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Caio Druso: Marco Aurélio, 30 anos e adiante

“Processo não tem capa; tem conteúdo.”

“Não faço questão de formar na corrente majoritária.”

“Não ocupo cadeira voltada a relações públicas.”

Tempos estranhos, muito estranhos, geradores de grande perplexidade.”

“Onde está a liturgia?”

Estudantes e doutores, que todos somos, mesmo quando sem prática ou diploma, numa era em que todos parecem saber tudo, conhecemos a autoria dessas e de tantas expressões que, em cadência marcada, como se o oral e o erudito fossem um apenas, brotam dos votos e das imagens do ministro Marco Aurélio, no Supremo Tribunal Federal há trinta anos.

Pode-se concordar ou discordar do ministro em quase tudo — e penso até que a discordância lhe trará mais alegria. Mas não se pode ficar, jamais, indiferente a ele. Também se pode concordar ou discordar das decisões que, ao longo desse longo tempo, o ministro Marco Aurélio apresentou. Mas não há como negar o impacto que ele já trouxe, e continua trazendo, à história do Brasil e de sua Justiça.

Na trajetória desses tantos anos, desde quando Marco Aurélio assumiu a cadeira que ocupa, muitas manifestações cotidianas e insistentes, que eram minoria e, ao longo do tempo, passaram a prevalecer, em temas como os da vedação da progressão da pena dos crimes hediondos (HC 69.657), e da prisão somente após o trânsito em julgado (HC 126.292), têm se associado a atos de coragem.

Foi o que se deu com a TV Justiça, inciativa pioneira que, na presidência do Supremo Tribunal, Marco Aurélio conduziu, enfrentando resistências e, mais com elas do que apesar delas, assumindo os ônus de uma decisão que faz dessa Corte, entre todas as Cortes de Justiça que existem no mundo, talvez a mais pública, a mais transparente e, portanto, a que mais se expõe ao escrutínio social.

Foi o que se deu, também, com a questão dos juros previstos no texto original do artigo 192, § 3º, da Constituição de 1988. Quando a Carta era ainda uma esperança, Marco Aurélio foi vencido no voto da ADI nº 4, em que sustentava que o limite de 12% disposto naquele texto era, mesmo, um limite real. A disposição constitucional precisou ser revogada para que o voto do ministro fosse esvaziado e, não houvesse essa revogação, apesar de tudo o que se disse em contrário, continuaria o texto a prever que “as taxas de juros reais, nelas incluídas comissões e quaisquer outras remunerações direta ou indiretamente referidas à concessão de crédito, não poderão ser superiores a 12% ao ano”.

Da mesma forma, quando era candente e público o debate sobre a interrupção da gestação por anencefalia, como relator da ADPF nº 54, em 2004, Marco Aurélio deferiu uma liminar que, em análise histórica, naquele momento ao menos, seria certamente desconstituída pelo colegiado. Oito anos depois, e somente depois desse longo período de maturação, é que o processo foi levado a julgamento pelo ministro. Pela maciça maioria de seus pares, a liminar foi confirmada no Supremo.

No arco de 30 anos cabe uma vida inteira. No caso de Marco Aurélio, pode-se dizer que são muitas as vidas. O Supremo de hoje não é diferente daquele que existia em 13 de junho de 1990, quando ele assumiu sua cadeira, apenas na forma de se expor a público e de deliberar, ou na composição dos julgadores, mas também no direito que examina e que aplica, e nos desafios institucionais que lhe são apresentados.

Desafios que, nos dias que correm, vêm tornando necessário ao Supremo Tribunal explicitar, inclusive, regras tão óbvias quanto as de que ao Judiciário cabe arbitrar os conflitos, de que o espaço de discussão quanto ao cumprimento de suas decisões está no próprio sistema de justiça, e de que a manutenção dos procedimentos legais é a melhor garantia para tempos de incerteza.

Ao longo dessas três décadas, Marco Aurélio não tem deixado de decidir, de atuar e de se manifestar, por mais diversas e adversas que tenham sido as circunstâncias, e por maiores que tenham sido as resistências. Nesses dias inquietos, nos quais persiste uma pandemia que parece não ter fim, e nos quais as crises internas são tão cotidianas que já se fazem previsíveis, não poderiam ser mais oportunas as homenagens que se prestem a quem, como ele, faz parte da história, do presente e do futuro da Justiça e do Brasil.

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André Maluf: O Novo Regime de Exceção Fiscal da LC 173/2020

Os diversos veículos de comunicação veicularam a Lei Complementar 173/2020 como um pacote de ajuda financeira para Estados e municípios. Muito se falou sobre o montante de R$ 60 bilhões a ser destinado para os entes. Entretanto, para além de uma mera ajuda financeira, a Lei Complementar 173/2020 trouxe uma série de inovações fiscais que alteraram profundamente a Lei de Responsabilidade Fiscal (LC 101/00), trazendo um verdadeiro Regime de Exceção Fiscal.

Embora a lei tenha apenas dez artigos, as mudanças devem ser analisadas com cuidado pois envolvem temas complexos e sensíveis. Longe de esgotar os debates sobre o tema, buscamos abordar alguns pontos que parecem polêmicos e inovadores, de modo a reunir neste artigo, em síntese, algumas considerações sobre o tema de modo a debater sobre os impactos da referida LC 173/20 e se ela pode servir como solução jurídica para a crise que acomete Estados e municípios.

Inicialmente a LC 173/20 se apoia sobre três eixos ou iniciativas (artigo 1º, §1º): suspensão de pagamento de dívidas, reestruturação de operações de crédito e entrega de recursos por meio de auxílio financeiro.

À luz do objeto deste texto, o artigo 7º é o dispositivo que altera a Lei de Responsabilidade Fiscal, relativizando diversas normas de controle de gastos, de modo que cria uma verdadeiro Regime de Exceção Fiscal.

Inicialmente, faz alteração no artigo 21 da LRF, criando regras de restrição à realização de despesas.

A disposição que mais chama a atenção e promete gerar debates repousa nas alterações do artigo 65 da LRF, ao prever a suspensão de uma série de dispositivos da LC 101/00 em decorrência da calamidade pública reconhecida pelo Legislativo (§1º, I), notadamente, os limites e condições e demais restrições para todos os entes para: a) contratação e aditamento de operações de crédito; b) concessão de garantias; c) contratação entre entes da federação; e d) recebimento de transferências voluntárias.

A alteração mais relevante parece constar no §1º, II, do artigo 65, que passa a dispensar os limites e afastar as vedações e sanções previstas e decorrentes dos seguintes dispositivos da LRF:

“Artigo 35 É vedada a realização de operação de crédito entre um ente da federação, diretamente ou por intermédio de fundo, autarquia, fundação ou empresa estatal dependente, e outro, inclusive suas entidades da administração indireta, ainda que sob a forma de novação, refinanciamento ou postergação de dívida contraída anteriormente.

Artigo 37 — Equiparam-se a operações de crédito e estão vedados: I – captação de recursos a título de antecipação de receita de tributo ou contribuição cujo fato gerador ainda não tenha ocorrido, sem prejuízo do disposto no §7º do artigo 150 da Constituição; II – recebimento antecipado de valores de empresa em que o Poder Público detenha, direta ou indiretamente, a maioria do capital social com direito a voto, salvo lucros e dividendos, na forma da legislação; III – assunção direta de compromisso, confissão de dívida ou operação assemelhada, com fornecedor de bens, mercadorias ou serviços, mediante emissão, aceite ou aval de título de crédito, não se aplicando esta vedação a empresas estatais dependentes; IV – assunção de obrigação, sem autorização orçamentária, com fornecedores para pagamento a posteriori de bens e serviços.

Artigo 42 É vedado ao titular de Poder ou órgão referido no artigo 20, nos últimos dois quadrimestres do seu mandato, contrair obrigação de despesa que não possa ser cumprida integralmente dentro dele, ou que tenha parcelas a serem pagas no exercício seguinte sem que haja suficiente disponibilidade de caixa para este efeito”.

Ademais, permite dispensar o cumprimento do parágrafo único do artigo 8º  “os recursos legalmente vinculados a finalidade específica serão utilizados exclusivamente para atender ao objeto de sua vinculação, ainda que em exercício diverso daquele em que ocorrer o ingresso” , desde que os recursos sejam destinados ao combate da calamidade pública.

Por fim, o inciso III do §1º, do artigo 65 permite ainda o afastamento das condições e vedações previstas nos artigos 14, 16 e 17 da LRF, desde que o incentivo ou benefício e a criação ou o aumento da despesa sejam destinados ao combate à calamidade pública.

Tais mudanças abrem portas, a nosso sentir, para a utilização de recursos, legalmente vinculados, para o enfrentamento da calamidade, como, a exemplo do âmbito municipal, àqueles vinculados ao Fundeb, eis que afastado o parágrafo único do artigo 8º, desde que ocorra excedente do montante destinado originalmente.

Quanto a esse ponto a questão aparentemente é divergente.

O primeiro entendimento é mais restrito e parece ter sido adotado pela Confederação Nacional dos Municípios. A Nota Técnica 36/2020 do CNM reforça que no tocante ao artigo 65, quanto trata do parágrafo único do artigo 8º, permite apenas: “O uso de receitas vinculadas de anos anteriores para despesas diversas do inicialmente definido para ações de combate à calamidade pública”. Ou seja, apenas seria possível utilizar os recursos legalmente vinculados excedentes do orçamento anterior.

O segundo entendimento adotado pela Secretaria do Tesouro Nacional caminha em sentido mais amplo: a Nota Técnica SEI nº 21231/2020/ME prevê a “utilização de recursos legalmente vinculados a finalidade específica para atender ao objeto diferente ao da sua vinculação”.

Outra possibilidade seria a realização de empréstimo (operação de crédito) entre um município e sua autarquia ou fundo de previdência para o combate à calamidade, em razão do afastamento do artigo 35 da LRF pelo artigo 65, §1º, II, e do artigo 65, §1º, I, “a”, que dispensa os limites, as condições e as restrições para contratação e aditamento de operações de crédito.

Além disso, seria possível também a criação de benefícios fiscais, como um desconto nos créditos tributários de valor muito elevado, sem que isso configure renúncia de receita, eis que afastado o artigo 14, a fim de se obter recursos de forma mais célere para o enfrentamento da calamidade, evitando a judicialização e os custos e barreiras dela inerentes. A nosso sentir, tal regra de flexibilização exige a devida motivação do gestor, mediante fundamentação adequada que ateste o interesse público na renúncia de receita, de preferência amparada em orientações técnicas que demonstrem a vantagem dos benefícios ou incentivos, à luz, preferencialmente de indicadores econômicos, de modo a evitar a dilapidação de créditos da Fazenda Pública de forma irresponsável.

Todas essas disposições não afastam a exigência de transparência, controle e fiscalização.

Em que pese as críticas que possam ser suscitadas em termos de irresponsabilidade fiscal, a nosso sentir o novo regime criado parece se adaptar à realidade excepcional que acomete drasticamente Estados e municípios, entes mais suscetíveis a crises do que a União.

Isso não significa uma falta total de accountability, ou uma carta branca para o gestor atuar de modo irresponsável. Cabe aos órgãos de controle, notadamente Tribunais de Contas e Ministério Público, manterem a vigilância sobre as medidas que forem tomadas durante o estado de calamidade, sem desconsiderar nesse controle da Administração à luz da LINDB e do decidido pelo STF na recente MC na ADI 6.421 a realidade local ou regional, avaliando as consequências jurídicas e administrativas do controle, as dificuldades reais do gestor e as circunstâncias práticas de sua atuação, cabendo responsabilização no caso de erro grosseiro ou dolo.

A nosso sentir, o novo regramento jurídico surge em boa hora, de modo a permitir uma flexibilização das regras fiscais em prol da proteção da saúde (artigos 6º e 196 da Constituição), da ordem econômica (artigo 170 da Constituição) e dos demais direitos constitucionais que notadamente são essenciais à coletividade, sem prejuízo do controle a posteriori, nos termos expostos.

 é advoga e consultor. mestrando em Direito Constitucional pela UFF. Estudou Direito Público Comparado na Universidade de Siena. Pós-Graduado em Direito Público. Foi Professor de Direito Administrativo da UFF. Foi Subprocurador Geral Municipal. Editor do Academia.Edu.

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Edgar Guimarães: Responsabilização dos agentes públicos pela MP 966

Em 13 de maio de 2020, o presidente da República editou a Medida Provisória nº 966/2020 dispondo que os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro em razão da prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública, bem como do combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19.

À primeira vista as normas consubstanciadas em tal medida provisória parecem retratar uma matéria já positivada no artigo 28 da Lei nº 13.655/2018, assim encontrado “o agente público responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em casos de dolo ou erro grosseiro”.

Cabe registrar que o Tribunal de Contas da União, ao julgar certos casos tendo como pano de fundo, exclusivamente, as disposições da LINDB, vem decidindo que o dolo e o erro grosseiro (artigo 28) não afastam a responsabilidade do agente público pela reparação de eventuais danos [1].

De uma análise mais detida das prescrições do novel regramento consubstanciado na MP, notadamente do seu artigo 1º [2], é possível depreender que somente em caso de dolo ou erro grosseiro os agentes públicos serão condenados ao ressarcimento dos danos causados ao erário. A regra, portanto, abrange a responsabilidade civil, que até então era desconsiderada pela Corte de Contas federal, e cuida das balizas da responsabilidade pessoal do agente público, afastando um foco específico de insegurança: a ausência de proteção legal do gestor público honesto que comete erro escusável.

É importante assinalar que a responsabilização nos termos enunciados no parágrafo anterior atinge tão somente as ações ou omissões que estejam relacionadas, direta ou indiretamente, com as medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública e o combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19, ou seja, decisões ou opiniões técnicas desvinculadas dessas finalidades não estão abrangidas pela Medida Provisória 966/2020.

Merece destaque ainda o conceito legal de “erro grosseiro”, assim encontrado: “erro manifesto, evidente e inescusável praticado com culpa grave, caracterizado por ação ou omissão com elevado grau de negligência, imprudência ou imperícia”.

É preciso reconhecer que “erro grosseiro” é uma expressão vaga, indeterminada, possibilitando, com isso, interpretações das mais variadas possíveis. Tome-se como exemplo as manifestações do Tribunal de Contas da União que, ao conceituar esse vocábulo, assim se posicionou: equivale a culpa grave [3], é a conduta do agente público que se distancia daquela que seria esperada do administrador médio, avaliada no caso concreto [4]; é aquele que pode ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal ou que pode ser evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, decorrente de grave inobservância de dever de cuidado [5].

Além da referida conceituação legal, a Medida Provisória prescreve alguns fatores [6] que devem ser considerados para que possa se caracterizar ou não um “erro grosseiro”, contribuindo, assim, para o surgimento de um cenário de certa segurança para o gestor público na tomada de decisões e, também, impedindo aquilo que se denominou de paralisia das canetas, quando se opta pela omissão em razão do temor de uma eventual responsabilização.

Ao contrário do que parece se tratar de mera reedição de matéria já positivada, a medida provisória consagra uma nítida distinção em relação à LINDB, propiciando segurança aos agentes públicos na adoção das medidas que efetivamente lhe pareçam ser as mais adequadas para o enfrentamento da emergência de saúde pública causada pela pandemia da Covid-19, no sentido de que eventuais erros escusáveis não acarretarão a sua responsabilização.

Por fim, caberá ao Tribunal de Contas da União rever o seu entendimento de que os parâmetros de responsabilidade pessoal do artigo 28 da LINDB não abrangem a responsabilidade civil, na medida em que tal posicionamento fragiliza o objetivo deste dispositivo no sentido de conferir uma proteção jurídica ao gestor público honesto.

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[1] Ver Acórdão nº 11.762/18; Acórdão 14.130/19; Acórdão nº 2.768/19; Acórdão 5.547/19. 

[2] “Artigo 1º — Os agentes públicos somente poderão ser responsabilizados nas esferas civil e administrativa se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro pela prática de atos relacionados, direta ou indiretamente, com as medidas de:” (grifos do autor)

[3] Acórdão 1.762/2018 – Segunda Câmara

[4] Acórdão 2.860/2018 – Pleno. Juliana Bonacorsi de Palma, após a análise de 133 acórdãos do TCU, identificou uma pluralidade de comportamentos que atenderiam ao referencial do administrador médio, situação que levou a autora a concluir que “dentre as várias métricas que o TCU se vale para responsabilizar, a do administrador médio é a mais pitoresca”. (PALMA, Juliana Bonacorsi de. Quem é o ‘administrador médio’ do TCU. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/controle-publico/quem-e-o-administrador-medio-do-tcu-22082018.

[5] Acórdão 3.327/2019 – Primeira Câmara.

[6] “Artigo 3º  Na aferição da ocorrência do erro grosseiro, serão considerados: I – os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; II – a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; III – a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência; IV – as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação ou a omissão do agente público; e V – o contexto de incerteza acerca das medidas mais adequadas para enfrentamento da pandemia da covid-19 e das suas consequências, inclusive as econômicas”.

 é advogado, professor em cursos de pós-graduação, consultor jurídico (aposentado) do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, presidente do Instituto Paranaense de Direito Administrativo, árbitro da Câmara de Arbitragem e Mediação da FIEP-PR, conselheiro da OAB-PR, pós-doutor em Direito pela Università del Salento (Itália), doutor e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP.