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Hospital deve permitir acompanhante em partos durante epidemia

Direito da mulher

Hospital deve permitir acompanhante em todos os partos durante epidemia

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A Lei 13.079/20, em seu artigo 3º, § 2º, inciso III, dispõe que a disciplina para os cuidados com a Covid-19 não deve se afastar dos postulados da dignidade da pessoa humana. Com esse entendimento, o juiz Bruno Machado Miano, da Vara da Fazenda Pública de Mogi das Cruzes (SP), obrigou a Santa Casa de Misericórdia a garantir a todas as gestantes o direito a um acompanhante antes, durante e depois do parto.

ReproduçãoHospital deve permitir acompanhante em todos os partos durante epidemia

O descumprimento da decisão ensejará multa de R$ 2 mil por recusa injustificada. A liminar foi concedida em ação civil coletiva impetrada pela Defensoria Pública, que alegou que o hospital restringiu a presença de acompanhantes nos partos em razão da epidemia da Covid-19. Para o juiz, a Santa Casa não pode inviabilizar o direito da mulher.

“A Lei 13.079/20 [que dispõe sobre as medidas para enfrentamento à Covid-19], podendo, não suspendeu a eficácia da Lei 11.108/05, que alterou a Lei do SUS (Lei 8080/90), ao estabelecer o direito ao acompanhante antes, durante e depois do parto”, afirmou. O magistrado destacou que o acompanhante continua garantido, desde que se submeta aos procedimentos da nota técnica da Secretaria de Atenção Primária à Saúde, referente às medidas de prevenção para os partos durante a epidemia.

Entre as precauções, está a de que o acompanhante deve ser assintomático e não integrar o grupo de risco para a Covid-19. “Após o parto, somente em condições específicas (instabilidade clínica da mulher ou condições específicas do recém-nascido)”, concluiu Miano. Cabe recurso da decisão.

1006473-71.2020.8.26.0361

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 é repórter da revista Consultor Jurídico

Revista Consultor Jurídico, 4 de junho de 2020, 17h28

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Governança estratégica deve nortear reforma do Estado na era digital

Há algum tempo tenho defendido aqui neste espaço o conceito de reengenharia constitucional como a necessária e radical reconfiguração estrutural das instituições oitocentistas do liberalismo democrático que fomentaram a ideia de Estado de Direito.

Tendo em vista o diagnóstico cada dia mais consensual de que existe uma crise nos postulados da democracia liberal e que essa crise pode se tornar um retrocesso civilizatório com o aumento do autoritarismo em escala global, parte-se da ideia de que a superação desse quadro tornou imprescindível a implantação de medidas estruturantes para salvaguardar valores universais como os direitos humanos, o governo democrático, a liberdade, a separação dos poderes e os limites do poder estatal, bem como a redução de desigualdades e a concretização de direitos sociais.

Assim, para preservar esses objetivos da gestão pública e fazer cumprir o papel que se espera do Estado, as formas estruturais pensadas há aproximadamente três séculos não se mostram efetivas atualmente.

Pelo contrário, sua perda de legitimidade é evidente. Na Era Digital, o tempo do Estado burocrático não é o tempo da vida, o que tem gerado forte descrença e rejeição da política, aliado a arroubos autoritários.

Desta feita, é preciso transformar as estruturas e preservar as finalidades públicas, notadamente a concretização dos direitos fundamentais e a busca de vida plena aos cidadãos.

As mesmas reflexões se aplicam ao contexto brasileiro: a fim de assegurar o conteúdo funcional da Constituição de 1988 é preciso reconstruir sua arquitetura estrutural, ou seja, novos meios para realmente alcançar a efetividade dos fins constitucionais.

Nesta oportunidade, ouso enunciar algumas ideias que possam se tornar diretrizes para o futuro do Estado, em uma perspectiva ensaísta e provocativa para que o debate e o tempo amadureçam as reflexões.

A Constituição de 1988, inspirada nos ideais do Estado de Bem-Estar europeu (keynesiano, providencialista) que emergiu após a Segunda Grande Guerra, trouxe consigo fortes preocupações com os sistemas de controle, com a impessoalidade na gestão pública e um arquétipo estatalista que rapidamente se mostrou esgotado ante as demandas do fim do milênio. O grande avanço na salvaguarda dos direitos fundamentais individuais e sociais não veio acompanhado de estruturas sustentáveis fiscalmente e capazes de garantir sua efetividade.

O modelo pensado tinha uma tendência irrefreável para o avanço das corporações e o inchaço da máquina pública, de modo que o excesso de estruturas estatais se tornou obstáculo para a efetividade dos direitos fundamentais, e não meio para concretizá-los.

Sem demoras, vieram as pressões por reformas. Especialmente a partir de 1995, emergiu o Plano Diretor da Reforma do Estado proposto pelo Ministério da Administração e Reforma do Estado (MARE), cujo objetivo era operar um câmbio entre o paradigma burocrático-controlador para o gerencial-fiscalista na Administração Pública.

Novos conceitos foram introduzidos. Pregava-se a redução do tamanho do Estado, a descentralização e desconcentração dos serviços públicos, a flexibilização de controles, maior autonomia dos gestores em prol de resultados, maior abertura à sociedade civil, maior relacionamento com o chamado terceiro setor, a necessidade de novos entes gestores sob a tutela técnica e não política (p. ex. agências reguladoras) e um rígido controle das contas públicas.

Veio uma série de concepções empresariais, como a ideia do cidadão-consumidor, o princípio da eficiência em uma perspectiva mercadológica, privatizações e a crença nos mecanismos de mercado como vetores de desenvolvimento. O conceito de eficiência estava atrelado a uma noção rudimentar de Estado-empresário.

Como pano de fundo teórico, o paradigma gerencial-fiscalista se apresentava conectado à concepção de Estado-Regulador.

Em palavras ligeiras, um Estado-Regulador é aquele que ao invés atuar diretamente nas políticas públicas, gastando ele mesmo os recursos auferidos via tributação, estabelece normas e regula as atividades privadas para que elas gerem desenvolvimento a partir de condições de funcionamento eficiente, conforme ensina La Spina e Majone.

Passados alguns anos das reformas estruturantes, cujo marco legal se revela nas emendas constitucionais n. 19 e n. 20 de 1998, inúmeras são as razões que obstacularizaram a implantação desse modelo no Brasil.

Dentre elas, pode-se mencionar a cultura política avessa ao planejamento de longo prazo e ao tratamento técnico de questões públicas até a resistência burocrática a ações orientadas pelo desempenho, especialmente em um ambiente de rigor fiscal.

Contudo, além do plano prático relativo ao contexto brasileiro, novos desafios se impõem ao novo Estado que não podem ser relativizados: i) o advento da era digital e o incrível desenvolvimento das novas tecnologias, ii) as mudanças no mindset dos cidadãos, cada vez mais ansiosos, impacientes e (des)informados, iii) os limites internos e externos à soberania nacional, os quais impõem constrangimentos e condicionantes aos poderes estatais, cerceando o potencial de atuação centralizada do Estado, iv) a necessidade de maior integração com a sociedade civil e atuação em rede, bem como v) a maior participação dos cidadãos na produção normativa, ante o aumento de complexidade na base social e o incremento do pluralismo nas expectativas e modos de vida.

Daí é imprescindível a adoção de uma lógica pós-burocrática radicalmente inovadora, digital e conectada com as demandas contemporâneas, um Estado enquanto centro de inteligência e governança estratégica.

Pautado por uma racionalidade pública e no interesse coletivo, não necessariamente estatal e nem mesmo empresarial, esse modelo prioriza a inteligência de análise e tratamento de dados, as evidências e os mecanismos de governança para o fim maior de concretização dos direitos fundamentais individuais e sociais por meio de políticas públicas. Seu compromisso não é com a estrutura, mas com os resultados.

No olhar proposto, as inovações de governo digital ou govtech não são apenas instrumentos a facilitar as medidas executivas. Elas adquirem forte assento no nível estratégico de decisão.

A primeira característica desse modelo é a prioridade no nível estratégico: ao lado dos mandatários eleitos, um corpo de executivos públicos de alta qualificação e bem preparados formam um conselho de governança no Poder Executivo, cuja missão é analisar dados, avaliar diagnósticos, planejar, definir atribuições táticas e operacionais, estabelecer indicadores e monitorar o cumprimento das metas a serem executadas na própria gestão pública ou por meio de parceiras com a iniciativa privada.

Assegurada a atuação direta do Estado em atividades consideradas essenciais e que demandam garantias igualmente públicas, os demais serviços públicos não necessariamente teriam execução estatal. Tampouco se submeteriam à razão mercadológica.

Para que seja possível o monitoramento na execução das políticas públicas, o controle e fiscalização dos seus agentes, a adoção de políticas de integridade (compliance) e responsabilização de agentes públicos e privados (accountability) o modelo estratégico deve se aliar ao compromisso fortemente regulador.

Regulação e monitoramento são imprescindíveis para bons resultados. Por isso, a prestação de serviços públicos de índole meramente operacional ou direta deve prestigiar a parceria com a iniciativa privada, restando ao Estado maior foco na atividade regulatória em detrimento da prestação direta e ação operacional.

Neste quesito, não há grandes novidades. A inovação é aliar essa regulação com um modelo de governança estratégia e inteligência pública ditando os rumos do futuro e que não se restringe à regulação tradicional. Ele atua também como indutor do desenvolvimento.

Superando as dicotomias da modernidade entre Estado e sociedade civil, o modelo proposto atua dialeticamente com a esfera privada, de modo a promover novos vetores de desenvolvimento a partir da síntese dessas duas forças dialogantes.

Nessa dialética supera-se a leitura desenvolvimentista clássica, que credita ao Estado o papel de motor da história, sem atribuir exclusividade à sociedade civil e aos mecanismos de mercado a missão de fomentar os avanços sociais.

O novo Estado induz, provoca, gera incentivos e estabelece punições. Indica caminhos, constrói meios em conjunto e atua com a sociedade no progresso civilizatório e na promoção dos direitos fundamentais da pessoa humana.

Por fim, esse modelo há de ser interativo: ante a insuficiência contemporânea da produção normativa puramente estatal, a governança deve interagir com os diferentes atores sociais, de modo a permitir sua participação e adotar mecanismos de construção colaborativa e compartilhada tanto no âmbito da formulação das políticas, quanto de seu arcabouço legal regulatório.

Um exemplo prático e que revela uma tendência é o Comitê Gestor de Internet composto por membros do setor empresarial, acadêmico-científico, empresarial e entidades não governamentais. Sua atribuição principal é a formulação de orientações estratégicas sobre o uso e o desenvolvimento da internet no Brasil, além de promover estudos e pesquisas sobre a temática (conferir: www.cgi.br),

Estratégico, regulador, indutor do desenvolvimento e interativo: eis um conjunto de diretrizes para se pensar o novo Estado e assim orientar as reformas administrativas em prol de resultados, a reelaboração dos marcos regulatórios e a formulação de políticas públicas baseadas em evidências.

Um Estado leve, porém forte, necessário e dotado de lógica pública não necessariamente estatal. Afinal, na Era Digital se tornou urgente que as instituições funcionem e forneçam respostas às necessidades da população, de modo a possibilitar a efetividade dos direitos fundamentais individuais e sociais, resgatar a legitimidade da política e preservar importantes postulados da democracia liberal.


LA SPINA, Antonio. MAJONE, GIANDOMENICO. “Lo Stato Regolatore” Bologna: IlMulino, 2000. p. 24 e ss.

Para aprofundamento, conferir: REZENDE, Flávio da Cunha. Razões da crise de implementação do estadogerencial: desempenho versus ajuste fiscal. In: Revista de Sociologia e Política n. 19: 111-121. Curitiba: Ufpr, 2002. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/rsp/article/viewFile/3622/2879 Acesso: 07maio2020.

 é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).

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Grace Mendonça: Repercussão geral consolida segurança jurídica

O instituto da repercussão geral, incorporado no ordenamento jurídico brasileiro como mecanismo de aprimoramento da jurisdição constitucional[2], revela consistência de vocação e força propulsora de um dos mais importantes postulados do Estado Democrático de Direito encartados na Constituição da República: a segurança jurídica.

A afirmação e as reflexões ora compartilhadas pautam-se pela concepção do instituto como instrumento capaz de uniformizar linhas interpretativas e, em decorrência, de transformar a segurança jurídica em valor tangível, sem, contudo, pretender adentrar na perspectiva da repercussão geral como barreira ou filtro apto a mitigar o volume de processos alçados à Suprema Corte do país – aspecto que detém premissas e ângulos próprios, inclusive no tocante aos impressionantes números da judicialização constitucional no Brasil. Não se pretende, portanto, abordar o instituto da repercussão geral à luz de sua incidência inicial junto à Suprema Corte, permeada pelos desafios de um Tribunal Constitucional assoberbado de processos, mas de suas qualidades e resultados positivos ao final de seu percurso.

Assim, ao circunscrever a competência recursal extraordinária da Suprema Corte à apreciação e julgamento de  recursos, cuja relevância social, política, econômica ou jurídica transcenda os interesses subjetivos da causa e, concomitantemente, pacificar a interpretação constitucional a ser adequadamente aplicada aos múltiplos litígios que encerram a mesma questão constitucional, a repercussão geral é instituto dotado de habilidades diferenciadas para elidir incertezas e instabilidades, tão deletérias à percepção social de justiça.

Desde a sua efetivação[3], foram submetidos à apreciação da Corte 1.089 casos representativos da controvérsia. Desse acervo, o Supremo Tribunal Federal acolheu a repercussão geral em 737 processos e negou em 342 feitos, estando pendente de apreciação 4 (quatro) casos. Dos processos em que restou reconhecida a preliminar de repercussão geral (737), o Supremo Tribunal Federal já se debruçou e decidiu o mérito de 437 recursos extraordinários, julgando em definitivo os feitos representativos de controvérsia[4].

A pacificação interpretativa é manifestada em teses de repercussão geral cuidadosamente fixadas pelo Colegiado, as quais passam a nortear as decisões a serem tomadas pelas demais instâncias do Poder Judiciário, numa articulação uniformizadora de destacada relevância para a sociedade, porquanto desestimuladora do avanço de controvérsias judiciais em rota de confronto com a tese fixada.

A sistemática da repercussão geral, portanto, tem a aptidão de impactar positivamente na funcionalidade do Sistema de Justiça brasileiro, na medida em que propicia maior racionalidade e eficiência, tornando a engrenagem mais fluida e menos onerosa. Seus salutares efeitos, porém, vão além. Expandem-se para alcançar o litigante individual ou coletivamente considerado, assim como os múltiplos setores, produtivos ou não, envolvidos em conflitos judiciais que aguardam a equânime distribuição de Justiça.

Não por outra razão, aliás, um dos pressupostos para a submissão do recurso extraordinário à sistemática da repercussão geral reside na relevância social, política, econômica ou jurídica do tema para além da subjetividade consubstanciada no recurso paradigmático[5], cuja demonstração, inclusive, não se confunde com invocações desacompanhadas de sólidos fundamentos no sentido de ser o tema controvertido efetivamente portador de ampla repercussão[6].

Quando se estabiliza a correta interpretação constitucional, mediante a fixação de uma tese de repercussão geral, incrementa-se previsibilidade. Em decorrência, o jurisdicionado que aguarda a entrega da prestação jurisdicional, conhecedor do posicionamento adotado pela Corte Suprema sobre a mesma questão constitucional, antevê solução individualizada consentânea com as premissas fixadas. O princípio da proteção da confiança ganha maior solidez[7], enquanto a irresignação, ínsita ao estado de dissenso interpretativo, é apaziguada, potencializando o senso de justiça material. Afinal, a dimensão subjetiva do princípio da segurança jurídica implica precisamente a proteção da legítima confiança, materializada também quando o órgão mais elevado do Poder Judiciário revela sua compreensão sobre tema de natureza constitucional.

A previsibilidade, intrínseca à concepção de segurança jurídica, que, segundo Canotilho[8], proporciona aos cidadãos certeza e calculabilidade no que diz respeito às consequências e efeitos jurídicos dos atos normativos, também pode ser estendida à interpretação fixada à luz da sistemática da repercussão geral. Pelos mesmos fundamentos, pode-se afirmar que a definição da tese de repercussão geral propicia a calculabilidade interpretativa e, em decorrência, fomenta segurança jurídica.

Se, antes da sistemática da repercussão geral, à luz dos precedentes da Corte Suprema, era possível extrair a sua linha interpretativa a respeito de determinada questão constitucional, com o instituto da repercussão geral, uma vez fixada a tese, o posicionamento torna-se manifesto, estancando eventual hesitação hermenêutica. Nas contendas de índole constitucional, portanto, a partir da tese firmada, o Poder Judiciário proporciona maior segurança jurídica ao jurisdicionado, conferindo-lhe condições mais refinadas de calculabilidade interpretativa.

Nessa esteira, quando dos julgamentos de recursos extraordinários sob a sistemática da repercussão geral, a jurisprudência até então dominante na Corte ganha especial relevo. Muito embora seja a partir do julgamento do recurso representativo da controvérsia que a tese é definida, o histórico jurisprudencial do Colegiado merece ser valorado, porquanto rupturas interpretativas, a depender das circunstâncias, podem colocar em risco ou embaçar a percepção de segurança jurídica.

Esse aspecto não tem passado despercebido pelo Supremo Tribunal Federal. As situações de virada interpretativa normalmente são marcadas por elementos de caráter objetivo, como a inovação ocorrida no ordenamento jurídico — reveladora de descompasso entre a interpretação até então firmada e a contemporânea legislação de regência do tema — ou mesmo a presença no julgado de circunstâncias fáticas distintas daquelas que embasaram o entendimento firmado em precedentes[9]. Igualmente merecem destaque as hipóteses em que, ao estruturar a tese de repercussão geral, a Corte acaba por promover complementação ou integração interpretativa, sem desacreditar a construção jurisprudencial existente[10]. Em outros casos, a tese firmada em repercussão geral altera a jurisprudência anterior para alargar a base protetiva do cidadão[11].  Não obstante, uma vez mantido o cenário legislativo e as balizas sobre as quais se assentou a jurisprudência, a Corte tem reafirmado a solidez de seus precedentes, incrementando segurança jurídica[12].

Um julgamento sob a sistemática da repercussão geral não significa, dessa forma, a abertura sem limites de determinada discussão constitucional, desconectando-a do histórico jurisprudencial do Colegiado, numa perspectiva de descontinuidade interpretativa. Sem elementos objetivamente apresentados, a guinada jurisprudencial implicaria degradação da segurança jurídica e, por conseguinte, perda de riqueza, afinal, não há crescimento, inclusive nas vertentes social e econômica de um país, em ambiente permeado por incerteza ou indefinição.

Se a cada julgamento sob a sistemática da repercussão geral o Supremo Tribunal Federal se orientasse pela desconsideração, sem freios, da jurisprudência construída, restariam instituídas a insegurança jurídica e a instabilidade. Aliás, esvaziado estaria o próprio instituto da repercussão geral que exige, como antecedente necessário, a demonstração de aspectos que transcendam o caso concreto, no plano social, político, jurídico e econômico, eixos que, já na largada do julgamento, estariam comprometidos caso a jurisprudência pacificadora de tema constitucional, firmada ao longo dos anos, fosse ignorada, sem o respaldo em elementos objetivos devidamente apontados. A incerteza, própria de um reinício, comprometeria a segurança jurídica.

A compreensão de que a revisitação descomedida da jurisprudência significaria contrassenso com os propósitos perseguidos pelo instituto da repercussão geral não implica a defesa do engessamento interpretativo, mas, tão somente, a necessidade de moderação quanto à mudança de orientação jurisprudencial, de modo a não lançar mácula sobre os pilares de sustentação da segurança jurídica, promovendo verdadeiro estado de incerteza. Afinal, a jurisprudência não se apresenta como uma posição estanque do Tribunal, mas antes, como o resultado de um processo hermenêutico, alicerçado em princípios, comandos e conceitos constitucionais.

É certo que o dinamismo das relações jurídicas recomenda o avanço interpretativo, em especial em matéria constitucional – a própria tese de repercussão geral pode ser revisada. A mudança, contudo, merece vir acompanhada da indispensável robustez de fundamentação, bem como da inserção de mecanismos niveladores, a exemplo da modulação e das cláusulas de transição, cruciais à preservação da segurança jurídica[13].

A segurança jurídica mantém relação estreita e intrincada com o fator tempo. A estabilização de relações jurídicas marcadas por uma judicialização que não obteve o desfecho ao longo de período considerável acaba envolvendo vertentes expressivas, a exemplo das justas expectativas normativas e interpretativas do jurisdicionado e dos possíveis impactos provenientes da demora.

O ponto ganha contornos ainda mais significativos quando o paradigma de repercussão geral discute questão constitucional que envolve lei ou ato normativo vigente em passado relativamente remoto, cujos reflexos indenizatórios encontram-se pendentes de definição. Caso a jurisprudência tenha sido firmada no sentido da inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo, com o reconhecimento do direito à reparação de índole patrimonial, por exemplo, eventual modificação do entendimento pode gerar desdobramentos na seara da segurança jurídica e consequências práticas importantes do ponto de vista da igualdade de tratamento, considerando o teor de decisões anteriormente proferidas em casos análogos. Em tais circunstâncias, inclusive, caso a lei ou o ato normativo declarado inconstitucional alcance determinado setor produtivo, a alteração interpretativa pode gerar situações de desestabilização da força concorrencial entre empresas que disputam o mesmo segmento de mercado, fragilizando, por conseguinte, a segurança jurídica.

Nesse cenário, uma virada jurisprudencial, sem amparo em sólidos elementos objetivos, poderia desencadear consequências nocivas aos núcleos de sustentação da segurança jurídica, à luz dos impactos econômicos, políticos, sociais e jurídicos dela oriundos, ao passo que a reafirmação da jurisprudência poderia tornar ainda mais proeminente o atributo estabilizante do instituto da repercussão geral, aspectos que têm merecido apropriado sopesamento pela Corte Suprema.

Em tais casos, a reflexão merece perpassar os quatro eixos supramencionados em períodos distintos da história, de modo a favorecer a entrega da mais eficiente e justa tutela constitucional. Ponderações atentas ao tempo dos fatos podem ser determinantes para a blindagem da segurança jurídica, sob o viés da isonomia, especialmente quando o julgado culmina com uma alteração interpretativa.

Quando esforços são concentrados no sentido de materializar a segurança jurídica, tornando-a aliada no processo de alavancagem social, econômica, jurídica e política do país, o instituto da repercussão geral pode se tornar um forte instrumento de cooperação, já que o enfrentamento da questão constitucional, objeto do recurso extraordinário paradigma, demanda o exame de seus impactos ou externalidades nas mesmas esferas, de modo a trazer a necessária uniformização de entendimento, inclusive prestando reverência, sempre que possível, ao histórico jurisprudencial da Corte. Nesse sentido, quanto mais bem estruturada for a tese de repercussão geral, desembaraçando imprecisões interpretativas a respeito do tema em suas múltiplas vertentes, mais eficiente será o seu alcance, em prol da sedimentação da segurança jurídica.

Trata-se, portanto, de instrumento a serviço da jurisdição constitucional capaz de aquietar incertezas, de estabilizar linhas interpretativas e de propiciar ao jurisdicionado a ampliação dos níveis de cognoscibilidade acerca da posição da Suprema Corte, bem como de previsibilidade e calculabilidade normativa e interpretativa, elementos estruturais da segurança jurídica enquanto postulado do Estado Democrático de Direito.

O trabalho interpretativo, a partir da fixação de teses de repercussão geral, ganha estatura pacificadora, revelando a virtude do instituto de viabilizar a interpretação de leis e atos normativos à luz da Constituição da República, sob o estandarte da segurança jurídica.

Grace Mendonça é advogada, ex Advogada-Geral da União, mestre em Direito Constitucional e pós-graduada em Direito Processual Civil.