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Filosofia e limites da IA na interpretação jurídica (parte II)

Em coluna anterior, destaquei que era preciso aprofundar as reflexões em torno da utilização da Inteligência Artificial (IA) como intérprete do Direito e influencer nas decisões judiciais.

Na ocasião, ficou demonstrada a distinção entre inteligência de dados e consciência hermenêutica por meio das explicações acerca da diferença na abrangência e nível de relacionamento com a linguagem e do logos (pensar e falar) pelas IAs e pelos humanos.

Naquela oportunidade, apontei que o modelo operativo da IA se restringe à dimensão lógico-formal (inteligência de dados) e não trabalha com a chamada consciência hermenêutica e sua racionalidade existencial, o logos hermenêutico.

Em razão dessa limitação, as IAs não alcançam a necessária dimensão do conteúdo material que sustenta o sentido das palavras, o que as tornam insuficientes para a correta interpretação de fatos e sua adequação às hipóteses normativas.

Levantei também o problema da ausência de transparência e de parâmetros de controle nas decisões algorítmicas, o que pode levar a injustiças e discriminações sem a devida motivação.

Sem prejuízo de outros vieses de análise, penso que essas constatações são pontos de partida fundamentais para reflexões filosóficas e políticas mais amplas acerca das possibilidades e limites das IAs em sua interação com a vida social.

Nessa perspectiva, o presente texto investiga o processo humano de formação dos significantes que dão significado às palavras e formam a pré-estrutura de compreensão constitutiva da consciência hermenêutica e do logos hermenêutico que a sustenta.

A elucidação desse processo torna mais visível e complementa a tese esboçada no artigo antecedente de que o logos hermenêutico é limite à interpretação jurídica e à tomada de decisão judicial pelas IAs, conforme será retomado ao final.

Um bom caminho para cumprir essa tarefa vem da explicação aristotélica acerca do processo de formação do conhecimento humano, em especial no que diz respeito à aquisição dos conceitos comuns que possibilitam o pensar e à constituição de premissas para o conhecimento científico.

Diferente de Platão, Aristóteles não faz uma divisão imediata entre o mundo inteligível e o mundo sensível. Ao invés, ele apresenta boas pistas para uma teoria cognitiva quando descreve a formação do conhecimento científico linearmente a partir da dimensão existencial própria de cada sujeito que vive, percebe e sente.

Esse processo se inicia no universo da sensação e evolui para a cognição de acordo com a seguinte linha esquemática:

Sensação (aisthesis) ® memória (mnemósine) ® experiência (empeiria) ® arte (téchne)® teoria/ciência (episteme).

Começando pelas primeiras impressões no nível da sensação (aisthesis), o humano nasce com capacidades sensoriais que vão formando imagens vivas (visuais, olfativas, táteis, gustativas e auditivas), de modo a adquirir percepções do mundo. Portanto, o mundo nos aparece enquanto impressão perceptiva.

Essas impressões perceptivas vão construindo um universo linguístico assentado no binômio “significado/sentido percebido”, formado por significações individuais e comuns (quem vive, vive no mundo histórico pré-existente e vive com os outros).

Esse conteúdo é vivo, multifacetado nas diversas dimensões perceptivas: podem contemplar uma imagem, um som, uma textura, um cheiro e um gosto. Podem ser captados em conjunto ou isoladamente, a depender da experiência sensorial que a pessoa vive quando entra em contato com algo no mundo (uma comida, a chegada em uma nova cidade, encontro com uma pessoa desconhecida, etc).

Um exemplo simples: quando uma pessoa come uma pizza margherita pela primeira vez, ela absorve praticamente todas as sensações dos cinco sentidos. Ao mesmo tempo em que se alimenta, ela associa esse conjunto de sensações com a expressão “pizza margherita”.

Esse conjunto de sensações associado a um conceito linguístico é memorizado gerando impressões positivas e negativas que ficam guardadas (mnemósine ).

A reunião dessas memórias em feixes cognitivos de sentido configura a experiência (empeiria), correlacionando e aproximando acontecimentos linguísticos (p. ex. ao pensar em pizza margherita, a pessoa pode relembrar um momento com um amor antigo) e a capacidade de reviver essas memórias em nível exclusivamente cognitivo.

Desta feita, ao ouvir as palavras “pizza margherita” a pessoa revive e experiencia uma série de sensações memorizadas, desde o cheiro, o gosto, a imagem e o que mais estiver relacionado a elas no seu universo de compreensão (uma cidade, alguém, um evento, etc). Pode-se até mesmo ficar com “água na boca” e com vontade de comer pizza margherita.

Essa aptidão de invocar palavras e expressões linguísticas e junto a elas o significante que lhe confere sentido é a marca fundamental do processo constitutivo do falar e do pensar humanos.

Tal capacidade nunca se restringe à racionalidade lógica. Antes, possui base biológica e existencial.

Ao viver o ser humano vai acumulando experiências e, a partir delas, forma a sua estrutura linguística de pré-compreensão, de onde se originam as opiniões (doxa).

Algumas experiências acumuladas são comuns isto é, compartilhadas entre todos os falantes de uma comunidade. Outras são experiências particulares, entendidas como acontecimentos exclusivos à vida de cada um, ou seja, acontecimentos idiossincráticos.

Daí a opinião é a ideia prévia sobre algo, constituída por concepções comuns e individuais.

Para que seja possível a passagem da opinião para uma premissa verdadeira é necessário um processo tópico-dialético (technè), na qual opiniões pertinentes, que possam ser aceitas pelos demais falantes (chamadas premissas endòxa) são contrapostas umas às outras, em um debate intersubjetivo.

Nesse debate, o objetivo é depurar as experiências particulares, deixando remanescer apenas as experiências comuns, as quais se tornam premissas tidas como verdadeiras e servem de ponto de partida para o conhecimento teórico-científico (episteme) e sua metodologia lógico-dedutiva.

Desse trilhar pode-se concluir que a noção de verdade torna-se uma experiência linguística e existencial.

Aristóteles não chegou até aí. Ainda que haja vozes dissonantes, comumente o filósofo de Estagira é associado ao essencialismo linguístico e à semântica realista, que defendem a possibilidade de a linguagem espelhar a realidade, bem como a concepção clássica de que a verdade é a adequação entre o intelecto e o real.

No entanto, pode-se dizer que ele chegou à antessala da filosofia da linguagem e foi fundamental para o desenvolvimento da hermenêutica filosófica.

Especialmente quando se reflete sobre esse processo de formação do conhecimento, constata-se a dimensão da ideia de logos enquanto pensar e falar, o que vai ser determinante para a compreensão posterior da consciência de mundo em sentido hermenêutico.

A capacidade humana de sentir, memorizar e organizar essas memórias em um feixe de significação para revivê-las, forma um conjunto de significantes entrelaçados que permite a experiência linguística e revela sua indissociabilidade com o pensar e raciocinar humano.

Ora, quem raciocina, opera com uma série de significantes absorvidos durante a existência, organizando-os de maneira lógica e outras vezes, caótica.

Considerando, na linha de Ferdinand de Saussure, que o signo é formado por um conceito (significado) e seu sentido material (significante), basta pensar em um recém-nascido que aprendeu o signo “mãe” e o signo “pai” e consegue, a partir da conexão entre eles, compreender o signo “casal”.

Ao viver, os signos vão se multiplicando e se conectando, formando redes estruturais de linguagem.

Essas redes de estruturas linguísticas adquiridas durante a vida constitui a base do universo de pré-compreensão do intérprete e trabalha com uma lógica própria, o chamado logos hermenêutico.

Esse logos é oriundo da experiência comum de viver em um mundo imerso em sua historicidade e dotado de valores temporalmente/existencialmente comuns e objetivos que são apreendidos pelo sujeito humano, permitindo a compreensão e, assim, a realização de processos comunicativos eficazes.

E é justamente essa estrutura de pré-compreensão que é inacessível para a lógica formal pela qual operam as IAs.

Trata-se de uma outra racionalidade. O logos hermenêutico trabalha no nível do conteúdo e da significação material ao que é dito, enquanto que a racionalidade formal organiza a superfície de enunciados linguísticos, estabelecendo conexões lógicas e probabilísticas.

Daí porque não se confunde a inteligência de dados com a consciência hermenêutica.

Ademais, como já mencionado no artigo anterior, devem ser consideradas as interações biológicas e as incursões do inconsciente na antecipação de sentido, conforme bem demonstra a psicanálise.

Com efeito, é possível constatar também uma espécie de relação concorrencial entre a antecipação de sentido hermenêutica e a antecipação que resulta do filtro desejante operado pelo inconsciente nos processos interpretativos e decisórios.

Por mais que se supere preconceitos negativos e se possa falar em human algorithm design à luz de profundos estudos de ciência da computação e do entendimento da ideia de algoritmo em sentido amplo, como uma tecnologia a serviço dos humanos desde a Idade da Pedra, seus padrões de apoio na interpretação do direito e na decisão judicial são equivalentes às possibilidades da lógica jurídica.

E, tal qual a lógica jurídica, são importantes, mas insuficientes.

Uma vez compreendida a base de formação da consciência hermenêutica e as mediações da filosofia da linguagem, apostas de que o raciocínio do sapiens opera do mesmo modo lógico-algorítmico que as IAs, só que em escala mais profunda e sofisticada, são muito arriscadas.

No atual estado da arte, é visível que as IAs não possuem todas as condições de interpretação que o humano e isso faz com que, a persistir a mesma lógica de utilização dessa tecnologia no Judiciário, não é adequado que se tornem os principais intérpretes dos fatos, do direito e da imputação das hipóteses normativas ao caso concreto.

A interpretação e a decisão jurídica demandam uma cognição holística e integral, tomada em sua devida complexidade, sob pena de permitir o cometimento de graves injustiças no julgamento dos processos judiciais e de violar alguns dos direitos fundamentais mais importantes no Estado de Direito: o devido processo legal e o do juiz natural.


MARCONDES, Danilo. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos a Wittgenstein. 7 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002. p. 80.

Para aprofundamento, conferir: GADAMER, Hans-Georg. Homem e linguagem. Verdade e Método II: Complementos e índice. Trad. Enio Paulo Giachini. Petrópolis: Vozes; Universidade São Francisco, 2002. (col. Pensamento humano).

SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. 25 ed. , trad. Antonio Chelini et all. São Paulo: Cultrix, 2003. p. 80 e ss.

MARRAFON, Marco Aurélio. O caráter complexo da decisão em matéria constitucional: discursos sobre a verdade, radicalização hermenêutica e fundação ética na práxis jurisdicional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 117 e ss.

CHRISTIAN, Brian. GRIFFITHS, Tom. Algorithms to live by: the computer science of human decisions. New York: Picador, 2016.

 é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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Opinião: Debate qualificado sobre custos da Justiça

Recorrentemente, o Poder Judiciário brasileiro é posicionado, em contraste ao de outros países, como excessivamente custoso à sociedade. Dentre os principais elementos utilizados para endossar essa posição estão tanto as despesas totais do Poder em relação ao PIB quanto o valor dos subsídios dos Magistrados brasileiros.

Com o intuito de aprofundar o debate envolvendo os custos com o Poder Judiciário brasileiro e discutir não apenas essas variáveis como também outras capazes de contribuir para melhor compreensão do tema, serão discutidos alguns aspectos envolvendo custos e demais peculiaridades desse Poder.

Espera-se trazer à tona novos elementos que contribuam para que a discussão não se limite aos números constantemente reavivados envolvendo despesa total em relação ao PIB e valor absoluto de subsídios da Magistratura — os quais são importantes, mas insuficientes para se compreender todas as questões que orbitam o Poder Judiciário brasileiro e explicam, em grande medida, o seu custo para a sociedade.

O custo do Poder Judiciário
II.1 Despesas do Poder Judiciário em relação ao PIB
Recentemente, a imprensa repercutiu a informação de que o Poder Judiciário brasileiro representaria um custo equivalente a 2% do PIB quando, em contraste, os países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) teriam esse valor na média de 0,5%[1]. Outros valores recorrentemente utilizados são os de um trabalho envolvendo dados de 2014[2], em que se atingiu o patamar de 1,3% do PIB para as despesas do Judiciário brasileiro.

Trata-se, entretanto, de uma reflexão que coliga elementos cuja associação é insuficiente para uma análise verdadeiramente qualificada do custo do Poder Judiciário brasileiro para a sociedade.

Essa insuficiência se dá na medida em que se estabelece, a partir da associação do custo do Poder Judiciário a uma variável de mensuração da atividade econômica, uma correlação que induz ao pensamento equivocado de que o Poder deve ser limitado a essa atividade. E que, portanto, seus custos deveriam resguardar alguma medida de proporcionalidade em relação à produção econômica – algo que é no mínimo bastante questionável.

A avaliação do custo do Poder Judiciário, mais do que ter em vista o elemento produtivo/econômico, precisa levar em consideração o elemento humano/cidadão. Este deve ser o parâmetro fundamental para avaliação quanto ao seu custo para a sociedade.

Uma alternativa viável, capaz de associar os custos do Judiciário a uma variável que melhor expresse o cidadão como detentor de direitos, é aquela que correlaciona esses custos ao quantitativo absoluto da população sobre a qual se exerce a jurisdição. Ou seja, uma relação de custo per capita do Poder Judiciário.

Afastam-se, dessa forma, distorções causadas pelo desenvolvimento econômico, que posiciona alguns países em vantagem aos demais na capacidade de agregar valor aos seus produtos e serviços. Diante dessa realidade, quanto maior a riqueza que essa sociedade produz, menor será a dimensão do custo dessa Justiça. E quanto menos riqueza produzir — caso dos países em desenvolvimento, como o Brasil — maiores serão as dimensões daquele custo.

Há ainda um agravante: a Justiça, como elemento a manter coeso o tecido social, é necessária quanto maiores os conflitos existentes nessa sociedade – caso corrente dos países em desenvolvimento. Mais ainda o caso brasileiro, em que se convive com a realidade de ser um dos países mais desiguais do mundo.

De acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o Brasil é o sétimo país mais desigual do mundo[3] e tem a segunda maior concentração de renda do planeta[4]. Há, assim, um contexto de desigualdade e assimetrias na sociedade brasileira que se espraia na existência de conflitos de toda ordem, notadamente no âmbito trabalhista, previdenciário, econômico, criminal e consumerista. Conflitos os quais chegam diariamente para o escrutínio do Poder Judiciário, que não pode se esquivar de resolvê-los. Necessário, portanto, que se estabeleça um comparativo a envolver a despesa per capita com o Poder Judiciário, e não essa despesa como fração do PIB.

Entretanto, mesmo que se empunhe esse indicador que correlaciona as despesas do Judiciário como fração do PIB, é preciso não perder de vista que essa forma de avaliação vem demonstrando uma evolução positiva com o suceder dos anos para o caso brasileiro.

A partir dos dados disponibilizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) quanto ao Produto Interno Bruto[5] e aqueles disponibilizados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) envolvendo a despesa total do Poder Judiciário[6], verifica-se que, ano após ano, o custo do Poder em relação ao PIB vem caindo paulatinamente: de 1,93% do PIB em 2009 para 1,37% do PIB em 2018, em uma queda média de 0,06 pontos percentuais a cada ano.

Figura 1 – Despesas totais do Poder Judiciário brasileiro em relação ao Produto Interno Bruto, em % (dados do IBGE e do CNJ)

Mesmo com os problemas apontados para essa variável, sua análise para a série histórica atesta que o Judiciário brasileiro vem apresentando custos cada vez menores quando vistos como fração do PIB nacional.

II.2 Despesas Per Capita do Sistema de Justiça
A visualização do custo do Poder Judiciário per capita é uma forma mais qualificadas de analisar o custo desse Poder. Trata-se, aliás, de uma mensuração usada pela Comissão Europeia para Eficiência da Justiça (CEPEJ)[7] quando a intenção é estabelecer um comparativo entre os países. Os dados da CEPEJ encampam todo o Sistema de Justiça, envolvendo assim Poder Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública.

O comparativo do Brasil com outros países, sobretudo da União Europeia, feito a partir de dados da CEPEJ[8] e do CNJ[9] para o ano de 2016 (ano em que há disponibilidade dos dados), indica que o valor do Brasil[10] (150,1 euros/habitante) está muito próximo aos valores da Alemanha (121,9 euros/habitante), Países Baixos (119,2 euros/habitante) e Suécia (118,6 euros/habitante). E mesmo inferior a países como Suíça (214,8 euros/habitante) e Luxemburgo (157,3 euros/habitante).

O Conselho Nacional de Justiça (CNJ)[11] também traz informações quanto à evolução do custo per capita (contudo, especificamente do Poder Judiciário): desde 2012, os valores têm estado estáveis na faixa entre R$ 400,00 e R$ 455,00 (Figura 2).

Figura 2 – Gastos per capita com o Poder Judiciário brasileiro abrangendo despesas totais, despesas totais excetuando inativos e pensionistas e despesas apenas com inativos e pensionistas (CNJ)

Verifica-se, assim, que o Sistema de Justiça brasileiro apresenta uma relação próxima a de países como Alemanha, Países Baixos e Suécia. E que, especificamente para o Poder Judiciário, os valores de gasto per capita estão há pelo menos quatro anos estabilizados – havendo tendência de queda.

III. Elementos para um discussão qualificada
III.1 Volume de processos: a sobrecarga dos tribunais brasileiros
Um primeiro aspecto a ser refletido quando se deseja avaliar os custos do Poder Judiciário brasileiro envolve a análise de casos novos que são propostos todos os anos para seu escrutínio. Isso porque esse volume, evidentemente, é o que determinará a necessidade de nomeação de mais Magistrados e servidores para a prestação jurisdicional – sem perder de vista que os dispêndios em termos de recursos humanos correspondem a 90,8% das despesas totais do Poder[12].

Para melhor compreensão dessa sobrecarga, um comparativo com a situação de outros Sistemas de Justiça é interessante. Para tanto, com o fito de tornar a comparação mais acertada (comparação esta já difícil em razão dos países terem grandes diferenças quanto à forma de concatenação de sua ordem legal), opta-se pela análise de casos novos em termos de ações decorrentes das relações de trabalho — dado disponível de maneira mais homogênea entre os países analisados e, portanto, com uma maior adequação a serem comparados entre si.

Lembrando que as demandas trabalhistas corresponderam a cerca de 21% do número total de casos novos que ingressaram no Poder Judiciário brasileiro em 2019[13]. Representam, assim, a matéria com maior acervo de processos nesse Poder.

A avaliação envolveu três países europeus com legislação trabalhista considerada protetiva e com uma atuação sindical avaliada como bastante intensa: França[14], Alemanha[15] e Espanha[16]. São países também populosos, com economias bem diversificadas, à semelhança da situação brasileira. A razão encontrada entre número de casos novos e a população de cada país atesta a sobrecarga brasileira: os magistrados do Brasil têm aproximadamente de duas a dez vezes mais casos novos por ano do que seus pares (Tabela 1) .

Tabela 1 – Casos novos em matéria trabalhista em países selecionados e sua relação por cem mil habitantes

Trata-se de um nível de demanda que inevitavelmente exige a ampliação de todo o aparato institucional (mais gastos com infraestrutura, Magistrados, servidores e recursos materiais), o qual acarretará custos maiores para toda a sociedade.

Outra dimensão importante nesse debate envolvendo o excesso de judicialização diz respeito ao modelo vigente no Brasil de pagamento de custas e emolumentos e a forma como esse tipo de disposição pode induzir a um maior uso do Poder Judiciário — em detrimento de métodos autocompositivos.

Para além disso, o volume arrecadado com o pagamento de custas judiciais e emolumentos, necessários para a consecução da prestação jurisdicional e dos serviços que lhe são inerentes e conexos, representa arrecadação capaz de reduzir o dispêndio do contribuinte com o Poder, direcionando-o um pouco mais para o usuário — aquele que realmente faz uso da máquina jurisdicional.

No Brasil, a arrecadação com custas judiciais e emolumentos em relação à despesa total da Justiça, nos últimos dez anos, oscilou entre 10 e 13% de acordo com o CNJ[17], sem uma tendência definida (Figura 3).

Figura 3 -Arrecadação com custas judiciais e emolumentos em relação à despesa total do Poder Judiciário, em % (CNJ)

Os dados do Cepej[18] disponíveis para outros países, relativos ao ano de 2016 (Figura 4), ajudam a compreender melhor a situação brasileira – e mesmo refletir se existiria espaço para mudanças. Esses dados, de quando o Brasil apresentava uma arrecadação com custas e emolumentos em relação à despesa total da Justiça no patamar de 11% (dados de 2016), situam o Brasil em posição inferior à média (19%) e mediana (14%) europeias.

Figura 4 – Custas em relação à despesa total do Poder Judiciário, em 2016 (CEPEJ e CNJ)

A comparação da arrecadação brasileira com aquela de países selecionados, em matéria de custas judiciais e emolumentos, atesta sua similitude ao valor amealhado por países como Rússia (12%) e Itália (11%), mas ainda distante dos valores arrecadados pela Alemanha (43%), Portugal (25%) e Inglaterra (19%).

Dados levantados pelo CNJ em 2019[19] a partir de simulação para obtenção do valor de custas judiciais a serem pagas para causas com valores distintos nos diversos Tribunais do país atestaram duas circunstâncias: a grande variabilidade no valor de custas, seja dentro de um mesmo Tribunal, seja entre Tribunais distintos; e o valor irrisório cobrado em diversos Tribunais do país.

Quanto a essa percepção de grande variabilidade, percebe-se que, para um valor de causa de R$ 20.000,00, as custas entre os Tribunais oscilam mais de 1.900%, de R$ 100,00 (Justiça Federal) a R$ 2.001,52 (TJ do Piauí). Para um valor de causa de R$ 1.000.000,00, as custas entre os tribunais oscilam mais de 8.100%, de R$ 372,22 (STJ) a R$ R$ 30.718,00 (TJ do Rio Grande do Sul). Dentro de um mesmo Tribunal, há casos em que não há qualquer oscilação (STF e STJ), ou mesmo em que essa oscilação é irrisória (TJDFT, de 25%) ou profunda (7.100% no TJ do Tocantins e 3.170% no TJ do Rio Grande do Sul).

O caso da Justiça Federal é emblemático: 12,85% dos casos novos no país em 2019 foram peticionados perante essa Justiça. Nela, a cobrança das custas processuais tanto iniciais quanto recursais é feita com base no valor da causa, definida em patamares máximos e mínimos. Excetuada a Justiça do Trabalho, em que o valor mínimo é igual a zero, os valores das custas recursais mínimas na Justiça Federal (R$ 5,32), incluindo depósitos, são os menores do país[20].

Há, assim, grande discrepância em relação ao valor de custas judiciais quando comparados os diversos tribunais do país. Esse potencial de incremento arrecadatório pode ser ilustrado no caso emblemático envolvendo o setor bancário.

Estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) de 2012[21] trouxe, para o ano de 2011, a lista dos maiores litigantes nas Justiças Estadual, Federal e do Trabalho. Os bancos ocupavam a primeira posição na Justiça Estadual, a segunda posição na Justiça Federal e a terceira posição na Justiça do Trabalho. Contabilizando-se esses três ramos do Poder Judiciário, os bancos ocupavam a posição de segundo maior litigante nacional, perdendo tão somente para o Setor Público Federal.

Constituindo-se o setor bancário como segundo maior litigante nacional, e demarcando-se a lucratividade do setor, que em 2019 alcançou R$ 81,51 bilhões apenas com os quatro maiores bancos do país (com uma média anual, de 2010 a 2018, situada em 50,37 bilhões)[22], seria plausível cogitar um incremento em termos de custas judiciais para setores específicos da sociedade que demandam mais a jurisdição.

Um formato de transferir aos usuários do Poder Judiciário uma parte maior dos custos com o Poder, hoje em sua quase integralidade posto ao encargo do contribuinte. A reflexão acerca da reformulação do pagamento de custas judiciais e emolumentos, atraindo-o para uma sistemática capaz de proporcionar aos Tribunais do país maiores fonte de receitas, perfilha-se assim tanto interessante quanto necessária.

Ainda mais em razão dos efeitos que essa medida pode proporcionar em termos de redução dos níveis de judicialização: na medida em que o acesso à Justiça se torna mais caro àqueles que podem, de fato, pagar, incentiva-se a busca pelos métodos autocompositivos (como mediação e conciliação). Algo que repercutirá em uma redução de novos casos – e, assim, na redução de custos do próprio Poder Judiciário brasileiro.

III.2 Qualidade das leis: o “cipoal” normativo em matéria tributária
A qualidade e a precisão da legislação produzida pelo Congresso Nacional interfere profundamente na quantidade de ações judiciais existentes no país – e, portanto, na posterior necessidade de alocação de recursos materiais, financeiros e humanos para que o Poder Judiciário consiga absorver esse volume de demandas e fazer a devida prestação jurisdicional.

Ao tempo que ao Poder Legislativo é franqueado não legislar, ao Poder Judiciário é vedado não decidir. Ou seja, enquanto o Poder Legislativo não tem obrigação quanto à produção normativa ou mesmo quanto à sua qualidade, o Poder Judiciário tem o dever de prestar a jurisdição e fazê-la da melhor maneira possível – isso a partir do arcabouço legal de que dispõe.

Exemplo emblemático de uma matéria cuja produção normativa revela esse desafio posto sob responsabilidade do Sistema de Justiça – e que confronta qualquer critério de razoabilidade, conflagrando contribuintes e Estado a um grande volume em termos de litigância – é o direito tributário.

No bojo dos debates envolvendo a prometida reforma tributária, o Presidente da Câmara dos Deputados, explicitando sua posição favorável a uma simplificação da legislação tributária, chegou a publicar em suas redes sociais[23]:

Brasil editou 363 mil normas tributárias desde 1988! Sim, você não leu errado. Nessa barafunda tributária, entre siglas e centenas de milhares de normas, todos perdem.

Ao comentar os problemas que a complexidade da legislação tributária proporciona em termos de judicialização, o Ministro do STJ, João Otávio de Noronha[24], destaca que essa característica de nosso arcabouço normativo em matéria tributária — agravado pelo fato de que a própria Secretaria de Receita Federal tem autonomia para edição de normas que interpretam a legislação tributária — eleva o nível de litigiosidade e provoca uma judicialização excessiva no país.

Ao se analisar o número de casos novos em matéria tributária na Justiça Estadual, na Justiça Federal e no Superior Tribunal de Justiça[25], percebe-se a dimensão das ações tratando de matéria tributária e a carga que isso representa para o desempenho dos Tribunais. Entre 2014 e 2019, casos novos tratando de matéria tributária abrangeram entre 10,42% e 12,72% do volume total de casos novos nesses Tribunais (Figura 6).

Figura 6 – Fração de casos novos em matéria tributária sobre total de casos novos, nas Justiças Estadual, Federal e no STJ (CNJ)

Há, portanto, a necessidade de que as leis tenham qualidade — qualidade essa que se espraia nessas três dimensões: simplicidade, clareza e, acima de tudo, transparência. Elementos a partir dos quais será possível o estabelecimento de um arcabouço legal confiável, que inspire segurança jurídica e, assim, menos suscetível a questionamentos – e, caso inevitável o litígio, a opção pelas vias de autocomposição e arbitragem poderá ser avaliada como um caminho mais promissor, uma vez o arcabouço legal simplificado.

 é juiz federal e ex-presidente da Associação Nacional dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe).

 é sócio-fundador do escritório Malta Advogados, professor de Direito Imobiliário da Universidade de Brasília (UnB) e secretário-geral da Comissão de Direito Imobiliário e Urbanístico da OAB.

Lazarini de Almeida é sócio do escritório Malta Advogados.

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Angélica Saphier: Acrobatismo jurídico e vulnerabilidade digital

A famigerada “era digital” sempre introduz distintas discussões acerca de suas consequências das mais variadas naturezas, sejam elas jurídicas, sociais ou econômicas, entre outras. Longe de ser uma crítica ou mesmo aprofundar a temática que se propõe tratar neste ensaio, a finalidade aqui abarcada é de destacar nuances que afloram durante a fase atípica que atravessamos atualmente com a pandemia da Covid-19, precisamente no que tange às adequações jurídicas na doutrina brasileira e iniciação ao debate da identificação de uma modalidade de vulnerabilidade social contemporânea.

Certamente o ano de 2020 será rotulado como um retrato da abrupta produção doutrinária (pelo menos virtual), na busca incessante e pontual de dinamizar aplicação do ordenamento jurídico às questões inéditas, dada as circunstâncias transitórias de distanciamento e confinamento social, marcando a caracterização de discussões não peremptórias.

Atitude louvável da doutrina em perscrutar o presente cenário a fim de responder aos anseios da sociedade, haja vista a percepção de retração legal, em que são reconsideradas disposições básicas do Direito em face do período de calamidade, adaptando-se a norma ao fato da instabilidade econômica social.

Contudo, deve-se prestar atenção ao perigo de incorrer em extralegalidades, vislumbrando que as excepcionalidades legais advêm do Direito Constitucional em decorrência do estado de defesa e do estado de sítio, cuja finalidade será sempre a superação da crise e o retorno ao status quo ante, exige irrestrito cumprimento de todas as hipóteses e requisitos constitucionais [1], além da decretação de calamidade pública, geralmente relacionada a desastres naturais, autorizativa de medidas pelo poder público com escusa de metas fiscais.

O momento de crise viral também exacerbou o emprego de institutos jurídicos que permitem a flexibilização da interpretação de dispositivos legais, são alguns deles: caso fortuito e força maior, revisão contratual, fato do príncipe, estes que, agora, de forma mais aguçada, estão quase que unânimes nas fundamentações jurídicas.

Acontece que, muito embora o intuito interpretativo das normas jurídicas procure contemplar logisticamente a realidade hodierna, não carecem automaticamente excepcionar ao conteúdo normativo e negocial vigente. Para aplicação dos efeitos da revisão contratual, por exemplo, devem estar em concomitância à superveniência de fato imprevisível e a onerosidade excessiva [2]. Em virtude das particularidades causais, não é de todo prudente, tão logo, indicar que seria razão para reservas nas relações contratuais.

Em conjunto com o amontoado de ambiguidades jurídicas que não alcançam contextos atuais e a respectiva tentativa de saneamento, despontou ainda mais a propagação das informações no espaço eletrônico de forma vertiginosa. Nesta senda, nada mais patente que o crescimento exponencial do uso da tecnologia em tempo de confinamento suscite perguntas para desdobramentos advindos de situações contemporâneas.

Nesse prisma, é notório que o indivíduo que não possui, ao menos, o conhecimento prévio da matéria apreciada será imerso em informações transitórias. Em qualquer área de conhecimento, há o despontamento da vulnerabilidade do receptor em meio ao conteúdo circulado, em caso de esvaziamento do conhecimento submetido, em que sua aquisição pode tornar-se indelével.

Veja que no Direito do Consumidor, verbi gratia, têm-se a constatação da figura jurídica entre as configurações de vulnerabilidade, a chamada informacional, que concerne à insuficiência de dados acerca do produto ou serviço capazes de influenciar no procedimento decisório de compra [3]. Analogamente, é o que acontece com as informações que carecem de legitimidade, carecem de procedência, mas apesar disso influenciam de tal maneira ao seu interlocutor.

Pode-se dizer, em apertada análise, que de forma aparente, essa vulnerabilidade é ocasionada pelo estado de passividade do indivíduo receptor dos dados, e aqui far-se-á o recorte ao meio eletrônico como fonte de dados, onde é mais fácil perpetuar e difundir a mensagem, sem necessariamente haver referência à origem da informação. O ambiente virtual acomoda dados de modo indeliberado e, muitas vezes, obsta a segurança e credibilidade da matéria transmitida.

Ainda que essas tecnologias virtuais tenham o propósito de melhorar a transmissão de informação em termos de organização e acessibilidade de dados, a ausência de parâmetros regulatórios e até mesmo de mecanismos de supervisão de informação agrava a percepção de vulnerabilidade em meio digital, é uma das ameaças ao convívio cibernético.

Trata-se de vivenciar o desenvolvimento quantitativo, no tocante ao armazenamento de dados e uma transformação de ordem qualitativa no processamento de informações de forma equilibrada. Para Bioni [4], sobre a técnica binária: ainda que essa nova forma de organização social não se resuma apenas ao meio ambiente virtual, a computação eletrônica e a internet são as ferramentas de destaque desse processo.

Nesse sentido, as ciências, sobretudo a jurídica, devem enfrentar os obstáculos das lacunas legais de maneira a garantir proteção ao usuário, sem limitar a liberdade de difusão de informação. Frise-se que essa vulnerabilidade informacional digital relaciona-se ao ser humano e não à tecnologia, diz respeito à sua instabilidade [5] na utilização da ferramenta.

A vulnerabilidade informacional em meio digital, em resumo, está relacionada à bateria de informações seja de qualquer natureza, sem verificação de autenticidade autoral ou mesmo da veracidade do conteúdo disposto. Contudo, é mais evidente a identificação da suscetibilidade social frente à circulação de dados pessoais no meio virtual.

Nesse caso, o usuário fornece dados, ainda que involuntariamente, para terceiros que em posse das informações fazem o seu gerenciamento, além de deter a faculdade, mesmo sem autorização de seus titulares, de utilizá-los para os diversificados fins, inclusive para cometer ilícitos penais. Para Jaishankar [6], o espaço digital deve ter suas balizas delineadas pelos marcos legais de proteção de direitos humanos, sobretudo quando os exageros implicam o uso da intimidade para cometer delitos ou a limitação da liberdade de expressão para o Estado controlar vidas.

Geralmente, costuma-se atribuir o interesse da obtenção de informações aos anseios consumeristas que trafegam no ambiente virtual ao setor empresarial [7] com o objetivo de conquistar comercialmente a figura do consumidor por meio de publicidades em sítios eletrônicos. Entretanto, a extração de dados acontece em outras situações corriqueiras como: operações fraudulentas por estelionatários, espionagem e monitoramento por geolocalização [8] violando a privacidade do indivíduo, invasão por hackers, veiculação de imagens e vídeos íntimos, etc., caracterizando-se todos como crimes cibernéticos [9].

Apesar de contar com ferramentas importantes como Código de Defesa do Consumidor, Marco Civil da Internet e Lei de Crimes Cibernéticos, a Lei Geral de Proteção de Dados, em meio ao fomento de instrumentos legais para o deslinde de problemas jurídicos angariados pela Covid-19, teve prorrogação de sua vacatio legis [10] aprovada, colaborando no recrudescimento da suscetibilidade virtual do usuário.

Cabe destacar que a LGPD introduz, normativamente, a noção de dados sensíveis que diz respeito ao seu conteúdo oferecer uma especial vulnerabilidade: a discriminação. Destaque não só para para empresas privadas, como também para o tratamento de dados pelos órgãos públicos durante o período da pandemia da Covid-19 para que sua utilização não tenha o fito distante do interesse público e de proteção da vida, da incolumidade física do titular e de terceiros, consoante pregoa a lei.

Em poucas palavras, tal esboço ressalta o aspecto de vulnerabilidade dos cidadãos em desempenhar o domínio de seus dados pessoais, o que decorre desde uma “assimetria informacional até a própria estruturação dos modelos de negócio que se divorciam das expectativas de privacidade dos usuários” [11].

São problemáticas que precedem e transcendem ao infortúnio da Covid-19, contudo, são melhores visualizadas em face de sua intensidade nesse período. Depara-se com uma abordagem tecnológica em que se reflete uma remodelação de paradigma na administração de dados no ambiente eletrônico e virtual, em que se não se abandona a roupagem de inovação com a inserção da inteligência artificial, mas busca-se otimizar sua utilização, de modo que, com os devidos melhoramentos, seja um espaço capaz de promover  aprendizado, conforto e segurança: na vida, no trabalho, na escola, nas relações interpessoais, entre outros.

 


[5] Sobre instabilidade social em meio à tecnologia: O sistema social opera sob o reconhecimento de situações conflitivas, sendo os recorrentes conflitos e a vulnerabilidade da sociedade contemporânea para lidar com os novos problemas (como o risco bio­tecnológico) condições para que essa mesma sociedade (e o direito!) possa gerir esse risco. Em outras palavras, a sociedade apenas é estável na instabilidade. A instabilidade é condição para a mudança social, é condição para a construção do futuro e da contínua manutenção da autopoiese sistêmica (LUHMANN Apud BAEZ, Narciso Leandro Xavier. et al. Org. O impacto das novas tecnologias nos direitos fundamentais. Joaçaba, SC: Unoesc, 2018. 511 p. p. 454).

[6] Apud Ministério Público Federal. Roteiro de atuação: crimes cibernéticos. 2 ed. rev. – Brasília: MPF/2ªCCR, 2013. p. 337.

[7] Para BIONI (2019, p. 199. Ob. cit.): Idiossincrasia traiçoeira do trade-off da economia informacional.

[9] BRASIL. Lei 12.737/2012. Lei nº 12.737, de 30 de novembro de 2012. Dispõe sobre a tipificação criminal de delitos informáticos; altera o Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal; e dá outras providências. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12737.htm.

 é advogada, especialista em advocacia pública pela UCAM-RJ e mestranda em Direito Público pela UFAL.

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STF passa a admitir HC contra ato de ministro da corte

O Habeas Corpus é cabível contra ato individual de ministros do Supremo Tribunal Federal. O entendimento foi firmado pelos ministros em julgamento no Plenário Virtual encerado nesta quinta-feira (30/4). Por maioria, os ministros admitiram HC contra atos individuais de seus membros, formando novo precedente, já que havia divergência de opiniões no tribunal sobre o tema.

Até então, o Plenário não teve a oportunidade de aprofundar a discussão presencialmente. Tema gera divergência no tribunal

De acordo com o relator, ministro Marco Aurélio, o HC é cabível contra decisão formalizada por integrante do Supremo, considerando que a súmula 606 “alcança ato de Colegiado, e não individual”. 

O HC em análise, procedente de Roraima, foi impetrado contra decisão monocrática da ministra Cármen Lúcia, que havia negado um agravo regimental. O paciente alega que está submetido a constrangimento ilegal pela não apreciação do recurso interposto, havendo risco à liberdade, considerada a certificação do trânsito em julgado da decisão condenatória.

Em seu voto, Marco Aurélio admitiu o HC, rejeitando as preliminares invocadas pela Procuradoria Geral da República. O pedido, contudo, foi negado, pois o ministro vislumbrou “ausência de ilegalidade a ser reparada”. De todo modo a simples admissão do HC criou novo entendimento na Corte.

Marco Aurélio foi acompanhado com ressalvas pelos ministro Gilmar Mendes, Dias Toffoli e Luís Roberto Barroso. Toffoli reiterou que seu entendimento pessoal é pelo cabimento do HC contra decisão individual de seus membros. No entanto, Toffoli diz entender a necessidade de impor balizas à medida para evitar “sua utilização indiscriminada” que, além de subverter o sistema recursal, inviabilizaria o funcionamento do STF.

O ministro afirmou ainda que deve ser seguido o disposto no artigo 102, da Constituição Federal, que aponta a competência do STF para processar e julgar HCs nos casos em que “o coator for Tribunal Superior ou quando o coator ou o paciente for autoridade ou funcionário cujos atos estejam sujeitos diretamente à jurisdição do Supremo Tribunal Federal”. 

Por sua vez, o ministro Barroso concordou com a negativa do pedido e apontou sua posição “quanto à inadequação da via eleita”. Segundo ele, a súmula 606 define o não cabimento de Habeas Corpus contra decisão proferida por ministro ou Turma do Supremo.

A divergência foi aberta pelo ministro Luiz Edson Fachin e seguida por Rosa Weber. Impedida, a ministra Cármen Lúcia não votou.

HC contra acórdão de turma

O Supremo Tribunal Federal tem em sua jurisprudência que “não cabe Habeas Corpus originário para o Tribunal Pleno de decisão de turma, ou do Plenário, proferida em Habeas Corpus”. A definição consta da já referida súmula 606 e foi reafirmada em julgamento virtual que também encerrou nesta quinta.

Fachin reafirmou jurisprudência da Corte que não permite HC contra decisão da Turma 
Rosinei Coutinho / SCO STF

No caso em julgamento, o relator do HC, ministro Luiz Edson Fachin, apontou precedentes das turmas da Corte em que foi assentado a admissão do HC apenas em hipóteses excepcionais: “em que a matéria de fundo do Habeas Corpus seja nova em relação aos precedentes da Corte e em que haja pedido de destaque por um dos Ministros quando do julgamento em plenário virtual”.

O HC pedia também a possibilidade de sustentação oral nos agravos regimentais. Fachin considerou que, embora tenha havido destaque no julgamento virtual, “a jurisprudência pacífica deste Tribunal não admite a impetração de Habeas Corpus em face de ato praticado por um de seus órgãos”. 

Ele foi acompanhado pela maioria dos ministros, com ressalvas apenas do decano, ministro Celso de Mello. Divergiram os ministros Gilmar Mendes, Marco Aurélio, Ricardo Lewandowski e Dias Toffoli.

Idas e vindas

Até então, o Plenário não teve a oportunidade de aprofundar presencialmente a discussão sobre HC contra ato de ministro. Decidiu fazê-lo em sessão virtual, em que o relator inclui voto no sistema e os ministros se manifestam na sequência, sem debate presencial.

Há anos o tema gera divergência no tribunal e a corte teve pontos de inflexão, como mostrou reportagem da ConJur. Em agosto de 2015, assentou que HC é “ação nobre sem qualquer limitação na Constituição Federal” em julgamento que terminou em empate de cinco a cinco. Por consequência, beneficiou o réu. O caso tratava da delação premiada do doleiro Alberto Youssef.

Menos de seis meses depois, por seis a cinco, o STF voltou ao posicionamento anterior sobre a questão, e tornou a não admitir HC contra decisão monocrática de ministro da corte. Para especialistas, as idas e vindas afetam a segurança jurídica e passam um mau exemplo aos magistrados de instâncias inferiores.

Já em 2018, a corte teve novamente a chance de se manifestar em Plenário sobre o tema, em caso que discutia prisão domiciliar a Paulo Maluf. No entanto, a análise ficou prejudicada quando Fachin preferiu conceder HC de ofício para manter a domiciliar por questões humanitárias.

Na ocasião, Toffoli e o ministro Gilmar Mendes se posicionaram a favor do cabimento de HC contra atos de ministros da corte. Gilmar Mendes afirmou, à época, que a corte precisava discutir logo essa matéria. Ele falou que sempre foi a favor do cabimento do HC nesses casos, principalmente pelo o que chamou “uso exorbitante e excessivo” dos poderes monocráticos. “Estado de direito não comporta soberanos”, declarou.

HC 130.620 – contra ato monocrático

HC 164.593 – contra acórdão de Turma