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Suicídio de preso em delegacia não gera responsabilidade do Estado

Filho de preso que cometeu suicídio em delegacia ajuizou ação por danos morais
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O juízo da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal negou, por unanimidade, provimento ao recurso do autor e manteve a decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública que julgou improcedentes os pedidos de danos morais e materiais por conta de suicídio de preso em uma delegacia de polícia no Distrito Federal.

Na ação, o autor alega que seu pai se envolveu em um acidente de trânsito com um veículo de um policial militar. Ele (pai do autor) estava alcoolizado e foi preso em flagrante. Segundo a inicial, os policiais, mesmo tendo constatado a situação de desespero do pai  — que temia perder o emprego de motorista —, o deixaram sozinho em uma cela.

Os desembargadores da 2ª Turma Cível do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, por unanimidade, negaram provimento ao recurso do autor e mantiveram decisão da 5ª Vara da Fazenda Pública, que julgou improcedentes os pedidos de danos morais e materiais, decorrentes de suicídio de preso em cela de delegacia da polícia do DF, uma vez que configurado fato imprevisível.

Enquanto aguardava o pagamento da fiança, o pai do autor da ação acabou cometendo suicídio. Em razão disso, o filho ajuizou pedido de indenização por falha do estado em garantir a segurança e a integridade física do seu pai enquanto estava preso.

Na 1ª instância, o juízo apontou que, no caso, a responsabilidade do Estado restou afastada em razão da imprevisibilidade do ato extremo de suicídio. “No caso em apreço, conforme as provas colacionadas aos autos, não há previsibilidade de que o preso praticaria o autoextermínio. O evento deve ser previsível para que o Poder Público possa adotar medidas para evitar o dano e, dessa forma, configurar a omissão estatal.”

Ao analisar o recurso, os desembargadores ratificaram a decisão de 1ª instância e mantiveram a sentença. “No caso em apreço, conforme as provas colacionadas aos autos, não há previsibilidade de que o preso praticaria o autoextermínio. O evento deve ser previsível para que o Poder Público possa adotar medidas para evitar o dano e, dessa forma, configurar a omissão estatal.”.

0708913-74.2018.8.07.0018

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Daniel Oliveira: O sigilo das votações e o mito da maioria de votos

É bem verdade que vaidosos advogados e promotores viam seus egos inflados e massageados com votações que resultavam em sete a zero na sala secreta. Isso sem contar o alívio ante a revelação do último voto contrário aos demais, mas favorável à sua tese , evitando um vexame completo das aspirações da parte.

Não se olvide ainda que os oficiais de Justiça restam saudosos quando se recordam dos tempos de abertura de todas as cédulas, afinal, com um pouco de sorte, não era preciso juntar todas elas, misturá-las e separar novamente: elas já estavam naturalmente separadas.

No entanto, todos esses pormenores são circunstanciais diante do desrespeito à norma que se disseminou Brasil afora, donde se decidiu da noite para o dia que os votos somente seriam revelados até o quarto no mesmo sentido.

O presente ensaio não tem a pretensão de transformar o modo como as salas especiais do tribunal do júri brasileiro vêm sendo conduzidas, mas apenas restaurar as origens da norma e seu escopo, bem como alertar que a forma como tem sido adotado o procedimento secreto não necessariamente garante o anonimato da votação advinda do corpo de jurados.

Interpretação histórica a construção da nova norma
A redação do dispositivo normativo que regulamenta a abertura de cédulas no momento da sala especial assim dispõe: “Artigo 489  As decisões do Tribunal do Júri serão tomadas por maioria de votos”.

Uma leitura apressada deste preceito legal induz à equivocada conclusão de que o legislador passou a obrigar que os votos fossem revelados até o aparecimento da quarta resposta na mesma direção, seja ‘sim”, seja “não”.

Entretanto, quando se aprofunda na investigação acerca da interpretação histórica desse dispositivo, o desfecho segue uma via diametralmente oposta.

A construção legislativa do assunto surgiu na Câmara dos Deputados (Projeto de Lei nº 4.203/2001), com o texto que atualmente está em vigor.

Ocorre que, ao ser remetido ao Senado Federal, aquela casa houve por bem especificar ainda mais a redação, passando a exibir o seguinte:

“Artigo 489  As decisões do tribunal do júri serão tomadas sempre por maioria e a resposta coincidente de mais de 3 (três) jurados a qualquer quesito encerra a contagem dos votos referentes a ele.” (grifo do autor)

Ante o retorno do texto à Casa do Povo, o relator do projeto deputado Flávio Dino houve por bem vetar os acréscimos advindos do Senado [1], assim justificando:

“Por fim, rejeito a modificação XXVI, pois a redação dada pela Câmara dos Deputados ao artigo 489 do CPP é mais compatível com a natureza colegiada do julgamento, permitindo o conhecimento da manifestação de todos os julgadores. Ademais a sistemática proposta pelo Senado Federal não encontra semelhança com nenhum outro instituto de nosso sistema jurídico, pois, quando do julgamento por Câmaras ou Turmas, todos os julgadores votam e têm seus votos computados. Finalmente, a experiência prática demonstra que o cômputo da posição de todos os jurados é importante elemento de convicção quando do julgamento de recursos, uma vez que, obviamente, julgamentos por unanimidade tendem a ter uma maior força persuasiva. Diante de tais motivos, rejeito a alteração XXVI com a finalidade de manter o texto aprovado pela Câmara para o artigo 489”.

Portanto, a amputação da emenda, somada à justificativa desse veto, permite afirmar que a redação original não só autoriza como determina a abertura de todas as cédulas, já que as modificações propostas pelo Senado foram rechaçadas no seu retorno à Câmara dos Deputados.

Abertura de quatro cédulas no mesmo sentido
A redação atual do artigo 489 do Código de Processo Penal é idêntica à do antigo artigo 488 do mesmo diploma legal. Diante dessa constatação, pergunta-se: afinal, o que fez com que juízes, no Brasil inteiro, passassem a revelar os votos até que a quarta cédula no mesmo sentido fosse aberta?

A rigor, os autores que iniciaram esse movimento basearam-se no texto proveniente do artigo 483 do Código de Processo Penal, mais especificamente dos §§ 1º e 2º, quando mencionam:

“Artigo 483  Os quesitos serão formulados na seguinte ordem, indagando sobre:

omissis

§ 1º  A resposta negativa de mais de 3 (três) jurados, a qualquer dos quesitos referidos nos incisos I e II do caput deste artigo encerra a votação e implica a absolvição do acusado.

§ 2º  Respondidos afirmativamente por mais de 3 (três) jurados os quesitos relativos aos incisos I e II do caput deste artigo será formulado quesito com a seguinte redação: O jurado absolve o acusado?”.

Nucci [2] argumentou:

A partir de agora, não mais se dá essa sistemática. Submetido à votação um quesito qualquer, quando a resposta afirmativa ou negativa atingir mais de três votos, cessa a votação. Portanto, por exemplo, indagando-se se o réu participou do homicídio da vítima, caso os jurados responda, por quatro votos, ‘não’, estará o acusado absolvido e não mais se apura voto algum (artigo 483, §§ 1º e 2º, CPP )”.

Badaró [3] também conseguiu depreender uma mudança no método de aferição de resultado a partir dos mesmos dispositivos indicados acima:

“Corretamente, a reforma acaba com a proclamação do número de votos ‘sim’ e de votos ‘não’ a cada um dos quesitos. Assim, apurados os votos do primeiro quesito, sobre a materialidade delitiva, se mais de três votos forem ‘não’, estará encerrada a votação, com a absolvição do acusado (CPP, artigo 483, § 1º). Por outro lado, se mais de três votos forem ‘sim’, passa-se à votação do segundo quesito, sobre a autoria (CPP, artigo 483, § 2º). Novamente, caso a maioria vote ‘não’, encerra-se a votação, sendo absolvido o acusado”.

Talvez, no afã de verem suas teses atendidas pela reforma de 2008, os referidos autores e tantos outros conseguiram extrair dos parágrafos mencionados mais do que eles realmente quiseram dizer.

Em verdade, tais dispositivos não se referem ao método de abertura das cédulas, mas, sim e tão-somente –, à ordem da quesitação e sua sequência lógica.

Constar que a votação se encerraria quando obtido mais de três votos no mesmo sentido não significa dizer que apenas quatro serão revelados. Cinco também é mais de três. Assim como seis e até sete. Se fossem apenas quatro, o legislador especificaria “quatro”.

Note-se que o legislador, no parágrafo primeiro, não trata de encerramento de contagem de votos [4], mas encerramento de votação.

Além do mais, perde todo o sentido tal argumentação dos doutrinadores mencionados quando se passa aos próximos quesitos, em que a lei não prevê eventual término de abertura dos votos a partir do terceiro em uma mesma direção.

Desse modo, a doutrina da prática do tribunal do júri viveu seus dias de Lampedusa [5] às avessas, pois, se para o ilustre escritor “algo deve mudar para que tudo continue como está”, aos juristas, algo que continua como estava, na verdade, muito mudou.

Constitucionalidade da abertura de todas as cédulas
Há quem questione a constitucionalidade da abertura de todos os votos, alegando que, em caso de os sete votos convergirem para uma mesma resposta, todos saberão como cada um votou, violando assim o sigilo das votações.

Em verdade, a proteção constitucional ao sigilo das votações diz respeito ao modo como a votação se dará e não especificamente como cada jurado votou.

E, mesmo quando o legislador infraconstitucional previu o sigilo do voto (artigo 487 do Código de Processo Penal [6]), ele o fez destacando um momento preciso (do recolhimento dos votos) no intuito de evitar que a escolha de um jurado venha a interferir na decisão do próximo colega, o que fatalmente ensejaria em afronta à soberania do veredito.

No entanto, uma vez recolhidas todas as cédulas, não há qualquer possibilidade de interferência ou indução de um para com o outro, preservando assim os princípios que norteiam a instituição.

Sobre o assunto, Nucci [7], ao cuidar da discussão acerca da existência de sala secreta e o princípio da publicidade, nos deixa uma lição sobre a diferença entre voto e votação:

E votação não quer dizer ‘voto’, portanto não se pode sustentar que o constituinte desejou assegurar o “voto secreto”, abolindo a sala secreta. Em outras palavras, não é cabível dizer que a Constituição teria garantido o voto secreto dado em público. Deveria ter mencionado, se assim fosse, que, no júri, é assegurado o ‘sigilo do voto’. Não o fazendo, é preciso delinear o significado de votação, que é o ‘ato de votar’. Trata-se, pois, do método e não do objeto. Garantir o sigilo da votação é assegurar a sala secreta, ao contrário de extingui-la. Votação sigilosa quer dizer o ato de votar realizado longe do alcance público”. (grifo nosso)

Instado a se manifestar sobre o assunto, seja em momento anterior à reforma de 2008, seja posteriormente, o Supremo Tribunal Federal sempre procurou relativizar a polêmica, exigindo para eventual nulidade a demonstração de prejuízo.

Em recente decisão [8], o Ministro Marco Aurélio destacou:

“Alega, ainda, o apelante, a nulidade do júri por inobservância da norma insculpida no artigo 483, § 2º, do CPP. Alega que o julgamento deverá ser anulado por inobservância do preceito constitucional do sigilo das votações, uma vez que todas as cédulas de votação foram abertas.

(…)

In casu, muito embora, não tenha cessado a votação quando já registravam 4 votos, não vejo que o recolhimento de todos os votos seja causa de nulidade e, mesmo se admitíssemos como tal, seria relativa e dependeria da demonstração do prejuízo, o que não se verificou.

(…)

Face ao exposto, não vislumbro qualquer irregularidade no fato de todos os votos terem sido apurados e constarem do respectivo termo, muito menos ofensa ao preceito constitucional previsto no artigo 5, XXXVIII”.

Desse modo, a abertura de todos os votos não viola o princípio do sigilo das votações, na medida em que tal preceito constitucional pretende proteger a maneira como acontecerá a votação e não o conteúdo de cada voto.

Análise casuística
Avente-se a hipótese de um julgamento cujas teses defensivas percorrem o campo da desclassificação, seguida da legítima defesa, do privilégio e do decote de duas qualificadoras.

O cauteloso juiz-presidente desvenda tão-somente os quatro primeiros votos no mesmo sentido, a fim de garantir o que ele mesmo entende ser o sigilo das votações.

Ante o resultado de quatro a zero em todos os sete quesitos, o douto julgador imagina que garantiu o anonimato dos votos dos jurados.

Em sua respeitosa sentença, ele faz questão de descrever os quesitos e o escore de cada um deles.

No campo estatístico, é possível que a votação tenha-se dado por quatro a três em todos os quesitos. É possível, mas é muito pouco provável.

Ademais, se o jurado se deixa influenciar pelos resultados que vão exsurgindo da urna [9], após o quarto quesito com votação “unânime”, ele finda por desistir de acolher — por exemplo a causa de diminuição, o que simplesmente reverteria o resultado final do julgamento [10].

Juízes, promotores e defensores mais experientes, ante a apreciação do conjunto do resultado dos diversos quesitos, são capazes de adivinhar se a votação foi apertada, mais tranquila ou mesmo se se deu à unanimidade.

Assim, preserva mais o sigilo das votações o juiz que revela todos os votos na sala especial, mas que, em sua sentença, só se refere à maioria de votos do que aquele que não abre todas as cédulas, mas escancara na leitura da decisão o placar unânime que só não ver quem não quer.

Nesse norte, vê-se quão falacioso é o argumento de que deixar de abrir a partir do quarto voto no mesmo sentido é observar o sigilo das votações exigido na Carta Política.

Considerações finais
Há 12 anos, a lei do procedimento do tribunal do júri era alterada, mas a redação antiga relativa à abertura das cédulas na sala especial restou incólume.

Mesmo assim, doutrinadores e operadores da área passaram a entender, por conta própria, que tudo mudara e propagar todos os votos tornou-se mais que um pecado ilegal e inconstitucional.

Espínola Filho [11] já destacava, em sua obra de processo penal, a relevância do conhecimento acerca a totalidade dos votos dos jurados, quando da aplicação da pena de morte no Brasil imperial:

“Já o artigo 66 da Lei º 261, de 3 de dezembro de 1841, reformando o artigo 332 do Código de Processo Criminal, se contentara com a maioria (dois terços, só para a aplicação da pena de morte, para a qual, antes, era reclamada unanimidade, que, no regime daquele código, não bastava, sendo necessário dois terços”.

Revelar todos os votos não significa apenas cumprir a lei. Expressa, além disso, o respeito a cada um dos jurados, que teve sua escolha entre o “sim” e o “não” devidamente computada e prestigiada.

Em uma comunidade com 140 mil habitantes, revelar até o quarto voto pode representar o descarte da opinião de 60 mil deles.

Em que colegiado isso ocorre? Em câmaras criminais, todos os desembargadores proferem seus votos, mesmo se a maioria já estiver configurada. Nos tribunais superiores, o decano frequentemente vota quando tudo já está decidido e, nem por isso, o público deixa de prestigiar seu entendimento. Até mesmo em eleições, mesmo atingida a quantidade suficiente para sufragar o candidato, os votos continuam sendo computados até seu fim.

Respeito ademais donde também se deriva a transparência aos julgadores no cumprimento de suas missões constitucionais. A eles é preciso prestar contas empós cada recolhimento de urnas do que ali efetivamente foi depositado.

Revelar todas as cédulas também permitirá afastar, no futuro, nulidades decorrentes de alegações de parcialidade de determinado jurado.

Na hipótese de se descobrir, posteriormente à realização da sessão plenária, eventual falta de isenção de determinado jurado, se a abertura fosse completa e a votação tivesse sido elástica, isso por si só não ensejaria nulidade, pois aquele jurado não fora decisivo para o resultado final e, por conseguinte, não se configurou qualquer prejuízo. Tal nulidade, no entanto, torna-se consistente quando não se pode precisar qual fora o escore alcançado efetivamente.

Revelar todos os votos, por fim, simboliza um caráter de legitimidade do resultado final, na medida em que placares elásticos tendem a impingir maior crédito à determinada tese e, ao mesmo tempo, maior reprovabilidade ao caminho opostamente seguido.

Todos os votos da urna devem ser abertos e expostos durante a realização da sala especial. Esse foi o entendimento do Legislativo e, pelo que se observa no curso desse estudo, parece, sim, ser o mais acertado procedimento no intuito de ver-se respeitado o rol de princípios constitucionais, bem como a lógica jurídica aplicada ao procedimento escalonado do tribunal do júri.

 

Referências bibliográficas

BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy, et alii. As Reformas no Processo Penal, São Paulo: RT, 2008.

ESPINOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Anotado – vol. IV, Campinas: Bookseller, 2000.

LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. O Leopardo, São Paulo: Nova Cultural, 2003.

NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais, São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999.

NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri, São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2008.

 


[2] NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri, São Paulo: Revista Editora dos Tribunais, 2008, p. 235.

[3] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy, et alii. As Reformas no Processo Penal, São Paulo: RT, 2008, p. 210/211.

 

[5] LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi di. “O Leopardo”, São Paulo: Nova Cultural, 2003, p. 42.

[6] Artigo 487. Para assegurar o sigilo do voto, o oficial de justiça recolherá em urnas separadas as cédulas correspondentes aos votos e as não utilizadas (grifo do autor).

[7] NUCCI, Guilherme de Souza. Júri: princípios constitucionais, São Paulo: Juarez de Oliveira, 1999, p. 170.

[8] ARE 1165934/MG, Relator: Min. Marco Aurélio, julgamento em 22/11/2018, publicado no DJE do dia 28/11/2018.

[9] O que não deveria ocorrer no mundo ideal, mas é absolutamente inteligível na realidade dos fatos.

[10] O exemplo favorece teses defensivas, mas poderia muito bem dizer respeito ao reconhecimento de qualificadoras, ou seja, qualquer parte pode ser prejudicada com a amputação da coleta total de votos.

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Letícia Colleen: O Estado e o direito à vida

“Os direitos fundamentais, em rigor, não se interpretam: concretizam-se”.

Paulo Bonavides

Assim descreve nossa Constituição o direito à vida:

“Caput do artigo 5º: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes”.

“Artigo 6°  São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho…”.

Conforme traz a Magna Carta, o direito à vida é um direito fundamental, e como a saúde está diretamente ligada à vida, não há qualquer motivo para qualquer cidadão não receber do Estado o custeio do seu tratamento, uma vez que comprovada a existência do quadro clínico devidamente diagnosticado.

Tão logo, entende-se que é dever do Estado praticar ações visando à garantia da saúde de seus súditos, no caso, sendo o município ente federativo, não pode este se livrar do dever de garantir a saúde aos munícipes.

Para não haver dúvida de que é dever do município fornecer tratamento médico para as pessoas carentes, vejamos o que diz a Lei 8.080/90:

“Artigo 9º  A direção do Sistema Único de Saúde (SUS) é única, de acordo com o inciso I do artigo 198 da Constituição Federal, sendo exercida em cada esfera de governo pelos seguintes órgãos:

(…) no âmbito dos municípios, pela respectiva Secretaria de Saúde ou órgão equivalente.………………………

Artigo 18  À direção municipal do Sistema de Saúde (SUS) compete:

planejar, organizar, controlar e avaliar as ações e os serviços de saúde e gerir e executar os serviços públicos de saúde;

(…)

dar execução, no âmbito municipal, à política de insumos e equipamentos para a saúde”.

Ora, se a descentralização do SUS prevê a atuação do município na execução de serviços de saúde, e na política para dar insumos e equipamentos a saúde, não pode haver dúvida de que o fornecimento de tratamentos para pessoas carentes é dever do poder público.

Como se sabe, o tratamento fora do domicílio (TFD) é um mecanismo do SUS para garantir aos pacientes o acesso a serviços assistenciais de complexidade diferenciada em outros municípios, quando esgotados todos os recursos de diagnóstico e terapia no município de origem.

Na esfera federal, a Portaria/SAS/Nº055, de 24 de fevereiro de 1999, do Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Assistência à Saúde, acerca da rotina do tratamento fora do domicílio no SUS, especifica que o auxílio serve para custeio das despesas de transporte, alimentação e estadia pelo Sistema Único de Saúde:

“Artigo 4º  As despesas permitidas pelo TFD são aquelas relativas a TRANSPORTE AÉREO, TERRESTRE E FLUVIAL; DIÁRIAS PARA ALIMENTAÇÃO E PERNOITE PARA PACIENTE E ACOMPANHANTE , devendo ser autorizadas de acordo com a disponibilidade orçamentária do município/estado” (grifos da autora).

Assim, negar tratamento é negar o direito fundamental à saúde e consequentemente à vida, vejamos o entendimento de nossos tribunais:

“EMENTA: Direito Público não especificado. Sistema Único de Saúde. Tratamento especializado fora do domicílio. ILEGALIDADE NO SEU INDEFERIMENTO, NAS PECULIARIDADES DO CASO . Direito à saúde, garantia constitucionalmente assegurada, como dever do Estado. Sentença confirmada. Recurso improvido (apelação cível n° 598308955, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Luiz Ari Azambuja Ramos, julgado em 22/10/1998)” (grifos da autora).

Conforme se falou anteriormente, a matéria ora em debate já se encontra delineada na Constituição Federal em seu artigo 198, § 1º, in verbis:

“O sistema único de saúde será financiado, nos termos do artigo 195, com recursos do orçamento da seguridade social, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de outras fontes.”

Vislumbra-se do texto legal que a referência é feita às três esferas do Poder Executivo para ampliar a responsabilidade, de tal forma que não há que se falar em litisconsórcio ou ilegitimidade passiva de um dos entes públicos, pois o demandante em eventual ação judicial pode requerer o custeio a qualquer um dos entes federados.

Nesse prisma, o texto do artigo 196 da Constituição Federal, ao falar genericamente em Estado, tem cunho geral, preconizando que o custeio do Sistema Único de Saúde se dê por meio de recursos orçamentários da seguridade social comum a todos os entes federados, regionalização e hierarquização nele referidas que devem ser compreendidas sempre como intenção de descentralizar e garantir sua efetividade.

Ademais, é de grande relevância registrar que não existe subordinação, concorrência ou subsidiariedade entre as esferas municipal e estadual, aliás, qualquer uma delas responde autonomamente pela proteção à saúde individual.

No que se atina ao mérito propriamente dito, é cediço que a saúde é um direito público subjetivo indisponível assegurado a todos e consagrado no artigo 196 da Constituição Federal, senão vejamos:

“Artigo 196  A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.

Além do que, é dever da Administração garantir o direito à saúde e a aquisição de medicamentos as pessoas carentes portadoras de doenças, máxime, quando se trata de direito fundamental, qual seja, a vida humana.

É de bom alvitre ressaltar mais uma vez que, a Lei nº 8.080/90, que criou o Sistema Único de Saúde, face às exigências do parágrafo único do artigo 198 da Constituição Federal, reforça a obrigação do Estado no que concerne à política de gestão de aplicação de recursos mínimos para as ações e serviços públicos de saúde.

Destarte, o dispositivo constitucional não pode significar apenas uma norma programática, mas deverá surtir seus efeitos concretos, devendo o Estado implementar políticas públicas capazes de transformar a realidade dos destinatários da norma, garantindo a todos o direito à saúde digna e eficaz.

Diante disso, afigura-se como obrigação do Estado o fornecimento do medicamento necessário ao tratamento de qualquer cidadão.

Destaca-se também entendimento no que diz respeito a reexame necessário:

“EMENTA:. CONSTITUCIONAL. PROCESSUAL CIVIL. APELAÇÃO CÍVEL. PRELIMINARES: SUJEIÇÃO DA SENTENÇA AO REEXAME NECESSÁRIO E CHAMAMENTO DA UNIÃO E MUNICÍPIO AO PROCESSO. TRANSFERÊNCIA PARA O MÉRITO. DOENÇA GRAVE. MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO EM PRESTAR ASSISTÊNCIA À SAÚDE. DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. PRECEDENTES DO TJRN. RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO”.

A saúde é direito de todos e dever do Estado, devendo este garantir, através de políticas sociais e econômicas, a redução dos riscos de doenças e de outros agravos, resguardando o acesso universal e a igualdade de ações e serviços para a promoção, proteção e recuperação dos necessitados.

Os dispositivos da lei orçamentária e da Lei de Responsabilidade Fiscal devem ser interpretados com base no fundamento da dignidade da pessoa humana, previsto no artigo 1º, inciso III, da Constituição da República, especialmente quando se está diante de uma pessoa portadora de doença grave com expressivo e iminente risco à sua própria vida, como o caso em comento. Corroborando este entendimento, temos:

“Conhecimento e improvimento da Apelação Cível. (TJRN  — Apelação Cível nº 2006.004505-7, 3ª Câmara Cível, Relator Desembargador Osvaldo Cruz – j. em 12/12/2006).

DIREITO CONSTITUCIONAL. APELAÇÃO CÍVEL. DIREITO À SAÚDE. FORNECIMENTO, PELO ESTADO, DE MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO. OBRIGAÇÃO DE ORDEM CONSTITUCIONAL. É dever do Estado, enquanto imperativo de ordem constitucional, a plena disponibilidade de meios que resguardem à saúde dos seus súditos, incluindo-se nessa obrigação o pleno e regular fornecimento de medicamentos. Inexistência de afronta ao princípio da separação dos poderes, ou, ainda, a necessidade de previsão orçamentária e sujeição a procedimentos licitatórios. Remessa Necessária e Apelação conhecidas e improvidas (Remessa Necessária e Apelação Cível nº 2004.001652-2, 3ª Câmara Cível, Relator Desembargador Aécio Marinho – j. em 14.06.2005)”.

No que tange à alegação de obediência ao princípio da reserva do possível, entende-se igualmente não merecer acolhida qualquer alegação nesse sentido, eis que se estará diante do conflito de normas referentes à saúde e, principalmente, o direito fundamental à vida, que não pode restar inviabilizado pelas simples argumentação de impossibilidade financeira ou qualquer obstáculo argumentado pelo município.

Inexiste um contexto lógico em que o município possa alegar que não tenha condições de arcar com o pedido da requerente, pois tal comportamento decorreria de nulificação ou aniquilação de direitos fundamentais do ser humano, o que é inaceitável e inadmissível.

A propósito, trago à luz deste juízo a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Vejamos:

“ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL RECURSO ESPECIAL VIOLAÇÃO DE DISPOSITIVOS CONSTITUCIONAIS IMPOSSIBILIDADE DE EXAME – FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS BLOQUEIO DE CONTAS DO ESTADO POSSIBILIDADE.

1. Não cabe a esta Corte o exame da assertiva de violação de dispositivos constitucionais, sob pena de se usurpar a competência atribuída ao STF.

2. Tem prevalecido no STJ o entendimento de que é possível, com amparo no artigo 461, § 5º, do CPC, o bloqueio de verbas públicas para garantir o fornecimento de medicamentos pelo Estado.

3. Embora venha o STF adotando a Teoria da Reserva do Possível em algumas hipóteses, em matéria de preservação dos direitos à vida e à saúde, aquela Corte não aplica tal entendimento, por considerar que ambos são bens máximos e impossíveis de ter sua proteção postergada.

4. Agravo regimental improvido (AgRg no REsp 921590/RS, Ministra Eliana Calmon, j. em 29/8/07).”

A eventual ausência do cumprimento de formalidade burocrática não pode obstaculizar o pedido de fornecimento de medicamentos ou tratamento de saúde, vez que a enfermidade precisa ser combatida com a máxima urgência, já que a autopoiesis não espera. Entendimento consagrado na esteira de orientação do Egrégio Supremo Tribunal Federal:

Recurso ordinário conhecido e provido.

(ROMS 11129/PR. DJ 18.02.2002. PÁG. 00279. Rel. Minº Francisco Peçanha Martins. 2ª Turma. STJ).

EMENTA: Município de Porto Alegre. Pedido de custeio de exame de ressonância magnética que não consta da lista dos exames fornecidos pelo SUS. A saúde é direito de todos e dever do Estado Artigo 196 da Constituição Federal. Norma de Aplicação imediata. Responsabilidade do Poder Público. Os serviços de saúde são de relevância pública e de responsabilidade do Poder Público. Necessidade de preservar-se o bem jurídico maior que está em jogo: a própria vida. Aplicação dos artigos 5, par-1; 6 e 196 da CF. Embargos desacolhidos. (fls. 8).

(Embargos Infringentes 70001297084, Primeiro Grupo de Câmaras Cíveis, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Francisco José Moesch. Julgado em 20/04/01).

EMENTA: Mandado de Segurança. Fornecimento de exames. Aparelhos e medicamentos essenciais e indispensáveis a saúde e vida do impetrante. Responsabilidade do Estado. E dever e responsabilidade do Estado, por força de disposição constitucional e infraconstitucional, o fornecimento de exames, medicamentos e aparelhos essenciais e indispensáveis à saúde e a própria vida do impetrante. Preliminar de ilegitimidade passiva afastada. O direito a saúde, pela nova ordem constitucional foi elevado ao nível dos direitos e garantias fundamentais sendo direito de todos e dever do Estado. Aplicabilidade imediata dos princípios de normas que regem a matéria. Segurança concedida. (fls. 9)

(Mandado de Segurança 597258359, Primeiro Grupo de Câmaras Cíveis. Tribunal de Justiça do RS, Relator: Des. Hernqie Osvaldo Poetea Roenick, Julgado em 17/3/00)“.

Comumente, o cidadão, em casos de dificuldade no fornecimento de medicamento ou tratamento, é vitimado em sérios danos de ordem psíquica pelo tamanho descaso do Estado que pode culminar em morte, o que resulta em possibilidade de gerar indenização.

E, ressalve-se, a importância da indenização vai além do caso concreto, posto que a sentença tem alcance muito elevado, na medida em que traz consequências ao direito e toda sociedade. Por isso, deve haver a correspondente e necessária exacerbação do quantum da indenização tendo em vista a gravidade da ofensa à honra pela perda de um ente querido; os efeitos sancionadores da sentença só produzirão seus efeitos e alcançarão sua finalidade se esse quantum for suficientemente alto a ponto de apenar o réu e assim coibir que outros casos semelhantes aconteçam.

 é advogada, sócia do escritório Rafael Mayer, Lucena e Colleen, assessora jurídica na Autarquia Municipal de Trânsito e Transportes de Ipojuca (PE), pós-graduada em Direito Previdenciário e Seguridade Social pela Escola de Magistratura Trabalhista da 6ª Região e pós-graduanda em Direito Civil e Processo Civil pela Uninassau.

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Roberta Campos: O direito adquirido à pena unificada

Inconformado com a data do término da sua pena de 30 anos constante no atestado de pena, um executado da Comarca de Patrocínio (MG) peticionou ao Juízo da Vara da Execução Criminal local para que a corrigisse, fundamentado no artigo 75, §2º, do CP.

O executado foi condenado a um total de 93 anos de pena que, unificada no início da execução penal, passou para 30 anos. Cumpridos longos anos de cárcere, fugiu depois de 20 anos e praticou um crime, em que foi condenado a um ano de detenção, pena suspensa por determinação judicial. Recapturado, o juízo determinou nova unificação de penas, desprezo do período de pena cumprido e a contagem de mais 30 anos a partir da sua recaptura.

No último dia 27 de abril, o juízo execucional assim decidiu:

“O sentenciado, por meio de sua procuradora, requer a retificação do atestado de pena para que a data do término da pena seja calculada a partir da primeira prisão do sentenciado, observando-se o limite de 30 anos de prisão previsto no artigo 75 do Código Penal (arquivos 126.1 e 131.1).

O Ministério Público pugnou pelo indeferimento do pedido (arquivo 129.1).

Decido.

Razão não assiste ao sentenciado.

Extrai-se dos autos que o sentenciado vinha cumprindo pena por várias condenações quando empreendeu fuga na data de 25/11/2013.

Na data de 13/3/2014, estando foragido, o sentenciado praticou novo crime, cuja pena somada às demais condenações ultrapassa 30 (trinta) anos, conforme guia de arquivo 1.63.

Dispõe o artigo 75, §1º do CP que:

Artigo 75 — O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser superior a 30 (trinta) anos. (Redação anterior à Lei nº 13.964, de 2019)

Por sua vez, o § 2º do mesmo artigo supracitado determina:

§ 2º — Sobrevindo condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido.

Com a condenação do sentenciado pela prática do novo crime posterior ao início da execução (13/03/2014), foi realizada unificação das penas e desprezado para esse fim o período de pena já cumprido, nos termos do artigo supracitado.

Dessa forma, vê-se que o atestado de pena encontra-se correto, sendo estritamente observados e cumpridos os ditames legais aplicáveis à espécie”.

Data venia, parece estar equivocada a interpretação judicial quanto a qual “restante de pena” deve ser somado à nova pena. É o restante da pena unificada ou o restante da pena total?

O tempo de cumprimento das penas privativas de liberdade não pode ser perpétuo na democracia brasileira (artigo 5º, XLVII, “b”, CF/88). É garantia e direito constitucional de todo condenado brasileiro.

O artigo 75 do Código Penal brasileiro, embora anterior à Constituição brasileira democrática, já fixava um limite máximo de cumprimento das penas privativas de liberdade 30 anos, que foi alterado recentemente para 40 anos pelo Pacote Anticrime.

Se nenhum dispositivo penal cuidasse, de forma expressa, do tempo máximo de execução das penas privativas de liberdade, a garantia constitucional poderia ser tangenciada e o condenado acabar cumprindo pena perpétua.

Mesmo que alguém seja condenado a um total de penas superior a esse limite, não estará obrigado a cumprir mais de 40 anos.

Quando alguém é condenado por um ou vários crimes e a pena ou a soma das penas for superior ao limite, o artigo 75, §1º, do CP e o artigo 111 da LEP determinam que, no início da execução, as penas devem ser unificadas para atender ao limite máximo de 40 anos. A unificação das penas deve ser feita também para determinação do regime penitenciário.

Assim, a unificação de penas passou a ser um direito e uma garantia em prol do condenado (RT 612/347; TJSP: RT 603/324, 606/297, 607/306; TACRSP: JTACRIM 87/173, 88/198 e 414, 92/188 e 202).

Com a unificação, o Estado renuncia ao direito de executar o restante das penas impostas.

Uma vez unificada a pena no início da execução penal, a decisão judicial faz coisa julgada e o condenado passa a ter o direito adquirido à pena unificada (artigo 5º, XXXVI, CF/88). A partir daí, a sua pena passa a ser a pena unificada. Se a soma das penas ultrapassava o limite estabelecido pelo artigo 75 do CP, com a unificação, a sua pena passa a ser de 40 anos. E é isso que ele deverá cumprir. A pena excedente ao limite (40 anos) deverá ser descartada, já que não será cumprida.

É possível afirmar, então, que há uma única unificação sobre cada somatório de penas.

Traçando um paralelo, a unificação das penas assemelha-se à novação, instituto do Direito Civil (artigo 360 do CC), que é a extinção de uma obrigação pela formação de outra, destinada a substituí-la. Dessa forma, a novação é o ato jurídico pelo qual se cria uma nova obrigação com o objetivo de, substituindo outra anterior, a extinguir.

A novação permite a formação de outra obrigação e a primitiva relação jurídica será considerada extinta, sendo substituída pela nova.

Similis à unificação das penas.

A unificação autoriza a extinção da pena excedente ao limite de 40 anos encontrada no somatório inicial da execução penal para substituí-la pela pena-limite, qual seja, 40 anos.

Tal qual a novação, a unificação tem um duplo efeito: ora se apresenta como força extintiva, porque faz desaparecer a antiga obrigação penal, ora como energia criadora, por criar uma nova relação obrigacional. Exerce, concomitantemente, uma dupla função: pela sua força extintiva, é ela liberatória, e como força criadora, é obrigatória.

Portanto, o principal efeito da unificação quanto à pena excedente ao limite, o que podemos chamar de pena inicial, é a sua extinção e, por conseguinte, a sua substituição pena pena-limite.

Com a novação há a extinção da obrigação anterior, desaparecendo todos os seus efeitos.

Entretanto, no Brasil, lamentavelmente, a jurisprudência, representada pela Súmula 715 do STF, continua considerando a pena— inicial para fins de concessão dos benefícios da LEP, in verbis: a pena unificada para atender ao limite de trinta anos de cumprimento, determinado pelo artigo 75 do Código Penal, não é considerada para a concessão de outros benefícios, como o livramento condicional ou regime mais favorável de execução.

Caso sobrevenha condenação por fato posterior ao início do cumprimento da pena, far-se-á nova unificação, desprezando-se, para esse fim, o período de pena já cumprido (CF, artigo 75, §2º, do CP).

O §2º do artigo 75 do CP constitui-se uma exceção ao limite máximo de cumprimento de penas privativas de liberdade estabelecido no seu caput.

A família Delmanto, quando discorre sobre o artigo 75, §2º, do CP explica-o com um exemplo: “Condenado a penas que somavam 50 anos, o sentenciado as tem unificadas no limite de trinta anos da pena unificada. Quando já cumprira 15 anos da pena unificada, o preso mata um companheiro de cela e é condenado a mais de 20 anos. Para atender à limitação legal de 30 anos, faz-se nova unificação, somando—se o resto da pena que ainda tinha a cumprir (15 anos) com a nova pena (20 anos), mas sem permitir que o resultado ultrapasse o limite legal”. (Celso Delmanto et.al.. Código Penal Comentado. 6.ed.. Rio de Janeiro:Renovar, 2002, p. 150/151.)

Os Delmantos não deixam de registrar que o sistema favorece os condenados que pratiquem novo crime logo no início da execução da pena unificada. No exemplo já dado, se o crime posterior fosse cometido logo no primeiro ano de execução da pena unificada, o condenado seria beneficiado: teria acrescido ao restante da pena unificada que tinha por cumprir (29 anos) a outra condenação (20 anos), mas sempre se obedecendo, na nova unificação, à limitação de trinta anos.

Cléber Masson explica que:

“Em caso de fuga o condenado do estabelecimento prisional, e desde que não seja praticado nenhum novo crime durante este período, o limite de 30 (trinta) anos deve ser contado a partir do início do cumprimento da pena, e não de sua eventual recaptura. Em outras palavras, a fuga não interrompe a execução da pena privativa de liberdade. Provoca apenas a suspensão. Contudo, durante o período de fuga o condenado praticar um novo delito, em relação ao qual venha a ser condenado, deverá ocorrer nova unificação das penas (restante da pena anterior acrescido do montante correspondente à nova condenação), e o limite de 30 anos terá início na data da recaptura”. (MASSON, Cléber. Código Penal Comentado. 6. ed. — Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: MÉTODO, 2018, p. 416)

Portanto, feita a unificação das penas, o condenado deve cumprir 30 anos de pena. Se durante o cumprimento destes 30 anos, o condenado foge, pratica novo delito e é condenado, deverá ocorrer nova unificação das penas — restante da pena anterior acrescido do montante correspondente à nova condenação. No caso, o restante da pena anterior é o que restava dos 30 anos e não do total unificado de penas, acrescido do montante da nova pena.

Nesse sentido, também Fernando Capez (“Curso de Direito Penal. Parte Geral”. São Paulo: Saraiva, 2017, p.563), Guilherme de Souza Nucci (“Manual de Direito Penal”. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011, p.540), Alberto Silva Franco e outros (“Código Penal e sua interpretação jurisprudencial. Parte geral”. V.1. TI. 6.ed.. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1998, p. 1.218.), Ney Moura Teles (“Direito Penal parte geral”. 2.ed. São Paulo: Atlas, 2006, p.420) e Paulo Queiroz (“Direito Penal parte geral”. 6.ed.. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p.419) e Júlio Fabrini Mirabete (“Código Penal Interpretado”. São Paulo: Atlas, 2004, p.607/611).

Deve-se registrar, por fim, que o artigo 111, parágrafo único, da LEP é expressíssimo: “Sobrevindo condenação no curso da execução, somar-se-á a pena ao restante da que está sendo cumprida, para determinação do regime”. E qual é a pena que está sendo cumprida? A pena unificada.

Parafraseando o professor Lênio Streck, “por que é tão difícil cumprir a letra da lei”?