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Scaff e Dias de Souza: Competência federativa na pandemia

Um dos pontos centrais da controvérsia sanitária em curso é identificar qual o âmbito da competência constitucional de cada ente federativo para legislar acerca desta pandemia. Daí a necessidade de compreender os limites da expressão normas gerais, central a essa análise. Afinal, sendo tão grande o Brasil, e, ao mesmo tempo, tão diverso, pode ocorrer a adoção de diferentes medidas sanitárias entre as cidades de São Paulo e Tanabi, no mesmo estado, e entre estas e a cidade de Bujaru, no Pará. Logo, em respeito à diversidade federativa, é necessário identificar se a matriz federativa constitucional impõe ou não centralização normativa, e em que medida isso ocorre.

A Lei Federal 13.979/20, não se referiu à calamidade, mas cuidou de aspectos que só esse estado justificaria, como, por exemplo, confinamento, quarentena, atividades essenciais que não poderiam cessar ou sofrer restrições e outras. Tudo isso implica tratar-se materialmente de calamidade, afinal assim declarada pelo Decreto Legislativo nº 6/20.

Ao dispor sobre o tema, cujo núcleo é a saúde, a lei federal encontra respaldo no artigo 24, XII CF, em conjunto com o seu parágrafo 1º. A primeira conclusão é que só poderia ela cuidar de normas gerais que seriam de observância obrigatória por estados e municípios. Ficaria preservada a competência dos demais entes sobre assuntos tipicamente regionais ou locais no que não conflitassem com as normas gerais da União, tudo isso enquanto o tema dissesse respeito à proteção e defesa da saúde. A teor do disposto no artigo 23, II, da CF, as questões regionais ou locais ficariam a cargo de estados e municípios os quais têm competência (poder-dever) para cuidar da saúde.

A questão é quem faz o quê quando há medidas que interfiram nos três níveis do governo. Nesse caso, como adiante se verificará, a solução há de ser dada em razão do interesse de cada um. Se nacional, da União; regional, dos estados; e local, dos municípios.

Claro que poderiam os estados legislar amplamente sobre saúde no que respeitasse o interesse regional, desde que não houvesse conflito com as normas gerais da União. O município também poderia regular o que fosse de interesse local.

Nesse sentido, a lei que organiza os serviços de saúde, Lei 8.080/90, refletiu de modo coerente a distribuição constitucional de competências ao determinar que cabe aos municípios gerir e executá-los, pois, nos termos do artigo 30, VII, CF compete-lhes prestá-los diretamente, mediante cooperação técnica e financeira da União e dos estados. Prevalece, aqui, o interesse local. Aos estados compete promover a descentralização dos serviços de saúde, bem como prestar apoio técnico e financeiro aos municípios. A execução direta desses serviços pelos estados é supletiva. E à União compete estabelecer normas gerais e, excepcionalmente, nos casos de calamidade, executar diretamente ações de saúde (artigo 16, parágrafo único, Lei 8.080/90).

Ressalte-se, entretanto, que a questão central aqui tratada diz respeito à calamidade pública. O artigo 21, XVIII, CF dispõe sobre competências materiais/administrativas. No âmbito dessa competência da União para “planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas”, é seu dever estabelecer diretrizes e tomar as providencias necessárias. 

Nesse sentido, em compatibilidade com a competência constitucional, a Lei 8.080/90 determinou que “a União poderá executar ações de vigilância epidemiológica e sanitária em circunstâncias especiais, como na ocorrência de agravos inusitados à saúde, que possam escapar do controle da direção estadual do Sistema Único de Saúde (SUS) ou que representem risco de disseminação nacional” (artigo 16, parágrafo único). Essa disposição confirma o poder/dever da União de atuar em defesa da saúde quando o risco de disseminação ultrapassa as fronteiras municipais e estaduais.

O referido artigo 21, XVIII, CF deve ser lido no contexto das atribuições de meios e finalidades nela descritos em matéria de calamidades, tais como o artigo 167, §3º, segundo o qual é dado à União abrir “crédito extraordinário” para custeio de gastos oriundos “de calamidade” e o artigo 148, I, segundo o qual compete à União “instituir… empréstimos compulsórios (…) para atender a despesas extraordinárias, decorrentes de calamidade pública”. A interpretação sistêmica desses dispositivos da Carta Maior, que não se interpreta em tiras [1], aponta para a competência da União em matéria de calamidade pública nacional.

Daí surge a indagação: e se houver a necessidade de lei para regular esse tema?

Como acima ressaltado, a União deverá dispor sobre normas gerais com base no artigo 24, inciso XII, CF sem prejuízo de, quanto aos demais aspectos da calamidade, editar as leis que se façam necessárias, sobretudo no que tiver alcance nacional. Tudo o que transcender a área de atuação de estados e municípios será de competência da União. Cada estado poderá atuar no que respeite a sua região, desde que isso não interfira nas demais regiões. Se isso ocorrer, a questão será nacional. Da mesma forma, o peculiar interesse local será restrito ao âmbito do município. Se as ações tomadas interferirem em outros municípios, ter-se-á questão regional, de competência de cada estado. Entretanto, tudo o que for relativo ao trato da calamidade pública e que seja de interesse da nação, será de competência legislativa e administrativa da União.

Além disso, a competência para legislar sobre outros aspectos dessa multifacetada crise, tais como relações internacionais, abastecimento, transporte interestadual, moeda, economia nacional, relações de trabalho e outros, remanesce no campo da União, como determina o artigo 22, CF.

Com base nesses dados, parece-nos que a União é quem pode e deve dispor sobre isolamento e quarentena enquanto “normas gerais”. Também é ela quem deve traçar o conteúdo das normas a serem observadas pelos estados e municípios quanto às medidas restritivas possíveis, quando e como adotá-las, assim como disciplinar demais questões de interesse nacional. Reserva-se aos estados e municípios adotar medidas relativas ao que não for de interesse nacional, assim entendido o que produza efeitos em mais de uma região ou em todo o território nacional.

No exercício dessas competências normativas e territoriais, os estados e municípios poderão tomar medidas administrativas, como isolamento ou quarentena, desde que motivem razoavelmente os seus atos atentos ao princípio da proporcionalidade. Com efeito, à luz da teoria dos motivos determinantes, a validade de todo ato administrativo depende da indicação dos motivos de fato (circunstância efetiva que serve de suporte ao ato) e de direito (previsão legal abstrata de uma situação fática que justifica o ato) que autorizem a sua prática. Além da mera indicação desses motivos, deve haver perfeita correlação entre um e outro (subsunção do fato descrito à norma na qual se fundamenta o ato).

A motivação deve ser lógica e atender ao princípio da proporcionalidade, em sua vertente de razoabilidade. Tanto é assim que o atual parágrafo único do artigo 20 da LINDB, assenta que é por meio dela que se “demonstrará a necessidade e a adequação da medida imposta”. Portanto, deve ela ser específica e fundamentada em dados reais para que se saiba quais são as razões de fato que levaram o administrador público a praticar o ato. Afinal, motivação absolutamente genérica equivale a não motivação.

Dizer-se, por exemplo, que o ato (ou a lei) que disponha sobre severas restrições de direitos tem motivação em “questões de saúde” ou de “preservação da vida” não é suficiente. Implica, por sua generalidade, ausência de motivação.  Da mesma forma, não é suficiente afirmar que as decisões têm base na “ciência”, sem expor qual opção foi adotada e por quê.

Também não parece razoável que estados decretem quarentena em todo o seu território sem observar as diferenças existentes entre os seus municípios, pois alguns podem ter número insignificante de doentes e rede de saúde em condição de absorver todos casos, e outros possuir situação oposta, com número elevado de pessoas contaminadas e poucos leitos de hospital. Como tratar igualmente os desiguais?

Além disso, os municípios também poderão cuidar dessas matérias no âmbito da saúde. Porém, se isso afetar questões de âmbito nacional ou mesmo estadual, haverá invasão de competência. Vale dizer, a área de atuação dos prefeitos é restrita ao território do respectivo município e naquilo que diga com a saúde dessa localidade. No que interferir com outras áreas, haverá invasão da competência de outros entes. Da mesma forma que os estados, os municípios deverão motivar seus atos.

Se o prefeito de determinado município tiver informações técnicas e científicas que justifiquem decisões pela abertura ou fechamento de comércio local, essas devem prevalecer, ainda que o governador do estado tenha baixado ato em sentido contrário. Assim, se o governador decretar o chamado lockdown, mas o prefeito de determinada cidade tiver justificativa plausível, razoável, baseada em dados confiáveis no sentido da desnecessidade ou da prejudicialidade do lockdown, ele poderia exercer sua competência e não impor tal restrição no âmbito municipal. O inverso também se aplica. Se o governador determinar a liberação total do comércio, porém o prefeito possuir dados que não a recomendem, ele poderá agir de forma diversa, mantendo as restrições.

Por fim, assinale-se que os atos discricionários da União também deverão ser motivados em atenção à proporcionalidade.

Não há discricionariedade sem escrutínio público no contexto do Estado Democrático de Direito. Todos os atos de agentes públicos em tema da Covid-19 devem ser explicados à sociedade para que esta possa controlá-los. Tratando-se de calamidade pública, exige-se motivação extra qualificada e respeito às competências constitucionais, em especial àquela prevista no artigo 21, XVIII, CF.

Assim, respeitada a imprescindível justificação, entende-se ser plenamente possível a estados e municípios estabelecerem suas próprias normas no que tange ao seu peculiar interesse regional ou local, em busca da preservação da vida e da saúde dos brasileiros que, por um ou outro motivo, habitem em seu território. O alcance normativo das normas federais busca uniformizar procedimentos, porém não tem o poder de invalidar as necessárias considerações da realidade vivida por estas populações, que elegeram seus governantes locais e regionais, para governá-los. Brasília pode muito, mas não pode tudo.

 é Professor Titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) e sócio do Silveira, Athias, Soriano de Melo, Guimarães, Pinheiro & Scaff – Advogados.

 é advogado, fundador dos escritórios Dias de Souza Advogados Associados (SP) e Advocacia Dias de Souza (DF) e especialista e mestre em Direito Tributário pela USP.

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Lewandowski: Agente público não deve ter carta branca

*Artigo originalmente publicado na edição deste domingo (17/5) do jornal O Globo.

Ian Fleming (1908-1964), soldado, jornalista e escritor inglês, imortalizou-se pela criação do personagem James Bond, membro do serviço secreto britânico, codinome 007, protagonista de vários romances e filmes que alcançaram grande sucesso de público e crítica.

De acordo com seu idealizador, Bond integrava um seletíssimo grupo de espiões, dotados de licença para matar, que os desobrigava de qualquer explicação caso tirassem a vida de algum inimigo da Coroa. Assim protegido, 007 executou inúmeros antagonistas, não raro com requintada crueldade e sem perder o indefectível ar blasé.

Ocorre que essa imunidade não existe no mundo real. Nenhuma nação conhecida, seja ela democrática, autoritária ou despótica, concede uma carta branca a seus agentes para eliminar adversários. Nem mesmo na guerra os beligerantes podem agir sem limitações, pois sua conduta é regida por tratados e convenções de natureza humanitária. Restabelecida a paz, os abusos são julgados e punidos por tribunais domésticos ou internacionais.

Não obstante, de uns tempos para cá, pretende-se introduzir no ordenamento jurídico pátrio uma singular excludente de ilicitude para os integrantes das corporações armadas. Uma primeira tentativa, abrigada no chamado “pacote anticrime”, que instituía o perdão para crimes cometidos sob influência de medo, surpresa ou violenta emoção ou, ainda, em face de virtual agressão, foi resolutamente rechaçada pelo Congresso Nacional.

No ano passado, enviou-se ao Parlamento outra propositura assemelhada. Dela consta que o militar ou policial, participante de uma operação para a garantia da lei e da ordem, age em legítima defesa presumida quando repele injusta agressão, presente ou potencial, definida como tentar ou praticar as seguintes condutas: terrorismo; morte ou lesão corporal; restrição à liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça; porte ou utilização ostensiva de arma de fogo.

Consta ainda que o autor só é responsabilizado criminalmente se agir com excesso doloso. Mesmo assim, a pena poderá ser atenuada pelo juiz. A prisão em flagrante passa a ser proibida e a preventiva apenas será decretada em circunstâncias excepcionais. Em todas as situações, a Advocacia-Geral da União fará a defesa dos acusados.

Ora, o Código Penal vigente há várias décadas já contempla, em seu artigo 23, a exclusão de ilicitude. Segundo o dispositivo, inexiste crime quando alguém pratica o fato em estado de necessidade, legítima defesa, estrito cumprimento do dever legal ou no exercício regular de direito. O artigo 25, por sua vez, esclarece que age em legítima defesa quem, fazendo uso moderado dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito próprio ou de outrem.

Esse arcabouço legal, replicado nos artigos 42 e 44 do Código Penal Militar, sempre foi suficiente para que as autoridades incumbidas da segurança pública dessem conta de sua delicada missão, com prudência e serenidade, sem colocar em risco a vida ou integridade física dos cidadãos para cuja proteção foram instituídas.

Há poucos dias, seguindo a mesma lógica das iniciativas precedentes, editou-se uma medida provisória, desta feita para isentar de responsabilidade, nas esferas civil e administrativa, os agentes estatais que praticarem atos relacionados ao enfrentamento dos efeitos sanitários, econômicos ou sociais decorrentes da pandemia desencadeada pela Covid-19, salvo se agirem ou se omitirem com dolo ou erro grosseiro.

Nossos parlamentares certamente saberão avaliar com o esperado discernimento a conveniência e oportunidade de aprovar tais inovações legislativas, atentos não apenas ao delicado momento pelo qual passa o país, mas sobretudo ao dever de salvaguardar os direitos e garantias fundamentais de sua majestade o povo brasileiro.

 é ministro do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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Eugenio Pacelli: Inconstitucionalidade voluntariosa e norma oculta

Sabemos todos a clareza do texto do artigo 37, §6º, da Constituição da República, que prevê a responsabilização do Estado (também) pelos danos causados por seus agentes, garantido o direito de regresso contra o servidor que tenha agido com culpa ou dolo.

Consta na LINDB, com as alterações da Lei 12.376/10 e, sobretudo, da de nº 13.655/18, que “na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados” (artigo 22, caput), e que o agente público “responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro (artigo 28).

Eis que chega a Medida Provisória 966, de 13 de maio último, para dispor sobre a responsabilização de agentes públicos por ação ou omissão em atos relacionados com a pandemia da Covid-19.

Dando de barato a viabilidade do instrumento normativo escolhido, dado que não conseguimos atinar para a urgência (artigo 62, CF) de modificação das regras vigentes (dolo ou culpa), cabem algumas considerações sobre a tal MP, sobre a norma oculta ou misturada que veio dali, e, segundo nos parece, carregada de inconstitucionalidade.

Anote-se, para logo, que o critério de cronologia na vigência de normas legais não permitiria a invalidação de sanções por atos praticados antes da nova regra, na medida em que não se estaria falando em abolitio criminis e tampouco de Direito Penal, quando, por muito mais razões, seria incabível a edição de MP.

Se estiver correta essa premissa, a aludida medida provisória traz também uma confissão de responsabilidade anterior, por atos manifestamente contrários às soluções técnicas defendidas pelo Ministério da Saúde e pela Organização Mundial da Saúde, no que toca à recomendação da política de distanciamento social como prevenção de expansão da Covid-19. Isso a despeito e tudo bem considerado dos efeitos obviamente deletérios na economia mundial.

Estamos a dizer, então, da canhestra (passe o eufemismo) tentativa de legitimar, como excludente de responsabilidade administrativa e civil, ações ou omissões que se declarem fundadas no combate aos efeitos econômicos e sociais decorrentes da pandemia da Covid-19 (artigo 1º, II, MP 966).

A ver com olhos a tal norma o resultado seria: tudo que eu fizer motivado pela preservação da economia, incluindo a abertura ampla e irrestrita de todos os estabelecimentos de produção e de consumo, estaria excluído do dolo ou do erro grosseiro.

Ocorre que o Brasil adota a política pública do distanciamento social, independentemente de saber os riscos à economia. Essa é a decisão técnica, que sequer poderia ser questionada como grosseiramente equivocada, por se encontrar atrelada ao governo federal e se encontrar na mesma linha decisória de quase todos os países do mundo, além da OMS.

Aquele administrador ou membro do Executivo que descumpre as normas e diretrizes do Ministério da Saúde atua com dolo. Se o particular abrir seu comércio, em favor da preservação da economia, caberá discutir o âmbito de sua responsabilização pelo poder público. Mas não é disso que estamos a tratar.

O chefe do Executivo confessa, então, que todos os atos de combate aos efeitos sociais e econômicos praticados por agentes públicos, antes da MP 966, eram (e ainda são) manifestamente ilegais! E passíveis de responsabilização!

Mas a tal MP tem outro propósito e não teme as respostas da lei e do Direito. Está se preparando para outra política pública na Saúde.

Ao acabar esse texto, a imprensa informa o pedido de demissão do ministro da Saúde. Essa, a pedido mesmo.

 é mestre e doutor em Direito. Advogado, ex-procurador regional da República no Distrito Federal. Relator-Geral da Comissão de Anteprojeto do Novo Código de Processo Penal, instituída pelo Senado da República.