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Felipe Herdem: O interesse público já não repele o privado

Na vigência do modelo de Estado liberal, reconheceu-se que, em determinadas situações, era necessário e útil à Administração Pública recorrer à forma contratual para realizar algumas de suas funções [1]. Entretanto, essa circunstância não permitiu, de imediato, a aceitação de uma categoria contratual no Direito Administrativo brasileiro [2]. A literatura, em especial a francesa, tratou os contratos celebrados com a Administração como atos de gestão, devendo estar submetidos ao Direito privado, concepção que valeu até a teoria do serviço público [3].

De modo que o recuo do Estado-providência e, por conseguinte, a devolução à sociedade de um papel ativo na condução dos negócios públicos demandaram o desenvolvimento de novas formas de concretizações das relações administrativas, posto que “os modelos autoritários de execução da função administrativa, centrados no ato administrativo, já não comportavam mais a integralidade do fenômeno administrativo” [4]. Em sentido semelhante, Eduardo García de Enterría observa que o ato administrativo, embora assegure eficazmente a submissão, “é incapaz de suscitar o entusiasmo e o desejo de colaboração” [5].

Destarte, em uma sociedade fragmentada, não existe espaço para a crença em um único interesse público superior, fato que tornou possível a abertura para avaliação e consideração dos diversos interesses existentes, característica da complexidade da sociedade atual. Como observa Ernesto Sticchi Damiani, “o interesse público já não repele o privado” [6].

Parcela da literatura trabalha a consensualidade administrativa como uma alternativa à imperatividade e à unilateralidade [7]. Costuma-se realizar um paralelo também com um incremento da participação, eficiência e transparência administrativa.           

Tratando sobre o desenvolvimento do fenômeno consensual no Direito Administrativo, Diogo de Figueiredo Moreira Neto parte de uma reconstrução de uma visão menos autoritária, menos arrogante e mais humana, e por isso mais próxima, mais eficiente e socialmente controlada. Diretamente influenciado por Paolo Grossi, o autor é parte de uma premissa social e ética e trabalha com os conceitos da supremacia da identidade, da integridade e da liberdade. Adota-se uma premissa de que a Justiça é um valor capital, tendo a sua origem na sociedade, não devendo, portanto, ser monopolizada pelo Estado [8]. Sobre o tema, o autor destaca a afirmação (após a Segunda Guerra) de quatro vetores principiológicos: os direitos fundamentais, a subsidiariedade, a participação e a Constituição como ordem de valores que influenciaram diretamente a abertura do fenômeno consensual [9].

Assim, para o autor em referência, os direitos fundamentais exerceram um papel determinante na promoção do reequilíbrio das relações entre Estado e sociedade, a subsidiariedade como fator fundamental para uma redistribuição dos papéis do indivíduo, dos grupos sociais e das instituições políticas em um processo contínuo de desmonopolização do poder, o aumento da participação da sociedade nas relações estatais, principalmente como fonte legitimadora desta última e a contribuição da Constituição como ordem de valores e estrutura jurídica das novas relações entre sociedade e Estado [10].

Por conseguinte, a consensualidade deve ser vista como uma técnica de gestão administrativa [11]. Nesse sentido, Juliana Bonacorsi Palma reforça que “a consensualidade consiste em uma técnica de gestão cujo instrumento de formalização corresponde ao acordo administrativo” [12] e conclui que ” o acordo administrativo consiste em um dos meios para satisfação das finalidades públicas que a Administração tem ao seu dispor” [13].

Fenômeno muito trabalhado pela doutrina e associado como um efeito positivo do consensualismo é o incremento da participação administrativa, em especial em relação a abertura procedimental, que torna o processo mais harmônico e eficiente, já que permite que o interesse público dialogue com a satisfação de outros interesses privados envolvidos. Outra contribuição da consensualidade usualmente apontada é a transparência das atividades administrativas, uma vez que é “preferível, por óbvio, que os interesses privados associados à Administração Pública sejam devidamente identificados em um acordo formal do que, como ocorre por vezes, acertados em prévias negociatas de bastidores” [14].

Por fim, a legitimação também é outra consequência, já que o consenso, por sua vez, supostamente garante a autoridade que nele busca o seu fundamento, colaborando para a construção de uma nova legitimação da Administração Pública. Também aliada à legitimidade, pode-se destacar a estabilidade das relações administrativas, tendo como consequência uma maior segurança jurídica.

 é sócio do escritório GFX Advogados, professor do FGV Law Program, doutorando em Direito Público na Universidade de Coimbra e mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio.

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Governança estratégica deve nortear reforma do Estado na era digital

Há algum tempo tenho defendido aqui neste espaço o conceito de reengenharia constitucional como a necessária e radical reconfiguração estrutural das instituições oitocentistas do liberalismo democrático que fomentaram a ideia de Estado de Direito.

Tendo em vista o diagnóstico cada dia mais consensual de que existe uma crise nos postulados da democracia liberal e que essa crise pode se tornar um retrocesso civilizatório com o aumento do autoritarismo em escala global, parte-se da ideia de que a superação desse quadro tornou imprescindível a implantação de medidas estruturantes para salvaguardar valores universais como os direitos humanos, o governo democrático, a liberdade, a separação dos poderes e os limites do poder estatal, bem como a redução de desigualdades e a concretização de direitos sociais.

Assim, para preservar esses objetivos da gestão pública e fazer cumprir o papel que se espera do Estado, as formas estruturais pensadas há aproximadamente três séculos não se mostram efetivas atualmente.

Pelo contrário, sua perda de legitimidade é evidente. Na Era Digital, o tempo do Estado burocrático não é o tempo da vida, o que tem gerado forte descrença e rejeição da política, aliado a arroubos autoritários.

Desta feita, é preciso transformar as estruturas e preservar as finalidades públicas, notadamente a concretização dos direitos fundamentais e a busca de vida plena aos cidadãos.

As mesmas reflexões se aplicam ao contexto brasileiro: a fim de assegurar o conteúdo funcional da Constituição de 1988 é preciso reconstruir sua arquitetura estrutural, ou seja, novos meios para realmente alcançar a efetividade dos fins constitucionais.

Nesta oportunidade, ouso enunciar algumas ideias que possam se tornar diretrizes para o futuro do Estado, em uma perspectiva ensaísta e provocativa para que o debate e o tempo amadureçam as reflexões.

A Constituição de 1988, inspirada nos ideais do Estado de Bem-Estar europeu (keynesiano, providencialista) que emergiu após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo fortes preocupações com os sistemas de controle, com a impessoalidade na gestão pública e um arquétipo estatalista que rapidamente se mostrou esgotado ante as demandas do fim do milênio. O grande avanço na salvaguarda dos direitos fundamentais individuais e sociais não veio acompanhado de estruturas sustentáveis fiscalmente e capazes de garantir sua efetividade.

O modelo pensado tinha uma tendência irrefreável para o avanço das corporações e o inchaço da máquina pública, de modo que o excesso de estruturas estatais se tornou obstáculo para a efetividade dos direitos fundamentais, e não meio para concretizá-los.

Sem demoras, vieram as pressões por reformas. Especialmente a partir de 1995, emergiu o Plano Diretor da Reforma do Estado proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), cujo objetivo era operar um câmbio entre o paradigma burocrático-controlador para o gerencial-fiscalista na Administração Pública.

Novos conceitos foram introduzidos. Pregava-se a redução do tamanho do Estado, a descentralização e desconcentração dos serviços públicos, a flexibilização de controles, maior autonomia dos gestores em prol de resultados, maior abertura à sociedade civil, maior relacionamento com o chamado terceiro setor, a necessidade de novos entes gestores sob a tutela técnica e não política (p. ex. agências reguladoras) e um rígido controle das contas públicas.

Veio uma série de concepções empresariais, como a ideia do cidadão-consumidor, o princípio da eficiência em uma perspectiva mercadológica, privatizações e a crença nos mecanismos de mercado como vetores de desenvolvimento. O conceito de eficiência estava atrelado a uma noção rudimentar de Estado-empresário.

Como pano de fundo teórico, o paradigma gerencial-fiscalista se apresentava conectado à concepção de Estado-Regulador.

Em palavras ligeiras, um Estado-Regulador é aquele que ao invés atuar diretamente nas políticas públicas, gastando ele mesmo os recursos auferidos via tributação, estabelece normas e regula as atividades privadas para que elas gerem desenvolvimento a partir de condições de funcionamento eficiente, conforme ensina La Spina e Majone.

Passados alguns anos das reformas estruturantes, cujo marco legal se revela nas emendas constitucionais n. 19 e n. 20 de 1998, inúmeras são as razões que obstacularizaram a implantação desse modelo no Brasil.

Dentre elas, pode-se mencionar a cultura política avessa ao planejamento de longo prazo e ao tratamento técnico de questões públicas até a resistência burocrática a ações orientadas pelo desempenho, especialmente em um ambiente de rigor fiscal.

Contudo, além do plano prático relativo ao contexto brasileiro, novos desafios se impõem ao novo Estado que não podem ser relativizados: i) o advento da era digital e o incrível desenvolvimento das novas tecnologias, ii) as mudanças no mindset dos cidadãos, cada vez mais ansiosos, impacientes e (des)informados, iii) os limites internos e externos à soberania nacional, os quais impõem constrangimentos e condicionantes aos poderes estatais, cerceando o potencial de atuação centralizada do Estado, iv) a necessidade de maior integração com a sociedade civil e atuação em rede, bem como v) a maior participação dos cidadãos na produção normativa, ante o aumento de complexidade na base social e o incremento do pluralismo nas expectativas e modos de vida.

Daí é imprescindível a adoção de uma lógica pós-burocrática radicalmente inovadora, digital e conectada com as demandas contemporâneas, um Estado enquanto centro de inteligência e governança estratégica.

Pautado por uma racionalidade pública e no interesse coletivo, não necessariamente estatal e nem mesmo empresarial, esse modelo prioriza a inteligência de análise e tratamento de dados, as evidências e os mecanismos de governança para o fim maior de concretização dos direitos fundamentais individuais e sociais por meio de políticas públicas. Seu compromisso não é com a estrutura, mas com os resultados.

No olhar proposto, as inovações de governo digital ou govtech não são apenas instrumentos a facilitar as medidas executivas. Elas adquirem forte assento no nível estratégico de decisão.

A primeira característica desse modelo é a prioridade no nível estratégico: ao lado dos mandatários eleitos, um corpo de executivos públicos de alta qualificação e bem preparados formam um conselho de governança no Poder Executivo, cuja missão é analisar dados, avaliar diagnósticos, planejar, definir atribuições táticas e operacionais, estabelecer indicadores e monitorar o cumprimento das metas a serem executadas na própria gestão pública ou por meio de parceiras com a iniciativa privada.

Assegurada a atuação direta do Estado em atividades consideradas essenciais e que demandam garantias igualmente públicas, os demais serviços públicos não necessariamente teriam execução estatal. Tampouco se submeteriam à razão mercadológica.

Para que seja possível o monitoramento na execução das políticas públicas, o controle e fiscalização dos seus agentes, a adoção de políticas de integridade (compliance) e responsabilização de agentes públicos e privados (accountability) o modelo estratégico deve se aliar ao compromisso fortemente regulador.

Regulação e monitoramento são imprescindíveis para bons resultados. Por isso, a prestação de serviços públicos de índole meramente operacional ou direta deve prestigiar a parceria com a iniciativa privada, restando ao Estado maior foco na atividade regulatória em detrimento da prestação direta e ação operacional.

Neste quesito, não há grandes novidades. A inovação é aliar essa regulação com um modelo de governança estratégia e inteligência pública ditando os rumos do futuro e que não se restringe à regulação tradicional. Ele atua também como indutor do desenvolvimento.

Superando as dicotomias da modernidade entre Estado e sociedade civil, o modelo proposto atua dialeticamente com a esfera privada, de modo a promover novos vetores de desenvolvimento a partir da síntese dessas duas forças dialogantes.

Nessa dialética supera-se a leitura desenvolvimentista clássica, que credita ao Estado o papel de motor da história, sem atribuir exclusividade à sociedade civil e aos mecanismos de mercado a missão de fomentar os avanços sociais.

O novo Estado induz, provoca, gera incentivos e estabelece punições. Indica caminhos, constrói meios em conjunto e atua com a sociedade no progresso civilizatório e na promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Por fim, esse modelo há de ser interativo: ante a insuficiência contemporânea da produção normativa puramente estatal, a governança deve interagir com os diferentes atores sociais, de modo a permitir sua participação e adotar mecanismos de construção colaborativa e compartilhada tanto no âmbito da formulação das políticas, quanto de seu arcabouço legal regulatório.

Um exemplo prático e que revela uma tendência é o Comitê Gestor de Internet composto por membros do setor empresarial, acadêmico-científico, empresarial e entidades não governamentais. Sua atribuição principal é a formulação de orientações estratégicas sobre o uso e o desenvolvimento da internet no Brasil, além de promover estudos e pesquisas sobre a temática (conferir: www.cgi.br),

Estratégico, regulador, indutor do desenvolvimento e interativo: eis um conjunto de diretrizes para se pensar o novo Estado e assim orientar as reformas administrativas em prol de resultados, a reelaboração dos marcos regulatórios e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.

Um Estado leve, porém forte, necessário e dotado de lógica pública não necessariamente estatal. Afinal, na Era Digital se tornou urgente que as instituições funcionem e forneçam respostas às necessidades da população, de modo a possibilitar a efetividade dos direitos fundamentais individuais e sociais, resgatar a legitimidade da política e preservar importantes postulados da democracia liberal.


LA SPINA, Antonio. MAJONE, GIANDOMENICO. “Lo Stato Regolatore” Bologna: IlMulino, 2000. p. 24 e ss.

Para aprofundamento, conferir: REZENDE, Flávio da Cunha. Razões da crise de implementação do estadogerencial: desempenho versus ajuste fiscal. In: Revista de Sociologia e Política n. 19: 111-121. Curitiba: Ufpr, 2002. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/viewFile/3622/2879 Acesso: 07maio2020.

 é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).