: doutrina e prática. 13 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 303.

A redação original do art. 64, caput, da Lei n. 8.245/91 mencionava apenas os incs. I, II e IV do art. 9º: “Salvo nas hipóteses das ações fundadas nos incisos I, II e IV do art. 9°, a execução provisória do despejo dependerá de caução não inferior a doze meses e nem superior a dezoito meses do aluguel, atualizado até a data do depósito da caução”.

Mensagem de veto n. 331, de 10 de junho de 2020. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2020/Msg/VEP/VEP-331.htm>.

TJSP, 33ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2066062-90.2020.8.26.0000, j. em 28/04/2020.

TJSP, 29ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2081160-18.2020.8.26.0000, j. em 12/05/2020.

TJSP, 36ª Cam. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2102322-69.2020.8.26.0000, j. em 10/06/2020. No mesmo sentido dos julgados citados cf., dentre outros, TJSP, 30ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2104964-15.2020.8.26.0000, j. 28/05/2020; 32ª Câm. de Dir. Priv., Agravo de Instrumento nº 2104464-46.2020.8.26.0000, j. em 12/06/2020.

STJ, 4ª T., REsp 1207161/AL, j. em 08/02/2011, DJe 18/02/2011.

Guilherme Henrique Lima Reinig é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina, mestre e doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Amaral Carnaúba é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus Governador Valadares), doutor em Direito Civil pela Universidade de São Paulo, mestre em Direito Privado pela Université Panthéon-Sorbonne (Paris 1) e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Daniel Pires Novais Dias é professor de Direito Civil da FGV Direito Rio, doutor em Direito, com período de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (2014-2015), e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo. Foi pesquisador visitante na Harvard Law School (2016-2017) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado em Hamburgo, na Alemanha (2015).

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Diante de dúvida razoável, licitação pode ser suspensa pela Justiça

O licitante a quem foi adjudicado um objeto de licitação não tem direito subjetivo à contratação, só a expectativa do direito, conforme disposto no artigo 49 da Lei 8.666/93. Com esse entendimento, a 2ª Câmara de Direito Público do Tribunal de Justiça de São Paulo concedeu liminar que suspende a assinatura de um contrato entre a Prefeitura de São José dos Campos e uma empresa de serviços de mobilidade urbana.

ReproduçãoDiante de dúvida razoável, licitação pode ser suspensa pelo Poder Judiciário

A licitação foi questionada na Justiça por outra empresa interessada no contrato, que sustentou que a vencedora do certame não preencheria os requisitos técnicos necessários para prestação de serviços ao município. O juízo de origem vislumbrou indícios de “provável desatendimento das exigências” por parte da empresa vencedora e suspendeu a assinatura do contrato até o julgamento do mérito.

O relator do recurso da empresa vencedora no TJ-SP, desembargador Carlos Von Adamek, afirmou que se mostra “razoável” o deferimento da liminar ao menos até a prolação da sentença, “visto que se funda em dúvida razoável acerca do atendimento, pela agravante, da habilitação técnica necessária ao adequado fornecimento do serviço licitado, conforme se depreende da documentação carreada aos autos”, o que deverá ser analisado em profundidade no julgamento do mérito da demanda.

“Observo também que a agravante não demonstrou, especificamente, a urgência na concretização da contratação, limitando-se a tratar genericamente do tema, o que, aliado à iminente prolação da r. sentença no mandado de segurança, recomenda a manutenção da r. decisão recorrida como lançada”, afirmou o desembargador.

Adamek afirmou ainda que não cabe ao TJ-SP, nos estritos limites desse recurso, decidir a respeito da matéria de fundo ou de questão que com ela se confunde, “como a alegação de ausência de interesse da impetrante, ainda mais porque, até então, ventilada exclusivamente em sede recursal, sob pena de supressão de instância, motivo pelo qual deixo de apreciá-las, reservando-as ao livre convencimento motivado do r. juízo a quo, a quem primeiro cabe delas conhecer”. A decisão foi por unanimidade.

Processo 2066921-09.2020.8.26.0000

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É possível usucapir imóvel destinado em parte a comércio familiar

Modalidade especial urbana

É possível usucapir imóvel destinado em parte a comércio familiar, diz STJ

Por 

É possível usucapir imóvel que, apenas em parte, é destinado para fins comerciais. O uso simultâneo do imóvel para pequena atividade comercial pela família domiciliada não inviabiliza o usucapião na modalidade especial urbana. Com esse entendimento, a 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decretou usucapido um imóvel que contém em anexo uma bicicletaria.

Não há lei que impeça alvo de usucuapião de ser comercialmente produtivo 
Nattawut Thammasak

O pedido havia sido negado em primeiro e segundo grau, sob o entendimento de que a modalidade usucapião urbano é restrita a moradia. O imóvel em questão tem área de 159,95 m², sendo que 91,32 m² são utilizados comercialmente, em uma bicicletaria. A parte residencial se restringe a 68,63 m².

O entendimento baseou-se no Código Civil de 2002, que dispõe sobre prescrição aquisitiva especial urbana, e no Estatuto da Cidade, que regulamenta o texto constitucional em relação ao usucapião. 

Para a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso, o requisito da exclusividade no uso residencial não está expressamente previsto em nenhum dos dispositivos legais e constitucionais que dispõem sobre a usucapião especial urbana.

“O uso misto da área a ser adquirida por meio de usucapião especial urbana não impede seu reconhecimento judicial, se a porção utilizada comercialmente é destinada à obtenção do sustento do usucapiente de sua família”, afirmou a ministra. 

“Há, de fato, a necessidade que a área pleiteada seja utilizada para a moradia do requerente ou de sua família, mas não se exige que esta área não seja produtiva, especialmente quando é utilizada para o sustento do próprio recorrente, como na hipótese em julgamento”, acrescentou.

Clique aqui para ler a decisão

REsp 1.777.404

 é correspondente da revista Consultor Jurídico em Brasília.

Revista Consultor Jurídico, 11 de maio de 2020, 15h40

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Breno de Paula: Comerciantes devem ter desconto de IPTU

Opinião

Covid-19: comerciantes devem ter desconto de IPTU em razão da pandemia

Por 

O IPTU é um imposto de competência dos municípios que incide sobre a propriedade predial e territorial urbana; tem como fato gerador a propriedade, o domínio útil ou a posse de bem imóvel por natureza ou por acessão física, como definido na lei civil, localizado na zona urbana do município (artigos 32 a 34 do CTN).

A faculdade conferida pelo Código Civil ao proprietário de usar, gozar e dispor, desde que cumprida a sua função social, revela que ele tem o direito pleno sobre a coisa, cuja prerrogativa é de explorá-la em proveito próprio, podendo tirar toda utilidade e proveito possível da coisa.

Todavia, como é de conhecimento de todos, em razão da pandemia sanitária da Covid-19, os estabelecimentos comerciais de todo o país não estão com disponibilidade plena de seu imóvel, assim inexistente o fato gerador.

Para melhor compreensão, é imperioso consignar que os estabelecimentos comerciais tiveram seus alvarás de funcionamento suspensos e estão proibidos de exercer plenamente suas atividades, em decorrência da crise sanitária extraordinária deflagrada pela OMS.

Diante dessa indisponibilidade, ficam os estabelecimentos comerciais impossibilitados de exercer o direito da plena posse do bem, ou seja, foi cerceado seu direito de uso, gozo e dispor do imóvel por ato do poder público.

Portanto, restou descaracterizada a obrigação tributária por inexistência do fato gerador do IPTU. O proprietário, sem todos os elementos da propriedade, não é contribuinte do imposto.

Nesse diapasão, inexiste dever jurídico tributário do IPTU ante a inexistência do fato gerador do imposto.

É o correto, é o justo.

 é advogado tributarista, sócio do escritório Arquilau de Paula Advogados Associados, professor de Direito Tributário da Universidade Federal de Rondônia e doutorando e mestre em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Revista Consultor Jurídico, 3 de maio de 2020, 15h01